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O jardim particular de Ligia Aguiar

Confira a coluna Olhares

Por Luiz Freire*

03/11/2024 - 3:00 h
Ligia Aguiar, artista plástica
Ligia Aguiar, artista plástica -

“Hortus conclusus” é um jardim cercado, associado à iconografia medieval e renascentista de Nossa Senhora, cuja referência literária é encontrada no Cântico dos cânticos e nas escrituras hebraicas. Me valho dessa ideia para compreender as elaborações artísticas de Lígia Aguiar (Salvador, 12/10/1950). Extrapolando as referências religiosas, a ideia de um jardim particular para caracterizar a poética visual da artista se ancora na história de vida dela.

Lígia cria jardins densos, acumulados, desenhados a nanquim com caneta Leroy, canetas alemãs não mais encontradas no comércio brasileiro. Os vegetais e estruturas são aglomerados na porção inferior, lateral da tela, ou no centro, ficando o restante da superfície vazia, branca. Para obter esse efeito, a artista utiliza conhecimentos técnicos obtidos nas aulas do professor João José Rescala, constituindo bases de preparação duradoras, que simulam a textura do papel, cuja branquidão não se altera com o tempo.

O repertório ‘vegetalista’, contudo, surge da imaginação da criadora, repleta de referências tropicais, barrocas, geométricas, indianas, fantásticas e se misturam a casas, escadas, torres e outras estruturas, constituindo cenas imaginárias. Em uma das composições, grafa o rosto de uma mulher confinada nesse jardim. Provavelmente, ela própria.

Os jardins de Lígia são refúgios e respostas a uma história de opressão e machismo. Nascida em uma família de classe média, seu pai, Aloisio Souza Aguiar, era baiano de Salvador, afrodescendente, comunista e poeta, proprietário do Cartório de Registro Civil do Passo. Sua mãe, Amélia Santos Aguiar, era branca, filha de portugueses, dedicava-se ao lar e tinha uma forte personalidade. Morou no centro de Salvador, Santo Antônio Além do Carmo. Estudou na Escola Olímpio Cruz, no Colégio Nossa Senhora do Salete e no Ginásio Ipiranga.

Muito cedo experimentou a vida de casada. Aos 12 anos começou a namorar, aos 15 noivou e aos 17 anos casou-se com o primeiro homem que conheceu. Apesar de se amarem muito, a relação era muito possessiva e a liberdade de Lígia foi cerceada, sobretudo nas suas tentativas de se profissionalizar. Logrou aprovação no curso de jornalismo da Ufba, mas não pôde cursar, pois o marido não permitiu. Sua prática artística era limitada, só acontecia através das lições de Paulo Rufino, que por ser amigo da família gozava da confiança do marido e foi muito importante para a sua carreira.

Recebeu de presente do cônjuge a coleção Gênios da Pintura, a partir da qual copiava as obras de Modigliani e Toulouse-Lautrec, ao mesmo tempo, ele destruía seus trabalhos nos acessos de raiva. Após 17 anos de convívio, o casal se separou em 1970 e Lígia pôde, então, se profissionalizar, ingressando no Bacharelado em Artes Plásticas da Ufba em 1976, concluindo o curso em 1979. A relação abusiva vivida com o marido ciumento fala sobre as dificuldades que as mulheres enfrentaram para seguirem a carreira artística.

Liberdade

Na escola, já no Canela, o clima era de liberdade, apesar da Ditadura Militar imposta ao Brasil. Passou a conviver com professores e colegas com os quais partilhou suas descobertas e desenvolvimentos artísticos, em especial com Sônia Caldas e Deca Conde, que conheceu na matrícula e foram amigos toda a vida.

Integrou a geração de alunos formada por importantes artistas como Elisa Galeffi, Sônia Regina Caldas, Zivé Giudice, Maazo Heck, Murilo Ribeiro, Florival Oliveira, Ângela Cunha, Leonardo Celuque. Destaca a influência dos professores Juarez Paraíso, Ailton Lima e Ana Maria Villar. Com Sônia Caldas, realizou em 1979 sua primeira exposição, Simbiose, na Galeria Eucatexpo, no Campo Grande.

Orgulha-se de ter se interessado pela primeira vez, na década de 1980, pela estética das mulheres gordas, abordando-as com delicadeza e sensualidade, em atividades corriqueiras, confrontando preconceitos estéticos e os estereótipos de beleza. Deve às mulheres o apoio artístico necessário, Jacy Brito com a Galeria O Cavalete, e Matilde Matos. A primeira promoveu exposição e inseriu os trabalhos em vários leilões, a segunda através da crítica favorável.

O trabalho artístico de Lígia não se resume aos jardins, se expressa por vários meios, inclusive os videográficos. Conquistou o prêmio em 2007 de melhor vídeo experimental, no Festival de Cinema e Vídeo de Muriaé (MG), promovido pela Faculdade de Minas (Faminas), com o vídeo água, que trata do desperdício da água. Esse vídeo foi exibido pela primeira vez na exposição Mulheres em Movimento, realizada na Galeria Cañizares. Produziu outro vídeo intitulado Re-produzidas acerca da solidão feminina em uma metrópole.

Desenvolve o projeto “o céu nosso de cada dia”. Registra todos os dias com a câmera do telefone celular os efeitos do crepúsculo no céu, as nuances de cor produzidas nas nuvens, mesmo quando o tempo está chuvoso e posta no Facebook, acompanhados de poemas de autores nacionais e estrangeiros.

Aos jardins costuma intitular paisagem, seguido do número em algarismos romanos. Raramente assina os trabalhos na frente, evitando ruídos nas imagens, o faz no verso da tela associado aos demais dados, como ano e dimensões.

São inúmeros os projetos gráficos para capas de livros, figurinos teatrais realizados individualmente e em parceria com Márcio Meireles, a exemplo do Rei da Vela, em 1994. Tem experimentado os meios digitais a partir de seus desenhos, substituindo os fundos brancos por cores uniformes, estabelecendo contrastes vibrantes com os jardins em preto.

Galeria

Trabalhou e estudou concomitantemente. Era servidora concursada da Secretaria de Transportes do Estado da Bahia, depois da Seti, órgão da prefeitura para gestão do trânsito e serviu ao Teatro Castro Alves por um tempo. Em 1994, fundou a Galeria Abaporu, na casa que herdou do pai, a de nº 8, do Largo do Pelourinho, onde Michel Jackson performou em uma sacada.

Enfrentou o conservadorismo da irmã mais velha, que era constantemente informada do trânsito de homens e supunha se encontrarem lá para consumirem maconha, a frequência constava de artistas, jornalistas, cineastas: Elisa Galeffi, Deca Conde, Agnaldo Siri, Tuna Espinheira, João Paulo, entre outros. A oposição da irmã só foi aplacada com a ida do casal Sônia Caldas e Oberdan Oliveira para morarem no imóvel.

A Galeria Abaporu promoveu jovens artistas e expôs trabalhos de outros reconhecidos: Yeda Maria, Graça Ramos, Jamison Pedra, Juarez Paraíso, Paulo Rufino, Chico Macedo, Alessandro César, Márcia Abreu, André Luis, Paulo Pereira, Florival Oliveira, Neide Cortizo e fez uma individual de Zau Pimentel. Cobrava 33% sobre as vendas, quando o normal eram as galerias cobrarem 50% e até 60%, o que impactou no lucro. Depois de cinco anos, a Galeria foi fechada em decorrência da decadência do projeto do Pelourinho.

No papel de comentarista, a partir de 2008 e durante 11 anos, analisou obras artísticas no quadro Artes Visuais do programa Multicultura, da Rádio Educadora da Bahia. De 1986 a 1988, chefiou o núcleo de Cenografia da TV Educativa do Estado da Bahia. Em 2010, realizou uma exposição individual intitulada Lígia Aguiar Arte 4.0, com catálogo bilíngue português/inglês no Centro Cultural Correios, na qual reuniu vários desenhos dos seus jardins, aos quais intitula Paisagem e outros trabalhos mais antigos. A trajetória de Ligia faz-nos refletir sobre o peso que o machismo acarreta à vida das mulheres, e da capacidade delas de superarem, se refazerem. Lígia não se refez, se fez como queria. Mesmo sob o jugo de uma relação opressora, burlou, aproveitando as brechas, até a conquista da liberdade.

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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