O dom das línguas estranhas em congregações cristãs | A TARDE
Atarde > Muito

O dom das línguas estranhas em congregações cristãs

Fenômeno é conhecido como glossolalia e é visto como "estado de êxtase" por fiéis

Publicado domingo, 19 de dezembro de 2021 às 12:56 h | Autor: Bruna Castelo Branco

Simone Moura descobriu que queria ser pastora evangélica ainda na infância. Desde os 7 anos ela ia à igreja com a mãe – mas não era obrigada, não, ia por vontade própria. “Apesar de o meu pai ainda não ir, ele tinha valores espirituais muito fortes. Tanto que deu aos filhos ou nomes bíblicos, ou com significados importantes”. Aos 12, durante um culto em Alagoinhas, em uma igreja Batista tradicional, ela recebeu um “chamado” para se tornar pastora. E ouviu – afinal, já que estávamos falando em nomes e seus significados, “Simone” quer dizer “a que ouviu”, a “ouvinte”, a “obediente”.

Também aos 12, e também por vontade própria, ela foi batizada. “Eu estava muito consciente. Eu sempre amei Jesus. Não sou crente desde criança porque a minha mãe me forçou, mas porque eu conhecia Jesus. Sou crente por uma convicção”, ressalta. E, ainda na pré-adolescência, aos 13, Simone viveu uma experiência que nunca vai esquecer: o dia em que falou em línguas estranhas pela primeira vez.

Quando criança, a pastora, pedagoga, mestre em psicanálise e coach gostava muito de ler a Bíblia e orar, fosse sozinha no quarto ou em grupos, nos montes [lugares abertos na natureza onde os crentes costumar orar seguindo o exemplo de Jesus].

Num desses encontros, meio que de repente, aconteceu: “Um dia, em uma dessas reuniões de oração, eu estava sozinha lá no meu canto, porque geralmente a gente vai ao monte e cada uma fica lá no seu lugarzinho. E, de repente, eu percebi que comecei a falar uma língua que eu não entendia. Comecei a falar algo que eu desconhecia”.

Mesmo que não estivesse esperando receber o “dom de línguas” naquele momento, Simone conta que já buscava por ele. “O falar em línguas é uma das evidências do batismo no Espírito Santo. Então, eu buscava. E, naquele dia, eu comecei a falar. É como se os céus se abrissem, e eu continuei falando em uma língua que ninguém conhece”.

Ao fim da oração, ela foi até a missionária que acompanhava o grupo e, aos prantos – mas de alegria –, contou o que aconteceu. E aí, a missionária confirmou: Simone tinha, finalmente, encontrado o que tanto procurava. “Ela disse: ‘Você recebeu o dom de línguas. Exercite esse dom, busque esse dom, se aprimore nesse dom’. E aí eu comecei a buscar e hoje, para mim, é algo muito natural, muito real”. A sensação, segundo ela, é de preenchimento, como se até o ar se preenchesse e se tornasse tangível: “Foi como se eu estivesse tocando o sobrenatural, tocando o invisível”.

O chamado “dom de línguas” é, na verdade, bíblico, e existe desde que a Bíblia é bíblia. Hoje, as congregações cristãs que acreditam e incentivam essa prática são as igrejas evangélicas pentecostais, neopentecostais, renovadas, e, no catolicismo, as igrejas que seguem o movimento de renovação carismática. E tudo isso começou no dia em que o Espírito Santo desceu sobre os apóstolos de Cristo, em um evento conhecido como Pentecostes. Nesse momento, como explica o doutor em Teologia, escritor, psicanalista e pastor Luciano Moura, marido de Simone, os apóstolos receberam o dom de falar línguas estranhas, ininteligíveis.

“O Cenáculo em que eles estão reunidos é abalado e eles começam a falar outras línguas conforme o Espírito Santo os concede a falar. Essas línguas não são línguas estrangeiras. Elas não existem no ambiente natural. Quando o apóstolo São Pedro começa a explicar o que está acontecendo, porque alguns, vendo aquela agonia, aquele barulho todo, pensam até que eles estão bêbados, e o apóstolo São Pedro diz: ‘Olha, nós não estamos bêbados porque ainda é cedo pela manhã’”, explica o pastor Luciano Moura.

Esse fenômeno é conhecido como glossolalia que, no dicionário, geralmente aparece com dois significados: um da psiquiatria, outro da religião.

Na psiquiatria, a glossolalia é definida como um distúrbio de linguagem observado em alguns doentes que acreditam que estão inventando um novo idioma. Na religião, Moura explica: “É você entrar em estado de êxtase. Você fala um idioma que não é comum, não é natural, não existe nessa dimensão. É um idioma que algumas pessoas vão chamar até de ‘línguas de anjos’, o que não é verdade.

São idiomas que saem diretamente do espírito da pessoa para o Espírito Santo, e vice-versa. E isso é tão forte que não passa nem pelo entendimento da pessoa, ela não sabe o que está falando. O seu espírito ora com Deus, que entende”.

Quando conseguiu orar em línguas pela primeira vez, Luciano tinha entre 18 e 19 anos. Eram 5h30 da manhã e ele estava em um ônibus de Feira de Santana para Salvador. Ele já tinha pedido ao Espírito Santo para ter essa experiência e, quando ela veio foi como uma surpresa. “Me deparei com essa experiência maravilhosa”. E, aliás, quem estava no ônibus nem percebeu: como relata Simone, apesar de a pessoa não entender exatamente o que está dizendo, ela não perde a consciência.

Ministros do Ministério Apostólico Palácio de Adoração, em Feira de Santana, e no Ministério Internacional da Restauração, em Salvador, Simone e Luciano explicam que, quando uma pessoa ora em línguas, ela está edificando a si mesma.

Se, por acaso, alguém por perto tiver o dom da interpretação, aí já muda: através da voz do intérprete, aquelas palavras desconhecidas conseguem alcançar qualquer um. E, por isso, durante os cultos, os pastores ressaltam que, mesmo que os fiéis estejam orando em línguas, o ministro que está com o microfone na mão segue no “idioma natural”.

“É para que as pessoas que estão visitando possam acompanhar a oração. É um cuidado com aqueles que chegam”, conclui Luciano.

Pressão

Mas, para alguns crentes, o desejo de conquistar o dom de línguas é tão grande que pode acabar virando uma pressão – ou até mesmo medo: medo de não ser batizado pelo Espírito Santo, de ser diferente, de achar que não tem fé suficiente.

Antônio*, que foi evangélico dos 13 aos 19 anos, lembra que, depois de bastante incentivado, até tentou dizer algo em outras línguas, mas logo viu que não estava saindo naturalmente.

“Embora houvesse uma compreensão de que nem todo mundo seria abençoado com esses dons, eu me sentia meio compelido a manifestá-los. Cheguei a balbuciar algumas palavras, mas logo depois me censurei, tipo, ‘quem você está tentando enganar?’”.

Antônio não queria enganar ninguém – mas, e se quisesse? “Se eu tivesse batido pé firme de que tinha falado línguas estranhas, dificilmente seria confrontado por um irmão de fé, pois havia um cuidado muito grande em não colocar a fé dos irmãos em dúvida. Mas, no meu interior, eu sabia que não tinha falado línguas estranhas. Havia uma pressão difusa, porque não orar em línguas estranhas podia ser interpretado como não ter fé”.

Maurício* passou por uma experiência parecida. Na adolescência, começou a frequentar igrejas batistas renovadas e, lá, participou de cultos bem intensos, que, como ele lembra, levava os fiéis viver experiências quase que sensoriais, com muito choro, música e palavras fortes. Como diziam por lá, era tanta emoção que o “fogo descia” – e, para ele, esse fervor todo seja o que talvez induza o fiel a falar as línguas desconhecidas.

“Se já falei em línguas espirituais, as chamadas ‘línguas estranhas’? Acho que não, mas acredito que boa parte das pessoas que falam é por indução emocional ou porque apenas reproduzem, para não serem taxadas como quem não recebeu o Espírito Santo”.

Na época em que estava na igreja, ele percebia, sim, uma pressãozinha para receber o dom – mas, isso nem sempre vinha do pastor ou dos irmãos de fé. Às vezes, era mesmo uma autocobrança.

Direito

Vânia Nascimento, pastora da igreja neopentecostal Verbo da Vida, assegura que todos aqueles que foram batizados e renasceram têm direito, assim como os apóstolos de Jesus, de receber o dom de línguas. Mas, como ela diz, isso não é algo que se aprende, como a língua portuguesa, com gramática e tudo. Então, como faz?

 “Quem tem essa habilidade de falar em línguas? Somente as pessoas cristãs que acreditam no batismo do Espírito Santo. O sinal de quem é batizado pelo Espírito Santo, que tem o revestimento de poder, é falar em línguas. Ninguém nasce falando em línguas, ele (o dom) só pode ser colocado na pessoa que recebe Jesus Cristo como Senhor e Salvador e que crê no batismo”.

Mas, de fato, mesmo querendo, tem irmão que não consegue. Nesses casos, o que falta? Talvez, crer mais um pouco. Mas, segundo Vânia, não tem segredo nem fórmula. “Falar em línguas é um ato de fé. Você não precisa fazer nenhum esforço, não precisa fazer promessas, nada disso, é uma questão de receber pela fé. E, lamentavelmente, tem muitas pessoas no corpo de cristo nas igrejas que não creem. Elas têm uma fé em Deus, mas com uma limitação nessas áreas. E, se a pessoa não for ensinada adequadamente, ela não crê e, por isso, não recebe”.

E, para quem crê, a importância de falar em línguas é gigantesca. Além de edificar a fé, de acordo com a pastora Vânia, a oração em línguas estranhas eleva a sensibilidade espiritual de quem tem essa habilidade – e, como já disse a pastora Simone, é uma sensibilidade tão acentuada que chega quase a ser uma experiência sensorial, um sentimento que dá para tocar com as mãos. “O mundo espiritual fica mais tangível para aquele que fala em outras línguas”.

Com Samuel Andrade, que chegou na Verbo da Vida como irmão e, depois de um tempo, começou a ministrar também, o dom de línguas veio rapidinho, em minutos, bastou querer. “A minha experiência foi um pouco diferente. Eu via pessoas orando em outras línguas e bateu uma curiosidade muito grande de entender o que era aquilo e como funcionava. Eu perguntei ao pastor como era, ele me explicou, e aí recebi o batismo do Espírito Santo. Recebi naquele momento. E comecei a falar”.

Sons

No dia 3 de dezembro, o “dom de línguas” virou assunto depois que Michelle Bolsonaro comemorou, falando línguas estranhas, a aprovação do pastor André Mendonça como ministro do Supremo Tribunal Federal.

Teve gente que viu o fenômeno pela primeira vez e não entendeu, teve quem se emocionou, teve quem questionou a manifestação religiosa e a integridade do Estado Laico, e teve quem disse que aquilo tudo era invenção, palavras inventadas ali mesmo, ao vivo.

De acordo com a pastora Simone, como o dom de línguas é um dom sobrenatural, que possibilita uma conversa sobrenatural com Deus, ninguém tinha que entender mesmo, a não ser um intérprete – afinal, aquele momento seria um diálogo entre espíritos. “Quem ora em línguas, ora em mistérios com Deus, e ninguém o entende”.

Já de acordo com alguns estudos antropológicos e linguísticos, a história é outra. Segundo a pesquisa “Glossolalia: o sentido da desordem – A simbologia do som na constituição do discurso pentecostal”, da antropóloga Selma Baptista, professora aposentada da Universidade Federal do Paraná, os sons e as palavras emitidas durante orações em línguas têm muita semelhança com o idioma nativo de quem está falando, ou seja: as línguas espirituais faladas no Brasil têm fonemas e ritmos próprios do português, enquanto que nos Estados Unidos, por exemplo, do inglês, e por aí vai.

Assim, nesse estudo, a pesquisadora conclui: “Se a glossolalia se assemelha às línguas naturais, é porque as línguas na glossolalia são criadas pelos falantes a partir de um modelo fornecido pelas línguas naturais”.

Em resumo: de acordo com o estudo, “falar em línguas” é imitar e reorganizar, de forma desordenada, sílabas e fonemas próprios da nossa língua nativa. E aí, dá margem para o questionamento: se estamos falando de um idioma espiritual, sobrenatural, por que ele repete sons da Língua Portuguesa?

Dá para ter várias respostas. Para a ciência, uma das possíveis explicações é: porque o dom de línguas não existe, são sons criados ali, na hora.

Para a religião, como explicou o pastor Neidson Reis, da Igreja Batista Lírio dos Vales, o dom de falar línguas estranhas são um presente, um mistério divino: “A verdadeira língua estranha não se aprende em instituições de ensino, é um presente que Deus concede aos seres humanos que, independe de cor ou classe social, poderá receber”.

No fim, a gente volta para aquele conflito que paira por aí desde que o mundo é mundo, desde que a Bíblia é bíblia: ciência e religião – faz sentido uma discussão entre um e outro?

*As fontes preferiram não ser identificadas pelo sobrenome

Publicações relacionadas