MUITO
O charme do Mercado do Rio Vermelho aos 50 anos
Por Yumi Kuwano
Meio século parece muito tempo? E é mesmo. Em 50 anos, o Mercado do Rio Vermelho já teve muitas caras e nomes. Já foi feira, centro de abastecimento, apelidado carinhosamente de Ceasinha, e, após passar por uma reforma que deu ares “gourmet”, ganhou o nome de mercado. Mas o local é mais do que apenas um centro comercial. Tem um apelo afetivo, tanto para quem o frequenta como para quem trabalha lá.
O equipamento, que pertence ao governo do estado, é administrado pela empresa baiana Enashopp, devido a uma concessão, desde 2014, quando passou pela última reforma de revitalização que levou dois anos para ser concluída.
Nesse tempo, os permissionários tiveram que ficar em um local improvisado, ao lado da Ceasinha – no feminino mesmo. De lá para cá, muita coisa mudou, mas a essência do mercado parece ser a mesma: reunir um pedacinho de cada canto da Bahia, do Brasil e do mundo no mesmo lugar. A parte gastronômica, então, nem se fala. Comida baiana, nordestina, churrasco, feijoada e até a culinária internacional, como a famosa paella, são atrações à parte.
Nos corredores de lojas, os chamados boxes da Ceasinha, você se perde com a variedade de produtos. Sem dúvida, é um local perfeito para fazer um ‘tour’. Num dos primeiros deles, os sequilhos, as castanhas, as frutas secas, entre outros petiscos e aperitivos, chamam a atenção e roubam a cena.
No outro corredor, é possível encontrar mais produtos do tipo, principalmente na famosa Natureza e Cia, de Maria da Glória Martim, 55. “Por que sua loja fica tão cheia sempre?”, pergunto. “Porque estou sempre aqui, ouvindo o cliente, e, principalmente, nunca deixo faltar nada na minha loja”, avalia.
Glória chegou à Ceasinha em 1990 e conta que, no início, tinha pouquíssimos produtos. “Aí os clientes iam pedindo e eu sempre ouvindo e aumentando as opções. Hoje estamos assim, graças a Deus”, diz, sem tirar os olhos da loja, observando se tudo corre bem. Dia de sábado é uma loucura. O burburinho e a fila que se formam são enormes. “O olho do dono é que engorda o gado, não é, Glória?”. Ela concorda.
Mais adiante encontramos embalagens e artigos para festas. As floriculturas também fazem sucesso por lá. Inclusive durante a pandemia passaram a ser mais requisitadas para presentes de quem não pode dar aquele abraço quentinho em datas especiais.
Razão de sua criação, lá em 1970, a Ceasinha garante até hoje frutas e verduras fresquinhas para os clientes. O boxe São Jorge mesmo ocupa três espaços para abrigar todas as suas mercadorias de hortifrúti e já apareceu até em livro de gastronomia. Há 39 anos, Jorginho, como é conhecido José Jorge Sales, 55, vende os seus produtos com a mesma alegria de sempre. Para ele, a principal diferença entre o passado e hoje é a variedade de produtos: “Antigamente, a gente tinha alface, tomate, cebola, laranja, goiaba… e só. Agora, tem alface crespa, lisa, hidropônica, roxa, francesa... goiaba também a mesma coisa, antes era mais simples, não tinha tanta coisa”.
Jorginho diz ter produtos para todos os bolsos. “Tem cliente que quer um produto superior, um produto diferenciado e paga mais por isso, outros querem uma coisa mais simples e mais barata. A gente tem tudo aqui”, comenta.
A empresária Selma Fernandes, 49, costuma comprar no Mercado do Rio Vermelho quase toda semana e diz que os produtos são mesmo selecionados: “Além da qualidade, tem o atendimento caloroso e mais humano que só encontro aqui”, elogia.
Essência em movimento
No Mercado também encontram-se lojas de artesanato e utilidades para a casa, como a de Marilene Santos, 56. Sua família trabalha na Ceasinha desde o início, em 1973, com hortifrúti. Seu pai hoje tem 90 anos e sua mãe, 83. Quando eles se aposentaram, ela e a irmã mais nova assumiram de vez o negócio, que já foi butique de roupas, restaurante, lanchonete, bomboniere e, há mais ou menos 10 anos, tornou-se uma loja que tem de tudo para casa. Tem de tudo, mas o carro-chefe é o cuscuzeiro individual, conta Marilene: “Todo mundo que chega aqui pergunta desse cuscuzeiro, ou vê e acha fofo e quer levar. É impressionante”.
Recentemente, a febre entre os clientes que passam por lá – acredite – são as máscaras faciais para proteger do coronavírus. Marilene ficou semanas ouvindo quem passava na frente da loja perguntar: “Tem máscara?”. “Não”, ela dizia. Até que pensou: “Quer saber de uma? Vou produzir minhas próprias máscaras”, e passou dias pesquisando e estudando qual seria o melhor modelo, visando ao conforto na hora de falar, porque como ela mesma diz: é tagarela e sentia que nenhuma máscara que já tinha visto era boa o bastante. E achou: “Vi esse modelo 3D no YouTube, mandei para a costureira, foi e voltou algumas vezes até chegar ao que eu realmente queria, mas funcionou”.
Mandou fazer 10, depois 30, 50 e 100 máscaras e, enquanto tem estoque, vende tudo. Tem máscara para todos os gostos, a partir de R$ 6, até as mais especiais, que chegam a custar R$ 35.
Das antigas
O nome já diz tudo: Filhas de D. Ana. O restaurante da família de Ana Lisboa, 61, tem clientes tão antigos quanto o negócio. Por lá, são servidos café da manhã nordestino a partir das 7h e, mais tarde, o almoço. O restaurante funciona até as 17h.
A comida caseira, entre elas rabada, feijoada, dobradinha e a típica baiana, é apreciada pelos clientes fiéis que fazem questão de marcar presença todo fim de semana, mas atualmente só pelo delivery.
Dona Ana está no local há mais de 30 anos e começou com uma barraca de frutas e verduras – que existe até hoje e é administrada pelos sobrinhos – até perceber, quando surgiu a oportunidade de ter um espaço, que poderia tocar um restaurante próprio.
“Antigamente, aqui nada funcionava em dia de segunda e os funcionários do Hospital Aliança que comiam aqui todos os dias me pediam muito, então, eu vinha para cá, mesmo fechado, fazia a comida e levava para eles, toda semana. Depois de muita luta, consegui convencer a administração a abrir também às segundas-feiras”, conta. O que levou até a alguns desentendimentos com outros trabalhadores da Ceasinha, porque era o dia de folga. Mas até hoje funciona assim, graças a dona Ana.
Mesmo o restaurante sendo administrado pelas duas filhas, ela não deixa de estar no local, tampouco diminui a intensidade de trabalho: há dois anos, alugou mais um boxe e também começou a vender sequilhos e outras iguarias.
Ao lado fica o famoso Bar do Edinho, o point de nomes conhecidos da literatura, moradores da capital baiana, que costumavam se reunir semanalmente. Ruy Espinheira Filho, Antônio Brasileiro e Florisvaldo Mattos são alguns deles. Edson Lima, 76, Edinho ou “sócio”, como é lembrado por chamar todos os clientes assim, é o mais antigo do mercado. Chegou em 1973, apenas três anos após a abertura.
E, quando chegou, não podia vender nem tomar bebidas alcoólicas: “Como um restaurante não pode ter bebida, só comida? Aí eu comecei a colocar bebida quente e cerveja, aí já sabe, né?”. Inclusive, a Gabriela ficou famosa, uma bebida que, segundo Edinho, é afrodisíaca.
Ele é quem garantia, todos os sábados, a alegria da Ceasinha, com a sua seresta, que costumava varar as noites. E os embalos de sábado à noite não paravam por aí, ainda contavam com um show de dança de Edinho com sua esposa. “Como eu sou dançarino, todos os meus amigos da dança vinham para cá e a gente fazia essa festa bonita”, conta.
Para ele, o movimento está fazendo falta. “Estamos fazendo delivery, nunca pensei na minha vida que isso ia ficar vazio assim”, lamenta a restrição de clientes por causa da pandemia. “Daqui, 70% dos que frequentam o bar vão na minha casa também”, conta, com expectativa para a reabertura dos restaurantes e bares, que deve acontecer amanhã (10), de acordo com a administração do local.
Além da praça de alimentação, o mercado tem 138 boxes que são divididos entre empórios gourmet, lojas de iguarias, artesanato, açougue, peixaria e hortifrúti, além de uma casa lotérica, dois pet shops e quatro floriculturas.
Feira shopping
Marilene conta as dificuldades após a reforma de revitalização. Segundo ela, nesses 50 anos, muita coisa mudou, para o bem e para o mal, e as coisas se tornaram mais difíceis para ela e alguns comerciantes. Marilene diz que as pessoas veem o mercado como shopping e não como uma feira, como antes. “As madames vêm cheias de salto, com a bolsa gigantesca e ficam passeando. Aqui não é um shopping e acho que nesse processo de transformação se perdeu a essência”, observa.
“Antigamente, no tempo dos meus pais, o cliente chegava e a gente dava uma cadeira para ele sentar, abria um coco ou uma melancia para ele degustar e ia botando as compras para ele. Ele tinha que ser bem tratado. Hoje, fazer isso é impensável”, lembra.
Ela conta ainda que houve alguns desentendimentos com a nova administração, desde a entrega da nova estrutura, porque a empresa não tinha experiência na área de feiras. “A gente queria fazer do jeito que estávamos acostumados, eles colocavam regras diferentes, mas acho que agora pegaram o jeito”, considera.
Bons ventos
No entanto, não é o que pensam os novos comerciantes do Mercado do Rio Vermelho. Juleilda Allegro, 44, sócia do Café Latitude 13, premiado, inclusive, abriu a primeira cafeteria em 2014 na Ceasinha. O café da Chapada Diamantina é de produção própria. Para a empresa, a escolha do local foi para entender e se aproximar do público final. E o espaço de experimentação tem trazido bons frutos: “Viemos para ter um feedback, desenvolver novos produtos e já desenvolvemos muita coisa. Cápsulas de café, o café de bolso, licor, cerveja e o primeiro queijo de café do Brasil”.
Além da boa localização, o mineiro Fred Teixeira, 32, dono da loja de queijos artesanais Oxe, É de Minas, diz que o mercado tem um apelo cultural muito importante. “Sempre vislumbrei estar dentro de um mercado, em Minas tem muito isso de achar queijos e outras iguarias em mercadões”, diz.
Ele abriu sua loja em 2018 e garante que o retorno é positivo e a tendência é só aumentar o negócio. “Estamos bem no meio da cidade, da Barra ao Alphaville, todo mundo consegue ter acesso, e esses dois anos têm sido muito bons”.
Fred tem planos para expandir. “Queremos aumentar nossa operação aqui, com um espaço para atendimento em mesas e estamos tentando estender os horários para os restaurantes”. Segundo ele, o mix de produtos oferecidos no mercado ajuda no sucesso: “O queijo harmoniza com tudo que tem aqui. Trabalhamos com o artesanal, não podia ter lugar melhor”.
Uma pitada de otimismo, mesmo em cenário de pandemia, faz bem aos comerciantes. O mercado não interrompeu as atividades por causa do coronavírus, mas alterou o seu funcionamento – que tem sido de segunda a sábado, das 7h às 16h.
Alguns permissionários também optaram por fechar o seu boxe por um período, mas logo reabriram. O local funciona com todos os protocolos de higiene e medidas de segurança, como controle de temperatura, horário preferencial para idosos e controle de público.
Dionísio Rios, 60, também conhecido como Alemão da Ceasinha, é vice-presidente da associação dos permissionários do Mercado do Rio Vermelho e é dono de um frigorífico. Ele conta que tudo começou com a Feira da Chapada do Rio Vermelho, com comércio de frutas, verduras, peixes, carnes e alguns restaurantes.
Em 1979, foi inaugurado o Centro de Abastecimento Alimentar do Rio Vermelho, e nesse tempo houve algumas reformas, até a última grande transformação, em 2012. “Cheguei aqui muito novo, com 23 anos, e até ganhei um apelido. Construí uma carreira e uma família aqui dentro, só tenho a agradecer a esse lugar”, completa.
Assim como Alemão, o mercado cinquentenário construiu uma história lembrada com orgulho por cada comerciante que vivenciou o passado e também pelas novas gerações, que ajudam a construir mais um capítulo.
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