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“O mercado está muito aquecido”, diz Fernanda Bezerra

Produtora cultural e fundadora da Maré Produções fala sobre volta aos trilhos do setor

Publicado domingo, 19 de junho de 2022 às 06:00 h | Autor: Vinicius Marques
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A produtora cultural baiana Fernanda Bezerra, fundadora da Maré Produções Artísticas, é o principal nome da cena cultural soteropolitana em 2022, pelo menos até o momento. Desde o final de 2021, não houve um mês em que a produtora não estivesse envolvida nos principais shows que lotam o Trapiche Barnabé, no Comércio, ou a Concha Acústica do Teatro Castro Alves.

Foi ela quem produziu a Virada Sustentável, trouxe o novo sucesso da música nacional, Marina Sena, pela primeira vez à capital baiana, além de outros nomes como Duda Beat, Céu e Baco Exu do Blues. Hoje, Emicida se apresenta na Concha Acústica também com ingressos esgotados. No mês que vem é a vez de Luedji Luna com a Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba), e depois Liniker. Tudo isso sob a produção de Fernanda, que ainda tem no currículo a realização do primeiro show da Arena Fonte Nova, com Elton John, e festivais como o Sangue Novo, que tem edição confirmada para outubro deste ano.

Formada em produção cultural pela Universidade Federal da Bahia, ela fala nesta entrevista sobre esses projetos e os dilemas do ofício que é fazer cultura em Salvador.

Você se graduou em Produção Cultural em 2008. Começou a atuar ainda na graduação?

Peguei alguns estágios no processo, mas estágios que você vai aprendendo fazendo. Nesses processos de estágios, aconteceu uma coisa muito interessante: antes de me formar eu ganhei um edital, que foi meu primeiro projeto como produtora criativa. Foi a Mostra Possíveis Sexualidades, uma mostra que há muito tempo falava de gênero e diversidade. A partir desse projeto, outras relações foram se abrindo, outras oportunidades foram acontecendo, e aí eu realmente consegui uma inserção no mercado, me formei e resolvi abrir minha primeira empresa, a Multi Planejamento Cultural, com outras duas sócias. Nessa empresa fiquei um tempo, uns cinco anos, e decidi formar a Maré, minha empresa, em 2015. Não tenho sócios hoje, é meu voo solo. É uma empresa que promove experiências e conteúdos em cultura. Lançamos agora um clipe do Zé Manoel com a Luedji Luna, um conteúdo, a música que está na novela Pantanal; o show do Emicida, na Concha, criamos junto com a Nubank, uma experiência para convidados e um público de formadores de opinião de Salvador. A ideia é essa, atuar muito para além de Salvador. Nossos projetos não estão só aqui, temos coisas em outros estados. Vamos voltar em cartaz com o espetáculo Namíbia, Não!, que  originou o filme do Lázaro Ramos, Medida Provisória. Faremos uma temporada em Salvador, São Paulo e em outras capitais.

Como era o cenário cultural soteropolitano naquela época?

Era um cenário que estava mudando. A gente fez uma mudança significativa, que foi a chegada de novas políticas culturais que foram implementadas. Era um momento em que Lula era presidente e de novas perspectivas de cultura, de fortalecimento das instituições, do Ministério e das Secretárias de Cultura, era um mercado com oportunidade. Tinha muito edital, muita ferramenta para quem estava se graduando. Era um mercado de oportunidades para quem não tinha contatos e conhecimentos no meio e poderia tentar um edital, participar e ganhar.

Atualmente, quantos projetos – entre eventos, artistas e outras produções – a Maré Produções está gerenciando?

Muita coisa. Vamos fazer o Concerto da Independência, celebrando o 2 de Julho com a Osba e a Luedji Luna, um projeto que fizemos a primeira edição com Osba e Baiana System e foi um sucesso, esperamos um outro sucesso; estamos cuidando também do lançamento regional do disco AmarElo, do Emicida, que foi super premiado. O primeiro show no Nordeste vai ser aqui na Bahia. Temos uma plataforma de shows chamada Maré Musical, que trabalha com essa difusão de artistas negros, mulheres e LGBTQIA+, que já fizemos vários shows, com Marina Sena, Gilsons, Duda Beat, e temos outros shows programados em cima dessa plataforma. Estamos produzindo um filme sobre a história da primeira médica negra do Brasil, que é baiana, a Maria Odília Teixeira. Esse filme é um projeto que começamos a rodar no final de junho. Estamos também na pré-produção do nosso festival do coração, o Festival Sangue Novo, e tem muitas outras coisas que irão acontecer. Queremos fazer mais dois festivais de música esse ano, para além do Sangue Novo. A Maré está sempre em movimento, o nome da empresa tem tudo a ver, inclusive, porque é esse movimento sempre constante.

Você viu toda uma cena cultural se modificar ao longo dos anos em Salvador. Ficou mais fácil ou mais difícil estar nessa área?

O período para quem trabalha com cultura está muito difícil. Está difícil de oportunidade, no sentido das leis de incentivo. Temos tem um governo federal que não enxerga cultura, que é inimigo da cultura. Estamos vivendo nesses quatro anos, que se encerra nesse ano, a gente espera, muito duros em termos de políticas, apoios, fomentos. Mas enxergo, sobretudo, um momento de muita produção, muita criatividade, então acho que as pessoas estão empreendendo mais nas suas ideias e acho isso fantástico. Não sei se é o momento mais fácil, acho que falar "fácil" é ruim, nunca é fácil. Às vezes, a gente tem situações mais favoráveis e menos favoráveis, mas fácil nunca foi, sobretudo onde a gente mora, nos contextos todos de Brasil, Bahia. Não é fácil, mas estamos num momento, hoje, que por todos os ataques e criminalização que a cultura está sofrendo, apesar de tudo isso, temos uma produção, os artistas estão produzindo como nunca, os trabalhos estão repercutindo, a gente tem essas plataformas digitais que ajudam muito nesse diálogo e nessa distribuição e conexão com o público. O que mudou, hoje, são os caminhos. Como Gilberto Gil disse uma vez: a cultura tem que ser uma coisa ordinária. Tem que estar na ordem do dia, no nosso dia a dia. Estamos aí nessa missão.

Como foi o período de isolamento devido à Covid-19? De que forma isso impactou a Maré e o cenário cultural da cidade e do estado num todo?

Impactou profundamente. A primeira coisa foi que a gente teve que devolver a sede física, assim como a maior parte dos empreendedores desse país, autônomos e que trabalham empreendendo cultura. Houve redução de equipes, muitos projetos foram adiados, o Festival Sangue Novo, que vamos fazer agora em outubro, era para ter sido feito há dois anos. Conseguimos navegar esses mares tortuosos, esse momento desesperador, transformando muito conteúdo que a gente tinha para o digital. Fizemos filmes, pegamos o Mulher com a Palavra, que é um projeto lindo que temos e transformamos num programa de TV. Fomos tentando entender quais eram as interfaces possíveis com o digital, de que forma poderíamos criar conteúdos audiovisuais. O que foi possível fazer, a gente fez. O importante é que conseguimos passar por isso, foi difícil, doloroso, mas passamos adaptando os projetos. Depois desse momento de pandemia, que é o que estamos vivendo, a gente entende que o mercado está muito aquecido. Hoje, fazendo o recorte de música, todos os shows que a Maré lançou, esgotaram. São shows de três mil pessoas a cinco mil. Existe uma demanda reprimida muito grande pelo consumo da cultura, pelo ao vivo, pelo encontro. Isso é muito importante, sabe?

E nesse momento de retomada, vocês estão realizando diversos shows, trazendo novos nomes da música e outros já consolidados, além de produzir eventos e festivais. Existe uma pressa para que tudo isso se concretize? No sentido de sentir que esse tempo parado precisa ser recuperado.

Existe uma quantidade de conteúdos que ficaram guardados, que eram para ter sido soltos, e  como não conseguimos fazer isso, devido àquele momento mais crítico da pandemia, agora precisamos reorganizar e colocar as coisas para andar. Realmente, a gente está hoje com uma média de três shows por mês – no mesmo recorte de música. É uma demanda que foi muito suprimida e agora precisamos dar vazão. Mas o que estamos sentindo é que todos os shows estão tendo uma adesão de público muito grande e a gente está bem feliz. O recorte da Maré em música, nesse nosso posicionamento agora, é trabalhar com a renovação da música. Essa nova música brasileira contemporânea, música que a gente acredita, que a gente gosta de trabalhar, uma música diversa, de outras vozes. Estamos muito felizes com o conteúdo, com o público falando com a gente. O Festival Sangue Novo está com os ingressos de R$ 50 e R$ 25. Conseguimos fazer alguns projetos mais democráticos, conseguimos democratizar esse acesso à cultura, mas em outros projetos, infelizmente, não conseguimos patrocínio e temos que fazer ingressos menos acessíveis, mas por uma série de outras questões, que caberia em outra matéria, outra reportagem, o valor dos ingressos, que é uma coisa que precisa ser debatida e discutida muito mais profundamente para além de posts em redes sociais.

Estamos vendo grandes festivais sendo anunciados por todo o Brasil quase que quinzenalmente. Aqui, por enquanto, apenas dois estão definidos, um deles da Maré, o Festival Sangue Novo. Como Salvador se encontra nesse cenário nacional? Falta investimento? Interesse?

Deixa eu te contar uma coisa: todos os grandes artistas que a Maré está trabalhando estão me dizendo que Salvador é o terceiro ou o segundo mercado desses artistas. Isso me deixa muito feliz porque, às vezes, achamos que é Rio e São Paulo. Quando eles falam isso, eles querem dizer em termos de público ouvinte, de demanda de shows, de mercado que gira em torno daquele artista. A gente precisa que as marcas consigam entender e fomentar essa cena que está muito pulsante. Salvador, hoje, produz uma quantidade de novos artistas absurda. Todo dia a gente vê lançamentos novos, todo mês um clipe novo. É uma cena que está se estruturando mais, movimentando mais dinheiro e é natural que as marcas consigam fazer mais investimentos também. Salvador, nacionalmente, é um dos três principais mercados do Brasil em música hoje. Acho que esses festivais, que você falou, devem vir muito mais por aí. Tem o Festival Radioca, teve o Zonamundi, e acho que outros devem acontecer, sim, além do Afropunk e Sangue Novo. A tendência é que essa agenda fique cada vez mais forte e intensa, e que a gente consiga calendarizar produtos e fazê-los anualmente, gerando esse movimento da economia criativa. Temos que olhar para esses projetos como algo estratégico e que movimentam a economia do estado.

E como funciona o apoio do poder público e da iniciativa privada na área cultural? É suficiente?

 Sempre acho que precisa de mais, sempre acho que é insuficiente. O Festival Sangue Novo acontece graças a uma Lei de Incentivo chamada Fazcultura, e a gente tem a Coca-Cola e Ambev patrocinando por isenção fiscal, mas acho que as iniciativas pública e privada necessitam fazer um investimento maior. Não acho que é suficiente porque realmente não é. Se pegar números de quantidade de uso das Leis de Incentivo no estado da Bahia nos últimos quatro anos, você vai ver um investimento decrescente. Precisamos entender, tanto empresariado quanto poder público, a importância de manter e ampliar os investimentos na cultura. A gente não pode ficar achando que um ano vai ter edital e no outro a gente não sabe se vai ter. Edital é uma política muito importante, principalmente para o produtor e para o artista que está começando. Eu comecei através de um edital, quantos novos produtores podem se inserir no mercado através de edital?

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