MUITO
O mago Alicio Charot
Por Carla Bittencourt

Um cuscuz de inhame, pão com manteiga, café. E sonho, queijo fresco, sorvete de jabuticaba. Não enlouqueça ainda, o chef confessa: fotografia aqui é tudo isca. Não que ele não queira que você pire, mas ficar viajando em receita é pouco. Uma vez na página El Cocinero Loko, permita-se suspender os limites, sabendo que comida não cabe numa só definição.
Começou quando o baiano Alicio Charoth, 50, estava em Madri e o Facebook pareceu um ótimo canal para discutir o tema. Encarnar a figura do loco - como os espanhóis chamam essa gente que rompe com os padrões - sendo ele mesmo um patrício do Maluco Beleza. De volta a Salvador, um dos idealizadores do Maria Mata Mouro continua provocando a rede social com posts que misturam serviço, história, antropologia e política, sempre a partir da gastronomia.
Do Seminário do Senac aos food trucks americanos (aqueles traillers que são ícones da comida de rua lá fora). Do garçom que serviu a Getúlio Vargas às oficinas de cozinheiras no sertão. O vídeo que todo mundo compartilhou contra o desperdício de comida no Brasil e as pesquisas acadêmicas, o chocolate, o vinho, as novas sobre Alex Atala, o ketchup proibido, a merenda escolar e os manuscritos em cadernos manchados pelo tempo. É tudo cozinha.
Nove anos de Espanha depois, Alicio quer dividir experiência, enfatizando o que pode ser pensado sobre a Bahia, o lugar de sua infância. E, por aqui, bom, ele não poupa (quase) ninguém. "Temos uma das cozinhas mais importantes do País e estamos perdendo força, porque a força reside na criação, e aí estamos estagnados". A crítica que ele faz é a de que o modismo que iluminou a figura do chef ainda não deixou claro que seu papel deve ser efetivo. "Chef não é talento, é cargo. E você só se torna um depois que criou um conceito. Hoje, qualquer menino que acabou de sair da escola acha que é chef. Não é bem assim".
O autor de El Cocinero Loko defende uma formação na qual ser criativo valha mais do que saber executar receita. Que o objetivo do aluno supere se tornar ajudante. Não adianta ensinar a fazer béchamel para mirar apenas a cozinha de outra pessoa. Também urgência baiana, em sua opinião, é reconfigurar o entendimento sobre identidade. Nem o provincianismo do foie gras nem o estereótipo do dendê. "Costumo dizer que a moqueca se tornou um símbolo perverso nesse sentido".
Casa Cor Bahia
E, antes que alguém pergunte se esse Loko só vê o lado ruim das coisas: a mesma página prestigia diversas iniciativas originais, fala de quem não vemos na televisão, mas que está, há anos, cozinhando e inventando. Que deveria, segundo Alicio, ocupar posições de comando nas cozinhas daqui e desfazer a imagem folclórica e simpática do chef baiano. Precisamos de mais chefs negros, de mais chefs mulheres.
Quando se trata de vê-lo executar ideias, suas últimas investidas resultaram em três projetos diferentes. Logo que chegou, um ano e meio atrás, Alicio Charoth resolveu brincar com o conceito de viagem e valorizar a cultura local, inserindo produtos num mercado geralmente fechado. Estava inaugurada a Cozinha Nômade, que trocou língua-de-vaca por rúcula e assim fez seu efó. Aos tradicionalistas mais céticos, ele devolve o ceticismo: "A única verdade é a morte. Não acredito nisso, mas em acordos que você vai fazendo com a história".
Quem esteve no D'Venetta na época provou sarapatel com morcilla (embutido à base de sangue) ou o quiabo "tempurado", referência ao empanamento japonês, mas com farinha de tapioca, algo pelo que, aliás, o chef tem um afeto de preferência. Quem não foi ao restaurante no Santo Antônio (ou foi e quer mais) terá a chance no dia 9 deste mês, quando Alicio leva seu cardápio Nômade para a Casa Cor, fugindo de fast-foods e exibicionismos injustificáveis. Usando as partes de um boi como metáfora, a iguaria está na língua e não no filé.
Voltemos à tapioca. Com ela foi inventado outro projeto, bem-humorado, mais cúmplice e com pegada de rua, o Corno Baiano. E não faltou baiano para experimentar esse corno, com o perdão do trocadilho infame, um crepe recheado de alface, creme de abacate e farofa de charque. Teve banca no Carnaval do Pelourinho e no Museu de Arte Moderna da Bahia.
Perto desse tempo também, Alicio gestou o Ajeum da Diáspora, sobre o qual já falamos aqui, resgate da culinária afro-baiana igualmente cheio de significado. Casa com janelas e porta abertas para o comensal se divertir. Se, porventura, você tiver tomado um Fufu ou um Dedeu, sabe do que estou falando. O Ajeum, Alicio deixou seguir, e os almoços continuam sob o comando de Angélica Moreira, todos os domingos, no Tororó.
É sobre o prazer de sentar à mesa e partilhar, valorizar o trabalho manual, o trato simples das mãos. Não por acaso, o chef escolheu uma feira livre, a de Itapuã, para sentir-se representado aqui nestas páginas. Ele está falando de comércio justo, de sustentabilidade na cadeia produtiva. Algo distante das latas e das caixas às quais nos habituamos sem perceber. O cozinheiro está louco? Sim, e talvez seja disso o que a gente precise: ficar louco também.
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