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“O cancelamento nos obrigou a pensar antes de falar”, diz Pedro Tourinho
Confira matéria da revista Muito
Por Pedro Hijo
Uma punição social movida pela exclusão, constrangimento e exposição que gera efeitos diretos na imagem pública. O cancelamento é um fenômeno moderno, que se tornou popular no fim dos anos 2010, e que faz moradia nas camadas mais inflamadas da internet. Mas, para o comunicólogo Pedro Tourinho, o boicote a quem "fez algo de errado" sempre existiu, antes mesmo das redes sociais. "Até recentemente, essa era uma dinâmica que atingia mais mulheres, negros, a população LGBT, ou pessoas que estavam fora do círculo do poder como um todo", pontua Tourinho, que também é o atual Secretário de Cultura e Turismo de Salvador. No mês passado, o baiano lançou o livro Ensaio sobre o cancelamento (Editora Planeta), uma análise sobre a dinâmica que, de acordo com Tourinho, está intimamente ligada ao cuidado com a própria imagem. Este é o segundo livro do autor que, em 2019, publicou Eu, eu mesmo e minha selfie: Como cuidar da sua imagem no Século XXI (Portfolio-Penguin). Para A TARDE, o baiano fala nesta entrevista sobre a utilização do cancelamento para fins políticos, sobre a responsabilidade das plataformas digitais e como trazer pessoas historicamente excluídas para o debate.
De acordo com sua pesquisa, o cancelamento é uma dinâmica social antiga, inclusive anterior à internet. Como essas práticas se manifestavam historicamente e como elas se comparam aos cancelamentos contemporâneos?
Sempre houve essa dinâmica da sociedade de querer controlar a população, de alguma forma. Pessoas que agissem contra a norma vigente eram marginalizadas. Aqui a gente pode falar sobre a Inquisição, por exemplo, ou o ostracismo, que era uma dinâmica que acontecia na Grécia antiga, em que eles anotavam nomes em pedaços de ostras e essa pessoa era afastada da cidade. Mas, até recentemente, essa era uma dinâmica que atingia mais mulheres, negros, a população LGBT, ou pessoas que estavam fora do círculo do poder como um todo. As grandes minorias sempre foram alvo dessas dinâmicas de cancelamento antes da internet. Até que esses grupos conseguiram se reunir com uma força algorítmica para dar capacidade de pautar algumas dessas questões. Em 2017, o movimento Me Too, que aconteceu nos Estados Unidos e uniu mulheres numa campanha contra o abuso sexual, cancelou o produtor Harvey Weinstein pelo histórico de assédios que ele cometia na indústria. Essa foi a primeira vez que um homem branco, empresário, rico, dominante, foi constrangido e, de fato, punido pela sociedade a partir de coisas que antigamente eram tratadas com muita naturalidade.
O cancelamento é uma forma de dar conta daquilo que o sistema legal não alcança?
Os sistemas legais sempre estiveram ligados ao poder seja formalmente ou informalmente. Essa reversão que a gente percebe em 2017 mostrou que esses movimentos tornaram-se realmente populares para uma camada maior da população. Mas, antes disso, eles eram realmente de quem estava no poder. Você vê o caso, por exemplo, de Monica Lewinsky, que aconteceu 10 anos antes do Me Too, em que ela foi assediada pelo ex-presidente Bill Clinton e saiu como sendo a grande vilã naquele momento. Perfis a descreviam como uma menina depressiva que descontava a baixa autoestima na comida e pegando um homem casado. Era assim que ela era descrita, em 1998. Isso não era justiça. Isso era como a sociedade e as mídias de massa trabalhavam em prol de uma classe dominante apenas. Com o Me Too, isso foi invertido, de alguma forma, porque em 2017 as minorias conseguiram pautar outra direção do cancelamento e isso durou algum tempo.
O cancelamento, frequentemente, é debatido entre ser uma ferramenta de transformação social ou um ato de censura. Qual é sua visão sobre essa dualidade?
Foi feita uma pesquisa sobre cancelamento nos Estados Unidos em 2022 [pelo instituto Pew Research Center] e se perguntou para a população americana qual era a opinião sobre o assunto. O resultado foi que 68% das pessoas entendiam o cancelamento como uma ação de responsabilizar as pessoas por suas atitudes erradas. Já 30%, ou pouco mais, acreditavam que o cancelamento é uma questão de controle da liberdade de expressão. Essa mesma pesquisa procurou saber sobre a posição política dessas pessoas que deram opinião. O resultado é que a maioria das pessoas progressistas entende o cancelamento como uma organização do poder e uma proteção das minorias. Já esses 30% que acham que o cancelamento é um movimento contra a liberdade de expressão são os mais conservadores. Então, é impossível dissociar a perspectiva do cancelamento das posições políticas e das guerras culturais.
O cancelamento é, talvez, um equilíbrio de forças nas guerras culturais?
Eu acredito que o cancelamento era realmente uma dinâmica de equilíbrio dessas forças de expressão para que as minorias conseguissem ter esse veículo. Não estou dizendo que são processos completamente justos e que sejam simétricos ou que tenha justiça em todos os cancelamentos. Mas é uma dinâmica que trouxe certo equilíbrio ao debate, algo que não existia antes. A sociedade está amadurecendo um pouco em relação a essas penas e medidas de debate. Até mesmo a judicialização desse processo acabou por demandar mais responsabilidade para quem expõe uma situação e também trazendo um pouco mais de medo para quem deseja expor.
Você percebe uma influência desse medo do cancelamento nas produções culturais?
Eu acho que todo mundo está fazendo uma conta que não fazia antes. Será que o que eu vou dizer vai ofender alguém? Vai reforçar um comportamento que é nocivo para a sociedade? Vai reforçar uma opressão a um grupo social que vem sendo oprimido, que vem sendo subjugado pela sociedade nos últimos anos? Será que essa minha atitude vai reproduzir imagens que causam gatilhos em pessoas historicamente excluídas do debate? Eu me lembro de uma entrevista em que [o ator] Wagner Moura discutiu o politicamente correto, que era um termo que se falava muito quando o cancelamento não era algo tão debatido. Na ocasião, ele disse que o politicamente correto é uma ferramenta civilizatória, porque ele nos obriga a pensar no outro. E eu concordo muito com essa frase. Principalmente, nós, homens brancos cis, de classe alta, que sempre tivemos, de alguma forma, um ambiente de conforto e de dominância social. Nunca nos foi demandado que pensássemos no outro. O cancelamento nos obrigou a pensar antes de falar.
Há quem diga que isso é um cerceamento da liberdade...
Eu entendo quando alguns intelectuais demandam dessa tal liberdade total de pensamento. Mas, se são tão intelectuais, por que não colocar também esses elementos na equação? O quanto que um pensamento, uma expressão, uma declaração pode reforçar uma perspectiva ruim da nossa história. Pedir cuidado para não ofender grupos historicamente ofendidos e subjugados não é pedir demais em 2024.
O cancelamento realmente existe ou é uma falsa impressão dentro de um grupo de pessoas que compartilha dos mesmos ideais?
A gente teve esse momento de pico desse cancelamento civilizatório. No Brasil, por exemplo, tivemos a campanha #PrimeiroAssédio, depois a Mexeu com uma, mexeu com todas. Foram movimentos que tiveram um impacto real na política de gênero das empresas. A Lei Maria da Penha foi promulgada em 2017, na época do Me Too. No mesmo ano, nos Estados Unidos, dos 50 estados, 32 fizeram novas leis antiabuso e antiassédio. Várias empresas passaram a ter estratégias de compliance para evitar comportamentos inapropriados dentro do ambiente corporativo. Então, sim, o cancelamento tem um papel importante. Quando você olha pontualmente, pode gerar discussões de mérito, mas quando você olha de cima, dá para notar o impacto positivo na sociedade, sim.
Você percebe um desgaste do uso da expressão? Isso não impacta nas mudanças que poderiam gerar na sociedade?
Quando a extrema-direita se apoderou dessa dinâmica do cancelamento, e a judicialização ficou mais forte, deu para notar que o sistema se reorganizou para desqualificar o próprio cancelamento. Isso foi feito a partir, inclusive, de uma perspectiva semântica da palavra: algumas pessoas começaram a dizer que eram vítimas de cancelamento. Mas como, por exemplo, um racista pode virar a vítima de um sistema? Então, muitas pessoas começaram a utilizar o termo para se vitimizar em relação a essa dinâmica agressiva da internet. Isso é uma coisa que enfraqueceu o que vinha acontecendo naquele momento. Por conta das guerras culturais, foi possível ver pessoas canceladas que eram eleitas pela extrema-direita na eleição seguinte. O cancelamento se transformou numa arma eleitoral e estratégica para lidar com a polarização política. Porque se você é cancelado por quem diverge de você, isso gera votos, gera poder. O cancelamento se tornou uma dinâmica mais complexa e essencialmente eleitoral.
Como você avalia a responsabilidade das plataformas digitais nessa dinâmica?
Há uma total responsabilidade. Tanto na existência dessa dinâmica quanto no fortalecimento. O cancelamento dá resultado a essas empresas porque gera engajamento, o que gera resultado. A gente vive essa gangorra das guerras culturais em que existem dois grupos querendo decidir como é que a sociedade deve viver, em que é que se deve acreditar, como deve se comportar. O cancelamento virou uma arma dessa guerra para ambos os lados e perdeu a credibilidade. Hoje, ninguém é cancelado como já foi há alguns anos. Vira parte de uma paisagem da dinâmica digital porque o sistema já cooptou essa ideia.
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