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MUITO

Ô de casa!

Por Daniel Telles

04/11/2013 - 16:08 h
Vila Coração de Maria, no bairro 2 de Julho.
Vila Coração de Maria, no bairro 2 de Julho. -

Cartão-postal perdido da cidade, o Dois de Julho é o exemplo mais recente da especulação imobiliária em Salvador: marginal, agora é o queridinho de novos empreendimentos e tenta resistir ao avanço das construções


O Dois de Julho é um conceito. Oficialmente não existe na divisão dos 32 bairros de Salvador, segundo a prefeitura. Também não entraria na conta que eleva esse número para 163, se aprovada a proposta de lei de nova divisão dos bairros da cidade de Salvador. Mas, além do largo homônimo, parte da Gamboa é Dois de Julho para seus moradores e os Correios, a praça da Piedade também, um pedaço do Politeama, outro da Castro Alves e a ladeira da Preguiça estão dentro das suas fronteiras.


É uma nação sem país, como os curdos e bascos. Quem mora no Dois de Julho tem sua própria identidade: dá bom-dia ao vizinho na feira, quase amanhece junto com o pescador para pegar os melhores pescados na rua do Cabeça, olha a vida passar (a própria e a alheia) nos bares pelo largo, rua da Forca, Areal de Cima e Democratas, percebe a ausência de um habitué do Líder.


"Aqui ainda há uma vivência de bairro", diz Wlamyra Albuquerque, historiadora e moradora do bairro há mais de uma década, olhando para o empreendimento que brotou na janela de seu apartamento. O 'ainda' vem a calhar. Nos últimos dois anos, um movimento de saída se propagou pelo bairro com a alta de preços dos aluguéis. Artistas, intelectuais e estudantes foram buscar guarita em outras praças mais em conta.


Os valores pularam alto. Aluguéis que até 2011 não passavam de R$ 300 em prédios como o Nossa Senhora de Lourdes, o Lurdinha, na rua Areal de Baixo, chegam atualmente a R$ 450. Em muitos casos, como os contratos entre locatários e inquilinos é informal, os índices de reajustes ultrapassaram astrologicamente o Índice Geral de Preços do Mercado (IGP - M), tomado por base legal para os reajustes.


Há tempos que a região desperta interesses imobiliários. A vista privilegiada para a Baía de Todos-os-Santos e o processo de decadência do centro da cidade fizeram da fome vontade comer. Comprar imóveis para empreender era questão de tempo e oportunidade. A primeira grande subida de preços veio com o Marina Cloc - a obra está parada à espera de decisões judiciais que embargaram a construção.


O condomínio de prédios de alto padrão, construído ao redor da histórica Boate Cloc, jogou para o alto - junto com as torres - os valores da região. Até a esquecida ladeira da Preguiça, samba de Gilberto Gil e rua inclinada margeada por belos casarões coloniais, entrou no grupo de especulações. Moradores dizem que boa parte dos prédios abandonados por ali foi comprada por construtoras com vistas a construções futuras.


Muro do progresso


No presente, o bairro é resistência "à alta quinquilharia", descrição do progresso das cidades feita por Vinicius de Moraes. Quando chegou à região, há 20 anos, a produtora e dramaturga Cacilda Póvoas estava à procura de uma casa para dividir com o marido, o baterista Ivan Huol, encontrou um lugar de fachada residencial, mas que abrigava uma oficina de eletroeletrônicos. Fechou negócio ainda em cruzeiros e partiu para reforma.


O piso de taco foi limpo, os janelões trocados e a casa, que inicialmente causou desconfiança da família da artista, revelou agrado. "Quando mostrei à minha mãe, ela lembrou que uma amiga dela de infância tinha crescido aqui".


A casa ganhou novos ares: o puxadinho que antes era uma outra residência foi incorporado à do casal, um estúdio foi feito e duas árvores cresceram: uma espraiada no muro vizinho, outra colada à parede da sala. Enquanto se despedia da reportagem, um rastafári passava na calçada oposta. Cacilda gritou um "ei, ei" empostado, fez um gesto com a mão ainda por trás do portão e conseguiu a atenção do passante. "Você que perdeu um celular, né? Encontraram ele", disse. O homem estava com o aparelho e agradeceu sorrindo.


Por lá, o homem precede à fama. Nilson Mendes mora no bairro há 45 anos. "Sou um homem de mesa de bar", define-se, "mas não bebo". Já enveredou pelas ruas ao redor do largo ao lado de Jorge Amado e companhias. Caminha pelo bairro sem arfar e no seu tempo, apesar do cigarro constante. Cumprimenta feirantes, conhece atalhos e aponta a beleza entre a decadência dos casarões.


Passou pela Areal de Cima, mostrou, apontou, como que só para alertar que o casarão imponente e carcomido era o Colégio Ypiranga, onde Glauber Rocha estudou e o poeta Castro Alves morou no século 19, indicou o Museu de Arte Sacra ("onde um monte de gente rica vem casar") e antes de chegar no declive que começa (ou termina - é uma questão de perspectiva) a ladeira da Preguiça, foi alertado por duas costureiras para não avançar na caminhada. Parou, olhou as moças afanarem o ar com as mãos no gesto de alerta, ouviu a recomendação delas sobre o risco de assalto e deu de cara. "Ora, me deixe. Eu vou lá deixar de descer aqui", falou quase que para si mesmo. E continuou a caminhada sem ser importunado por ninguém.


Encontrou Marcelo Teles, morador local, filho dos donos do mercadinho pintado de um azul vivo no meio da ladeira. Enquanto ainda cumprimentava Marcelo, viu Eduardo subir com uma garrafa térmica na mão. "Vi você chegar e arrumei logo o cafezinho", disse Eduardo a Nilson. A família de Marcelo está na região há cinco gerações. Além de gerenciar o negócio familiar, dá aula de jiu-jítsu e é o idealizador do projeto de revitalização dos casarões ao redor.


Pediu ajuda a um e outro morador para comprar tintas coloridas e pintar as fachadas dos casarões habitados ou não. Os grafiteiros do Museu de Street Art de Salvador, Musas, sediados no Solar do Unhão (também parte do Dois de Julho), viu aqueles paredões coloridos e propôs preenchê-los com desenhos. Alguns moradores cederam as fachadas, e o vazio de algumas casas eram telas para os artistas. A rua ganhou desenhos, uns sobre os próprios moradores, outros sobre personalidades baianas, outros abstratos. Há obras de artistas locais e estrangeiros.


Os desenhos criaram outras motivações, e Marcelo fundou também o Centro Cultural Que Ladeira é Essa?, onde acontecem aulas de percussão, yoga, jiu-jítsu, além de abrigar uma singela e simpática biblioteca com livros predominantemente infantis - "ganhamos esse ontem", mostra contente a Nilson o catálogo do Museu de Arte Sacra, vizinho ao centro que idealizou.


Que ladeira é essa?


A Preguiça é uma ladeira curta e não chega a ser um paredão íngreme. É boa de verso, mas a preguiça mesmo é maior para quem continua a subida pela rua Visconde de Mauá. A vista exuberante só é interrompida pela atenção ao estreito corredor surgido depois de um deslizamento de terra em junho deste ano. É do alto deste morro que Maria Bethânia vê a Baía de Todos-os-Santos quando está em Salvador. "Aquela mangueira grande ali é onde fica a casa dela", diz Eduardo.


Vizinho à cantora há um conhecido escritório de arquitetura da cidade que antecede casas ainda preservadas com fachada colonial e outras descaracterizadas pelas pastilhas de tons pastéis. Na última curva da rua, quando a visão vai além do alcance dos muros das casas e avança pelo horizonte, é também onde se veem as torres retangulares dos novos empreendimentos construídos naquela encosta. É ao longo dela que a especulação mais avançou nos últimos anos. "Tem casas abandonadas aí faz tempo, quando liberarem a construção, vão virar prédios", diz Nilson.


A nova vizinhança moderna contrasta com o passado do bairro. Atrás das torres está a Igreja do Sagrado Coração de Maria, de 1753, ao lado dela, a única vila operária remanescente do centro, homônima à igreja.


Nela nasceu e vive Ivana Chastinet. Entre as sete casas, apenas três continuam habitadas. Uma delas pela atriz, outra por sua mãe. Pertencente à Irmandade de São Pedro dos Clérigos, o terreno onde estão os sete casebres conjugados deve ser usado para a construção de um edifício-garagem. "Isso aqui é parte da história do bairro e da cidade, não pode acabar", diz a atriz, que entrou com uma ação na Justiça para permanecer no local junto com sua mãe.


As mudanças no bairro começaram desde que a fonte que ficava em frente ao casarão onde funciona o Centro de Estudos Afro-Orientais, Ceao, da Universidade Federal da Bahia, foi levada para o largo dos Aflitos, no final do século 19. Décadas depois, concomitantemente com a decadência do centro, repartições públicas e prédios oficiais mudaram de lugar.
Aos poucos, o Dois de Julho assumiu características comerciais durante o dia e boêmio à noite, atraiu artistas e intelectuais nos anos 1960 e acolheu grupos marginalizados, como aconteceu com a praça da República, recentemente, em São Paulo, ou o Brooklyn, há décadas, em Nova York. No cine Capri, hoje hotel, Glauber Rocha fez algumas de suas primeiras projeções; na boate Cloc, artistas foram inventados; e nas mesas dos bares pelo largo, nas ruas da Forca e do Cabeça, discutem-se os rumos da política e cultura da Bahia. E briga para fazer jus ao nome: um marco da independência.


Eu ando no meu tempo e sempre chego aonde quero


Bastou pintar as fachadas para as pessoas verem como aqui é bonito. A gente precisa fazer também para valorizar o que é nosso
Quando a gente chegou aqui, tinha muito mais casas habitadas , os moradores antigos do bairro têm vendido as casas
A gente ainda tenta preservar uma convivência de bairro, mas já percebe mudanças com gente estranha no Dois de Julho


Vá lá Panificadora Bola Verde Rua do Cabeça, 149 - 71 3321-4934Porto Moreira Rua Carlos Gomes, 486 - 71 3322-4112MUSAS - Exposição de Grafitis Ladeira da Preguiça Líder Largo do Dois de Julho, 32, Ed. Emily - 71 3321-8955Museu de Arte Sacra Rua do Sodré, 276 - 3243-6310Caxixi Rua do Cabeça, 123 - 71 3321-2192

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