OLHARES
O individual e o coletivo nos retratos de Jeff Alan
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Por Priscila Miraz*
Um jovem negro vestindo camiseta e boné brancos, cabelos descoloridos, nos olha diretamente nos olhos, sério, firme. Galhos e folhas de comigo-ninguém-pode se sobrepõem ao fundo rosa, destacando o retratado. Em um plano mais aberto, um menino negro parece mover o dorso em direção contrária ao observador, deixando visível seu ombro esquerdo e suas costas em diagonal, vestindo uma camiseta branca, cabelos descoloridos que contrastam com o céu azul escuro pontilhado de estrelas que observa. Do lado esquerdo, a presença das folhas de comigo-ninguém-pode.
Em outro retrato, agora de uma moça negra, de costas, cabelos presos no alto da cabeça por um enfeite de búzios, brinco pequeno, branco como as alças da roupa, olha pra frente, pro céu azul claro, tendo ao lado de seu ombro esquerdo, novamente, as folhas de comigo-ninguém-pode. Se no primeiro retrato, Comigo, ninguém pode (2023), o olhar forte e direto do retratado nos observa meticulosamente pelo espaço, afirmativamente pela história, nos outros dois, Noite estralada (2021) e Katia (2023), fica evidente que mesmo sem vermos os olhos, as presenças dos retratados se impõem, magnéticas, porque nos observam não apenas com os olhos, mas com o corpo inteiro, engajando performaticamente uma relação dialógica entre os elementos da composição dos retratos, seus personagens e formas de sociabilidade observadas pelo artista.
O primeiro retrato dá título à exposição e traz explicitamente o jogo de sentidos que carrega a planta tão características das casas no Brasil: amuleto contra o mau-olhado e a inveja; coragem e assertividade. Esses três retratos fazem parte dos 57 trabalhos que compõe a exposição do artista pernambucano Jeff Alan, em cartaz em A Caixa Cultural Salvador desde de 21 de maio, e que segue aberta, com entrada gratuita, até dia 28 de julho.
Intitulada Comigo Ninguém Pode - A pintura de Jeff Alan, com curadoria de Bruno Albertim, a exposição já esteve no Rio de Janeiro e em Recife, onde mobilizou um público de 85 mil pessoas durante 3 meses de duração. Segundo reportagem de Giovanna Carneiro para Marco Zero, “o artista foi responsável por levar o maior público para prestigiar a abertura de um evento no equipamento público cultural, com mais de mil pessoas presentes no lançamento da exposição”.
Os retratos ganham dimensões narrativas entrecruzadas, tramas espaciais e subjetivas localizadas que as performatividades e as cores estabelecem com os observadores acessando o imaginário afetivo, de memórias das pessoas com seu território, com sua história: comigo-ninguém-pode em vários vasos estavam presentes no bar Caldinho do Beco, do tio do artista, Albérico Mendes da Silva, de onde Jeff observava o bairro, pessoas passando, voltando do trabalho, trazendo as compras do mercado, crianças voltando da escola, encontros com vizinhos no meio da rua, pausas pra jogar conversa fora. O cotidiano em trânsito.
Acessar essa dimensão narrativa proposta nos retratos é acessar o quanto esses rostos, que são individuais e só estão ali porque são pessoas que estiveram em interação com o artista, são também os rostos das experiências coletivas de pessoas negras num país racista e de persistente estrutura colonial. Por isso, o trabalho de Jeff agencia uma inconteste narrativa contra-hegemônica, que participa da arte contemporânea latino-americana em sua produção figurativa, se estabelecendo na contramão da história da arte tradicional do continente, que buscou subalternizar, omitir e invisibilizar as experiências afro-diaspóricas.
“A pintura de Jeff é uma pintura etnográfica, no sentido mais orgânico do termo, porque ele conhece muito bem essas pessoas que estão retratadas aqui”, afirma Bruno Albertim. Esses retratos a contrapelo da história dão a ver outros padrões éticos e estéticos para os corpos negros, considerando outras perspectivas de conhecimento.
Para Laura Machado, em artigo para a revista Continente, as obras de Jeff Alan têm caráter decolonial: “O processo criativo do artista começa com a observação e o contato com a pessoa que deseja pintar, segue com a captação da imagem fotográfica e, depois, a dedicação para a construção da obra em si. Em seu ateliê, muitos desses retratos vibram na parede e o significado atribuído é revelado à medida que o artista conta um pouco da vida de cada uma daquelas pessoas, suas profissões, enquanto as eterniza em obras de caráter decolonial e plasticidade vibrante”.
Esse caráter decolonial importa na medida em que entendemos o quanto essa perspectiva exige percursos coletivos para novas aprendizagens localizadas no âmbito das práticas dinâmicas dos movimentos sociais, sendo um exercício que depende da compreensão dos percursos de lutas coletivas, sobretudo de segmentos historicamente desautorizados e, consequentemente, invisibilizados, se configurando como campo político de disputa de sentidos.
A arte está intimamente localizada nesse campo, como afirma Rosana Paulino em Presença do negro nas artes visuais no ocidente: o caso brasileiro, aula on-line disponibilizada pelo Museu de Arte do Rio (MAR), em que a artista discute como representações da população negra na arte do ocidente ajudaram a construir um imaginário coletivo para este grupo, contribuindo, desta forma, para a instalação e manutenção do racismo.
Albertim destaca em seu texto curatorial que se por um lado Jeff toma partido do figurativismo, que é uma marca do modernismo pernambucano, ao contrário da presença do concretismo em São Paulo e Rio, “Jeff retoma esse figurativismo, mas com uma inversão muito forte no olhar. Não se vale da armadilha presente no conceito escorregadio de empatia. Aqui, não é o olho da casa-grande quem ‘generosamente’ procura enxergar os por ela subalternizados”.
Nos últimos anos estamos vivendo uma incontornável transformação no campo das artes contemporâneas, promovida por corpos dissidentes, artistas negros, indígenas. Segundo Diane Lima, em Tempo Negro: abstração e racialidade na arte contemporânea brasileira, essa é uma reviravolta epistemológica, que “parece estar intimamente conectada com o modo como nossas movimentações têm impactado o sistema de produção de conhecimento no campo da cultura e da arte e os modos como tais práticas e políticas afirmativas vêm encontrando maneiras de (re)organizar esses saberes nos mais diferentes espaços (formais e não-formais) de educação”, como a obrigatoriedade dos estudos em história e cultura afro-brasileira, africana e indígena em todas as instituições de ensino do país; implantação do sistema de cotas nas universidades; combate à intolerância religiosa; proteção legal dos terreiros na salvaguarda da cultura de matriz afro-indígena; boom editorial que é efeito dessas e muitas outras mobilizações, e também carrega a hipervisibilidade digital.
A presença marcante de pessoas jovens e de crianças que cruzam o caminho do artista, se relaciona muitas vezes com a presença de palavras que se repetem nas imagens, como sonho e coragem, como em Menino na laje quer ganhar o mundo (2021), Viver sonhos (2023), Os estudantes (2021), Coragem pra tudo (2024) e Coragem, brasileiro (2022).
No artigo para a Continente, Jeff afirmou: “Não é só enxergar, é também transmitir. Sonhos vivos é almejar algo, alcançar e continuar vivendo aquilo. Eu consigo transmitir isso, principalmente para as crianças, os jovens, que é o meu público principal. Nossa geração já está em meio caminho andado, já está contaminada (de desesperança), então alcançar as crianças para mim é algo muito sagrado, transmitir isso para as crianças é algo muito sagrado”.
Nos retratos Douglas Luiz (2023) e Coragem pra tudo (2024), exposta em paredes opostas e que podemos olhar ao mesmo tempo se ficamos na quina, no encontro delas, são os retratos de dois irmãos. Douglas de perfil, em fundo azul intenso, fechado, olhado pra frente, seu rosto descoberto pela luz. Seu irmão em Coragem pra tudo, nos olha de frente, com fundo vermelho e a palavra coragem escrita no alto. Vermelho e azul mobilizam as palavras em sua carga significante, marcando no caso do vermelho, o sangue e a coragem – presente nos olhos das pessoas retratadas, e o azul a abertura pra outro lugar, habitado pelos sonhos. Existe entre as cores uma correlação, uma trama narrativa que explora afetividade, memória, experiência, afirmação.
*Doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB)
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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