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MUITO

"O Brasil ajudou a resgatar minha autoestima"

Tatiana Mendonça

Por Tatiana Mendonça

13/03/2017 - 12:46 h | Atualizada em 13/03/2017 - 13:12
A ex-consulesa francesa Alexandra Loras dá palestras sobre igualdade de raça e gênero
A ex-consulesa francesa Alexandra Loras dá palestras sobre igualdade de raça e gênero -

Volta e meia, a francesa Alexandra Loras, 40, pensa que sua vida é como uma pesquisa antropológica. Cresceu entre irmãos brancos e loiros, sendo a única negra, e calhou de ser mãe de um menino também branco e loiro. Ela confessa que já sentiu uma “percentagem de felicidade” de Raphael ter nascido assim, por imaginar que ele terá “menos dificuldades na vida”. A jornalista veio morar no Brasil em 2012, acompanhando o marido, Damien Loras, ex-cônsul da França. No ano passado, ele resolveu se licenciar do cargo para permanecer com a família no país. Alexandra teve peso importante na decisão. Aqui, ganhou “palco”. Tornou-se referência nas discussões sobre igualdade de raça e gênero. “Foi o Brasil que me deu o microfone. Foi o Brasil que me deu dignidade e respeito”. Trocou o cabelo alisado pelos cachos e passou a dar entrevistas e fazer palestras em escolas e empresas para falar sobre racismo e empoderamento feminino. Nesta quinta-feira, dia 16, ela estará em Salvador ministrando a aula magna da Unijorge, na Paralela. A convite da universidade, conversamos com Alexandra em São Paulo, num salão de beleza da zona sul da cidade, enquanto ela se arrumava para o baile de Carnaval da Vogue. Não deixava de ser curioso vê-la ali falando de discriminação enquanto lavava os cabelos, ladeada por mulheres brancas. A cena não a intimidava, ainda que fosse a única cliente negra. Acostumou-se a estar neste lugar. Mais que isso, gosta dele. Utiliza seu olhar estrangeiro e privilegiado como ferramenta para desenvolver ações que promovam mudanças, como o coaching que oferece a mulheres da periferia de São Paulo para que sigam acreditando nos seus sonhos.

Antes de vir morar no Brasil você já tinha uma relação com a Bahia, não é?

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Na verdade meu irmão se casou com uma brasileira vinte anos atrás. Ela é gaúcha, mas comprou uma clínica em Esplanada e então eles foram morar lá. Pouco a pouco, construíram uma casa em Imbassaí. Então eu já vinha para a Bahia. A primeira vez foi há 16 anos. Fui também assaltada em Salvador uma vez... Foi pesado, mas deu tudo certo. Já fui também barrada no Convento do Carmo, por ser uma mulher negra. Quando fui barrada nesse hotel, eu ia encontrar um namorado inglês com quem estava viajando. Quando cheguei, o homem não me deixou entrar. Mas depois, conversando, o fato de eu ter um sotaque... Ele me deixou entrar porque eu era gringa. Basicamente, se fosse uma mulher negra brasileira, não poderia, porque tem o clichê da prostituta. Há vieses invisíveis de entendimento. Tem uma campanha de uma fotógrafa, Larissa [Isis], que viralizou na internet. São fotos de mulheres negras segurando a placa “Cansei de...”. E na minha escrevi: “Cansei de ser vista como funcionária na minha casa”. E eu estou vestida de branco. Tem milhares de comentários racistas nessa foto na internet. E elas nem mesmo entendem do que estou me queixando.

As práticas racistas diferem muito aqui no Brasil ou na Europa, onde você vivia antes?

É mundial a inferiorização do negro. Aqui está feito com um pouco mais de carinho, de maneira mais escondida. É mais forte no sentido de que não vai ser algo agressivo, rude, vai ser tipo com carinho. Por exemplo, vou na festa de uma condessa daqui de São Paulo e ela me ama. Sempre me coloca à direita ou à esquerda dela. E ela vai me falar: ‘Ai, Alexandra, minha neta, minha sobrinha, acabou de se casar com um muçulmano, que horror!’. E ela não se dá conta de que eu tenho origem muçulmana, judaica... Muitas vezes, a pessoa não se acha racista. Não é porque você comeu uma mulata que você não é racista. Nos comentários das fotos dessa campanha, a maioria das pessoas nem entendeu que eu, uma mulher negra, poderia ser uma consulesa. Como falei “cansei de ser vista como funcionária na minha casa”, as pessoas pensaram que eu era uma mulher negra pobre me queixando de lavar louça em casa, então eles disseram: ‘Contrata uma empregada!’. O preconceito já faz com que uma mulher com cabelo crespo, vestida de branco, negra, só possa ser uma mulher pobre, blá-blá-blá. Não se dá conta de que o preconceito já começa no momento de dizer que estou me vitimizando, falar de mi-mi-mi... Não entendem. É como eu tentar entender o que é o nanismo, ou o que é ter uma deficiência física. Nunca vou saber. Uma vez fui debater preconceito com Verônica Ned e foi um dos dias mais importantes da minha vida. Eu queria ir embora, porque me dei conta de que como nascer em um mundo de gigantes, como ela fala, deve ser uma coisa desafiadora. Mesmo ela sendo inteligente, capaz, criativa, de ter tanto talento, é sempre olhada como algo errado. Ali eu pude refletir. Eu aprendo a cada dia. Já teve militante do movimento negro que se queixou comigo de eu sempre escolher mulheres negras palatáveis para subir no palco do TEDX São Paulo, para posar comigo na capa da Planeta, ou fazer uma matéria na Vogue... Não entendia o que elas queriam dizer, mas agora... Elas sendo negras de pele escura, gordas, com nariz deste tamanho, traços mais firmes, elas me enxergam com um pouco de inveja: ‘Olha, ela é mais clara, da elite, bonita, magra, casada com um homem poderoso, mora no Jardim Europa, anda de táxi, não de metrô, não tá morrendo de fome na favela...' Elas me colocam muitas coisas de privilégio que também consigo enxergar como ferramenta para as ações que consigo desenvolver. Entendo como deve ser difícil olhar o quanto estou desenvolvendo ações que têm repercussão, enquanto elas estão trabalhando na militância há 15, 20 anos sem conseguir o reconhecimento que uma negra gringa pode ter. É cruel. Claro que as pessoas também adoram achar que você tem um sucesso do dia para a noite... E eu estou há vinte anos planejando tudo que está acontecendo agora. Elas acham que eu nasci consulesa e me deram um palco... Desenvolvi também muito conteúdo. Se eu tivesse tido um microfone há quinze anos, teria falado de champagne, de gastronomia, de moda...

Como você dizia, os movimentos negros no Brasil já têm algumas boas décadas. Você tentou se aproximar dessas organizações de alguma forma? Acredito que alguns militantes devem se assustar quando você disse no Programa do Jô, por exemplo, que “cotas são humilhantes”, “a pior solução”...

Foi difícil, porque eles não entenderam o jogo intelectual e estratégico que estou jogando. Sou 400% a favor das cotas, mas, como jornalista, sei falar na mídia. Se estou na frente de alguém que está contra a cota e eu só pró-cota, se ele me falar ‘sou contra a cota’ e eu falar sou pró-cota, já não tem mais conversa. Mas se eu disser: entendo, e vou te dizer, Jô, eu acho mesmo as cotas humilhantes, a pior das soluções, mas, infelizmente, é a única solução... E é aí que é interessante, porque pode abrir o diálogo. Igual ao Trump. Nós podemos dizer é horrível, é horrível, mas não, eu não acredito que seja horrível. Eu acho maravilhosa a eleição de Trump. E aí você tem que escutar o resto do meu raciocínio. Trump está deixando verbalizar a verdadeira cara de nosso mundo, que é xenofóbica, islamofóbica, antissemita, racista. Uma Marine Le Pen vai mesmo deixar o meu país assumir o que ele é e parar de ter esse marketing de país dos direitos humanos, da liberdade, igualdade e fraternidade, porque isso é uma mentira. Estamos deixando milhares de refugiados morrerem no mar, não estamos dando apoio a eles, não estamos recebendo-os com dignidade. Temos milhares de edifícios vazios em Paris e estamos deixando eles morrerem nas ruas, no frio. Então onde está o país dos direitos humanos? Somos um país deste tamanho que é o quarto país mais rico do mundo. Como isso foi possível? Por ter explorado uma boa parte do mundo por séculos. Então hoje o fato de recebermos em nossa terra esses refugiados é porque também somos responsáveis por ter criado instabilidade econômica nos países deles. Se somos um país dos direitos humanos, da igualdade, da liberdade, da fraternidade, deveríamos ser fraternos, igualitários e deixar essa liberdade de expressão aparecer. Eles nunca me deixaram a palavra, uma mulher negra. Foi o Brasil que me deu o microfone, foi o Brasil que me deu dignidade e respeito. Eu costumava dizer que não era militante, que falava em meu nome, e não no nome das mulheres negras brasileiras, já que nunca vou ser brasileira, mas hoje posso dizer que, nessa dicotomia complexa do bem e do mal, foi o Brasil – que eu critico, que eu digo que é um dos países mais racistas do mundo – o país que me acolheu e me ajudou a resgatar minha autoestima.

Você usava o seu cabelo alisado. Foi também o Brasil que influenciou nessa mudança?

Foi a militância negra que me ajudou a assumir meus cachos. Mas ainda aliso... Tampouco quero cair na ditadura do crespo. Não quero trocar uma ditadura pela outra.

Como você viu essa discussão recente sobre apropriação cultural com o uso de turbante por mulheres brancas?

No início, quando vi esse debate, fiquei chocada. Aí comecei a pesquisar essas queixas e consegui entender algo que não enxergava. Entendo a mágoa de negros que usam o turbante ou o cabelo black e são demitidos do trabalho por isso. E quando um branco faz isso é visto como cool, hype, fashion. Posso entender a mágoa de uma maioria da população que tem que viver a adaptação a um mundo eurocêntrico.

Qual foi o fator determinante para você resolver ficar morando aqui no Brasil?

O Brasil foi um palco para que eu pudesse espalhar o discurso contra a discriminação racial e para discutir outros assuntos que não só a causa negra e o empoderamento da mulher. Nunca imaginei que iria sair na capa do Estadão para discutir sobre os 463 anos de São Paulo, sabe? Ou ser escolhida como uma das 65 mulheres mais influentes no Brasil... É muito carinho, muito reconhecimento, que eu tento passar adiante. Dou um coaching de empoderamento para meninas no Grajaú e no Capão Redondo. Essas meninas muitas vezes escutam na própria família: ‘Ah, mas você já viu uma arquiteta negra, uma dentista negra? Não é para a gente’. Então já quebra o sonho dessas meninas dentro do ovo. Entendo que as famílias queiram protegê-las das decepções. Mas eu e outras mulheres que fazemos esse trabalho estamos lá para dizer que é possível, sim, ser negra, da periferia, e ter sucesso. É possível se tornar juíza federal, consulesa, advogada... Mostramos outros padrões, outras realidades.

Li que você tem planos de um reality show de TV...

Ainda é um pouco segredo. Será na E! Entertainment, o canal da Kim Kardashian (risos). Vamos iniciar as gravações em agosto.

Como foi para você crescer como única negra numa família de brancos?

Minha mãe nunca levou nenhuma referência de empoderamento negro, nunca me falou da Rainha de Sabá ou de nenhuma figura negra inspiradora. E meus avós eram muito racistas. Eles me falavam: “Ah, quando sua mãe levou teu pai negro, nós ficamos chocados, desesperados de que um dia ela pudesse ter filhos negros”. E me falavam isso com toda a naturalidade, de me amar e ao mesmo tempo ter essa dicotomia totalmente errada de quebrar minha autoestima, basicamente me dizendo que ser negra era algo errado, ou algo inferior. Tudo isso faz com que hoje eu tenha muita compaixão e empatia com os racistas. Eles não nasceram assim. O sistema é racista. A mídia é racista. Os livros didáticos são racistas, os brinquedos. Nós estamos formatados por tanto preconceito que a sociedade nos coloca, esquecendo toda uma parte de dignidade do negro que eu costumo levar nas palestras em escolas e universidades: dizer, olha, o ar-condicionado e a geladeira foram criados por negros, o marca-passo, a antena parabólica, o celular... São coisas que não sabemos. E não sabendo essa parte da história, ficamos só com a narrativa inferiorizante do negro como criminoso, pobre, favelado, traficante de drogas.

Você tem um filho branco. Como discute essas questões com ele?

É um desafio psicológico... Acho muito engraçado que Deus tenha me dado só irmãos brancos e loiros e até meu próprio filho nasceu branco e loiro. É interessante, porque estou como numa pesquisa antropológica de ver meu filho nascido numa elite e no extremo dos privilégios, e vendo mesmo ele desenvolver sua autoestima como branco e loiro e sendo parte dos padrões mais respeitados, e ver o quanto ele já tem uma autoestima totalmente diferente do que se fosse uma criança negra... O que me incomoda comigo mesmo é ter uma pequena parte de mim escondida, que tenho dificuldade de assumir, que é essa percentagem de felicidade por sentir que ele vai ter menos dificuldades na vida. Me incomoda pensar desse jeito. Mas o que é muito bom também, através dessa experiência, é enxergar como o sistema é muito mais poderoso que eu. Eu não queria comprar armas nem trazer nenhuma arma para a minha casa, e hoje ele, aos 4 anos e meio, só quer pistolas, fuzis. E já está também cheio de preconceito: ‘Ah, isso é de menina, isso é de menino...’. E outro dia ele voltou da escola gritando: ‘Cara de chinês, cara de chinês’. Tive uma conversa com ele sobre o fato de que não se fala assim, mas é muito difícil. Outro dia o levei ao Grajaú, na casa de uma menina que pinta com a boca. Ela é deficiente. E ele ficou no meu colo assim, fazendo uma cara... Depois as fotos saíram na imprensa. My God! Ele está desesperado, olhando com uma cara assim... De nojo. Então, meu trabalho e o trabalho da escola, da mídia, precisam melhorar, porque precisamos educar nossos filhos a saber lidar com as diferenças, a aceitar e respeitar as pessoas. A questão é como trazer isso de maneira glamourosa, estética... Eu adoro o fato de essa modelo que é negra e tem vitiligo [Winnie Harlow] ter uma carreira extraordinária. Eu sou super para a inclusão e para entender que o mundo não é perfeito. Ou que essa perfeição é assumir nossa diversidade. A riqueza do mundo é a diversidade. Claro que precisamos defender nossa igualdade em termos de direitos humanos, mas somos únicos, cheios de talentos, cheios de um potencial enorme. Hoje as empresas americanas que reequilibraram a diversidade de gênero e de raça aumentaram em 35% seus negócios, sabe por quê? Porque quando eles fazem brainstorm de campanha, de estratégia de como, conseguem através dessa diversidade atingir o público verdadeiro da sociedade americana. E o problema do Brasil é que as pessoas que fazem as campanhas publicitárias são homens brancos que saíram da FGV, da PUC, da Mackenzie... Não sabem falar com os negros. Estão deixando de falar com o verdadeiro público brasileiro, a maioria da população, uma população com menos recursos, mas com muita criatividade. A maior corrupção que vejo no Brasil não é aquela da Odebrecht ou da Petrobras, mas o fato de que o povo mais criativo do mundo não tem oportunidade de empreender ou de se formar por causa das altas taxas de juros, de 400% ao ano. No resto do mundo, na Europa, nos Estados Unidos, a taxa é de 3%. Então, se você é pobre, da periferia, e quer estudar, você vai ter um crédito de 3%. É possível pagar. Se você tem uma ideia fantástica e quer empreender, a mesma coisa. Dá para fazer. Mas se o dinheiro que você pega do banco você vai ter que devolver 400%, como é possível se desenvolver na sociedade? Isso para mim é o que inviabiliza o brasileiro de se emancipar e o Brasil de se transformar na maior potência mundial. Por isso também escolhi ficar no Brasil, pois acredito no potencial deste país, acredito na inteligência emocional deste país.

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