ABRE ASPAS
O erro que todo mundo comete ao comprar roupas na Shein
Estilista Márcia Ganem explica por que moda é mais que comprar com um toque no celular
Por Pedro Hijo

Para a estilista e designer de joias baiana Márcia Ganem, a conexão com as histórias, culturas e relações humanas é fundamental na hora da compra de alguma roupa.
"Precisamos de algo que venha de alguém", explica. Reconhecida internacionalmente pela trajetória que une ancestralidade e sustentabilidade, Márcia acredita que a moda só se humaniza quando dialoga com saberes tradicionais e o equilíbrio entre o humano e o planeta. É nesse espírito que ela lança o Movimento Irun, uma plataforma cultural, hoje, na Casa de Castro Alves (Rua do Passo, 52, Santo Antônio Além do Carmo), a partir das 14h, no Centro Histórico de Salvador.
Inspirado na palavra tupinambá que significa “irmão” ou “companheiro”, o Irun busca fortalecer redes de trocas entre comunidades tradicionais, valorizar a cultura afrodescendente, indígena e popular, por meio de ações como cursos, exposições, rodas de conversas e eventos coletivos. “O projeto trabalha para dar visibilidade a essas culturas, que não estão apenas no interior, mas também aqui, com a gente”.
De que forma o movimento pretende transformar a reflexão sobre dignidade humana e valorização cultural em ações práticas para a sociedade?
Esse trabalho converge saberes de comunidades tradicionais, arte e cultura. Este é o cerne. O movimento Irun busca fortalecer a troca de saberes e destacar a importância da cultura para todos nós. Refletimos sobre as formas de estar no mundo e a relação com a cultura da permanência, no sentido de cuidar do planeta. Estamos todos em um processo de confluência de energias positivas em prol do audiovisual, enquanto coletivo. A Casa de Castro Alves é um grande ponto de cultura. Aqui, o trabalho consiste em aproximar diferentes tradições, criando pontes e promovendo essa troca.
É um espaço multicultural, que reflete o pensamento do poeta Castro Alves sobre a dignidade humana e busca expandir essa visão. Qual é a reflexão necessária hoje? Valorizar as distintas culturas, algo que ele já defendia em sua época. Hoje, falamos dessa dignidade humana a partir da valorização da cultura afrodescendente e dos povos originários.
O movimento nasce com um propósito claro de unir ancestralidade, arte e sustentabilidade. Quais são os maiores desafios para articular essas dimensões em um projeto coletivo?
Primeiro precisamos entender que isso é importante para todos nós. Queria falar da terceira ponta, que somos nós, urbanos, e de quanto esses valores falam sobre equilíbrio: entre o ser, o estar no mundo, a relação com a espiritualidade. Isso é fundamental para nos ajudar a manter o equilíbrio no mundo em que vivemos. O maior desafio é saírmos do lugar de centro, de referência, e começarmos a olhar para culturas que têm muito a contribuir nesse sentido – no equilíbrio entre o humano e a Terra, no respeito ao meio ambiente, na percepção horizontal da espiritualidade. Quando a gente decide sair desse centro, percebe a importância da horizontalidade, de valorizar o outro e a si mesmo. O projeto trabalha para dar visibilidade a essas culturas, que não estão apenas no interior, mas também aqui.
Esta semana, começamos a primeira ação do projeto com a comunidade do Centro Histórico de Salvador, dentro do movimento de luta pelo teto. Ouvimos pessoas que foram excluídas do centro na década de 1990, suas histórias de luta, força e mobilização. As comunidades tradicionais deram sentido ao meu trabalho desde 2004, quando comecei a caminhar junto e a pertencer a esses grupos. O que começou com as rendeiras de Saubara, foi um reaprendizado total, uma alfabetização do estar no mundo. Essa relação envolve a valorização do tempo, dos saberes tradicionais, do artesanal, do feito à mão. Foi isso que deu sentido ao meu trabalho.
A moda aprende absolutamente com as comunidades tradicionais e ela se aproxima para se humanizar, pois precisa ser perpassada por esses valores essenciais para a vida na Terra, para o nosso estar aqui. Somos seres relacionais, precisamos uns dos outros. Não queremos viver nesse turbilhão atravessado pelo medo, mas encontrar força na relação e na convivência

O que falta para que a sustentabilidade deixe de ser uma tendência de mercado e se torne um compromisso real nas cadeias produtivas?
Estamos em um momento de profundidade nos discursos, com diferentes lugares de fala que acrescentaram muito. Se olharmos o que aconteceu nos últimos 10 ou 15 anos com a moda, veremos que ela passou por uma grande crise, precisou se rever e se reposicionar. Hoje, vemos comunidades negras mostrando seu trabalho, povos originários falando, assumindo seu lugar, propagando e valorizando sua cultura. Acredito que estamos caminhando nessa direção, avançando passo a passo para isso.
Marcas locais, autorais e artesanais precisam disputar atenção com grandes sites como Shein e Shopee. Como você acredita que os criadores daqui podem resistir e prosperar diante desse cenário?
Sem dúvidas é muito difícil competir com essas empresas. Também vejo que as pessoas estão muito vazias, precisando de relacionamentos. A aquisição de um objeto virou um clique no computador ou no celular. Nós não precisamos apenas dessa materialidade vazia; precisamos de algo que venha de alguém, que conte uma história, que represente uma cultura. Isso é urgente, mais necessário do que simplesmente ter um produto. Precisamos do relacional. Precisamos dos lugares, dos territórios, dos saberes. Precisamos nos relacionar com o meio ambiente, com a natureza, fé e espiritualidade.
Tudo isso faz parte de estar no Pelourinho, de dialogar com a comunidade, de comer a comida do lugar, de provar um acarajé, de transitar por essas culturas. O próprio turismo, ao dialogar com as comunidades do Baixo Sul e do Litoral Sul, por exemplo, tudo isso traz esses saberes dos territórios. É o turismo de base comunitária, é experiência, é se abrir para o outro, para o irun. Esse grande mercado internacional, com o qual não há como competir, sempre existiu. Sempre houve o produto indiano, o chinês, o japonês. Todos eles já estavam presentes desde o início da crise da moda, nos anos 2000. Por isso, é necessário ressignificar.
Precisamos dialogar, conhecer, aprender a fazer uma renda, entender o que é uma vida inteira, ou gerações inteiras, dedicadas a esse saber. Precisamos conhecer nossa história e nossa memória. Isso é integralidade. É o que nos fortalece como cultura, como geografia, como povo. Isso nos mantém de pé, dá sentido à vida. E isso não tem preço.

Como lidar com o desafio de educar quem quer consumir de forma consciente, mas não tem condições financeiras?
É preciso se aproximar e dialogar com propostas. Você pode descobrir que é possível ter peças que carregam histórias – não apenas das técnicas envolvidas, mas também das pessoas por trás delas. Existe o consumo de produtos de commodities, que todos nós compramos, mas isso não impede que também pensemos em outro tipo de produto: simbólico, afetivo, durável e que represente nosso território. Isso faz parte da nossa ação política e cidadã, de proteger e valorizar o território, de estender a mão ao outro. Quando apoiamos o trabalho de alguém, estamos dizendo: "Eu gosto do que você faz, quero que você exista". Assim, contribuímos para a existência de uma multiplicidade de valores e expressões no nosso território. Posso até ter um produto chinês ou indiano de baixo custo, mas sei até onde ele vai. Mas entendo a importância do ecossistema criativo do meu território, e não quero que ele morra.
Não há como encontrar valor simbólico e histórias em uma roupa da Shein. O clique não oferece isso. O que oferece é a presença. A presença em coisas que importam, que ajudam no nosso crescimento como seres humanos, é construída por tudo isso. Há uma coerência em se mover para experimentar uma comida, uma conversa, uma roda de saber de uma comunidade tradicional. É experimentar, entender o que é cidadania cultural, saber o que representa o movimento de um bairro onde pessoas lutam há 30 anos. Isso importa para mim.
Quais são os próximos passos depois do lançamento do Irun? Há planos de expandir para outras comunidades ou estados?
O Irun tem um plano de diálogos, chamado design dialógico, que trabalha diretamente com comunidades tradicionais, permitindo que elas se apropriem do design e os profissionais experimentem a cocriação. Também abordamos a permacultura e o cuidado de si, passando três meses falando sobre mente, espiritualidade e corpo, antes de discutir terra, água e cidadania cultural.
Realizamos essas ações em Salvador e no Baixo Sul, onde surgiu em 2017 o Museu da Costa do Dendê para valorizar a cultura banto e a miscigenação do caboclo, hoje também voltado ao turismo de base comunitária. Ao longo do ano, visitamos várias comunidades, como Terra à Vista, Teia dos Povos, Tupinambá e as rendeiras de Saubara. Uma vez por mês, reunimos todos na Casa de Castro Alves, em encontros de troca e conexão. Tudo isso faz parte do movimento Irun, uma grande jornada.
Serviços
Lançamento do Movimento Irun
Data: 13 de julho (hoje)
Horário: A partir das 14h
Local: Casa de Castro Alves – Largo do Carmo, Centro Histórico de Salvador.
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