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ABRE ASPAS

“O ódio também mobiliza muito”, diz psicanalista

Confia a entrevista com Liliane Sales, psicanalista

Por Liliane Sales – Psicanalista

12/01/2025 - 3:00 h
Liliane Sales, psicanalista
Liliane Sales, psicanalista -

Para Sigmund Freud, a agressividade é inata ao ser humano. Mas, admitindo-se essa realidade, como evitar a violência? O que fazer para que o seu descontentamento com o outro não leve a agressões racistas, como as feitas por uma enfermeira em um pet shop, ou os insultos e tapas que um motorista de aplicativo sofreu de uma médica? Ambos os episódios ocorridos esta semana em Salvador. Nesta entrevista, a psicanalista Liliane Sales fala sobre o porquê de as pessoas se sentirem autorizadas a usar a violência e explica o papel do simbolismo, elemento psicanalítico que permite ressignificar a realidade e evitar o confronto.

Nós tivemos esse caso da enfermeira que foi a um pet shop e fez um ataque racista à funcionária. Esse tipo de crime tem sido frequente no noticiário em todo o país. Considerou-se por muito tempo o mito do racismo cordial no Brasil, com as pessoas fingindo em público que não eram racistas. De uns tempos para cá, parte da população identificada com a extrema-direita tem se mostrado muito à vontade para agir publicamente de forma racista ou homofóbica, mesmo sabendo que está sendo filmada. O que está acontecendo com a sociedade?

É uma pergunta ampla, vou tentar responder. Quando a gente pensa no que está acontecendo com as pessoas, a gente pensa no racismo, na homofobia, na extrema-direita, em um conjunto. Há outras narrativas de sofrimento que compõem essa trama. É uma trama que envolve opressões de classe e gênero, passando pela política e mais especificamente o racismo contra a negritude. Isso está mais latente do que nunca. Há uma facilidade de a gente enxergar agora isso porque todo mundo tem uma câmera na mão. Está mais fácil flagrar situações como essas. E, de fato, as pessoas acabam não se intimidando. Na hora que está sob o ódio, sob a ira, nós vamos falar de ódio também, essa pessoa não consegue simbolizar essa raiva. De imediato, ela vocifera agressões.

Como lidar com a agressividade?

Um dado que importa para a gente da psicanálise é que a agressão é própria do humano. Nós todos somos agressivos em um certo sentido. A psicanálise não vai falar assim "nós somos contra a agressividade". Freud já trazia isso de que a agressividade é própria do humano. O que a gente pode pensar, que faz um pouco a diferença, é a violência. Essa, sim, tem uma lei que rege, a única lei possível para fazer-nos conviver em sociedade. Vamos lembrar de O Mal-estar na cultura, de Freud. É preciso regular, mas nós odiamos com muita facilidade. Todos nós. A questão é que parece que o ódio hoje não tem um destino político. Os dispositivos que a democracia nos dá para mediar isso entre o ódio e a violência, entre o limite disso e uma lei de convivência, não tem dado conta. Haja vista que as pessoas andam negando a própria lei, negando as regras da sociedade. Esse negacionismo também vem para que todo mundo se autorize a colocar a sua ira em cena. Eles se agrupam, por exemplo, em pessoas brancas, ou religiosas, pessoas da esquerda ou da direita. Todo mundo acha o seu grupo para dar legitimidade à sua voz, não importa que voz é essa. Esse é um lado. Acho também que o avanço da extrema-direita deu um aval para isso. As falas de um líder como Bolsonaro autorizam isso. Ele é um líder que autoriza as pessoas a destilarem o seu ódio. Vive defendendo armas e golpe de Estado. A investigação ainda não foi finalizada, mas a gente prevê para onde está caminhando. Esses grupos vão ganhando uma unidade, o que reforça os laços contra um inimigo em comum, a esquerda, a política de gênero, as cotas. O que quer que seja. E aí eles ganham força. A força do ataque é que se sobrepõe. Esse líder, de alguma forma, ganha o desenho de um pai. Não importa se Lula ou Bolsonaro. Ou um artista que porventura ocupe esse lugar. O que importa é que tenha um líder que autoriza e que de alguma forma faz voltar algo de uma fantasia infantil de que há um outro que responde por mim. Um outro que não só responde por mim como me autoriza. E isso dá algum contorno para um grupo como esse. As pessoas sozinhas possivelmente não fariam o que fazem.

E uma pessoa, sozinha, que não sente essa legitimação do grupo, quando é flagrada muitas vezes recorre ao argumento de que está com problemas psicológicos...e, por outro lado, quando está em grupo mantém as suas declarações porque confia no respaldo do líder e de seus pares. É isso?

Exatamente. Agora, geralmente a pessoa alega problemas psicológicos quando está com uma questão na justiça. Como ela nega a própria lei, quando a lei bate à porta tem que responder por isso. A única maneira que a gente tem de lidar com a situação, a não ser que todo mundo pudesse fazer análise, é ser responsabilizado pelos seus atos. O processo analítico é isso, você se responsabilizar pelos seus atos. Quaisquer que sejam, desde dormir além da conta e perder um compromisso. Não só os atos de violência. Qualquer ato de sua vida. A análise faz um espelho para olhar para si. O grupo tem um espelho identificatório. Uma identificação com o grupo, com o líder, que pode ser interessante por um lado, mas pode ser perniciosa. No caso do influencer que viralizou com o feto do próprio filho, eu vi um depoimento de sua mulher dizendo que ele é autista. Ela disse isso. Se é ou não é, a gente não sabe. Não é a questão também, mas vem ao encontro com isso de ter uma justificativa quando a coisa fica ruim. Ou diante da justiça ou diante de um cancelamento na rede social. O Instagram o obrigou a retirar a postagem. Ou seja, alguém que parecia querer ganhar um like diante da própria desgraça.

É algo que parece não ter fim, essa coisa do uso do celular na busca de likes. Teve o episódio com a moça da janela que não cedeu o lugar, foi filmada e ganhou milhões de seguidores. Parece que vamos viver mesmo num grande hospício...

Na verdade, eu acho que já é um grande hospício (risos). Tem um bando de gente se sentindo estrela. Um bando de gente que ganhou notoriedade apenas fazendo selfie. O que é hoje? Todo mundo fica vendo fotos de famosos para saber onde eles estão. O que antes era uma coisa muito bem guardada, todo mundo guardava muito a sua intimidade, hoje ganhou um outro espaço, é uma batalha pelo reconhecimento. E vão se criando personagens. Parece-me que chega o momento em que a pessoa se confunde com o próprio personagem. A pessoa faz tanto isso que depois não consegue mais separar quem é o sujeito e quem é o personagem da rede social. A grande fantasia dessa pessoa é ter um interlocutor que aplauda tudo o que ele faça, que o ame sobre todas as coisas mesmo em suas falhas. No final das contas, isso é uma falácia, um equívoco. Quando o outro não consegue se articular com o seu interlocutor, não consegue dialogar com o seu interlocutor, o que ele quer na verdade é a afirmação de si mesmo. Ele quer que todo mundo aplauda aquilo que ele gosta, o que ele acredita, o que ele faz. Ele não tem uma mediação com o outro, ele não considera o outro. Ele considera apenas sua vontade de ser reconhecido. O reconhecimento para a psicanálise não é uma coisa ruim. A Fernanda Torres agora está muito feliz com o reconhecimento de seu trabalho. Claro que isso é uma coisa linda e o Brasil inteiro...inteiro, não, a metade do Brasil está muito feliz e orgulhosa. Nós também levamos nossa cota de reconhecimento. Afinal de contas, olharam para baixo da Linha do Equador. Isso é bom. A questão é quando você usa o tempo todo o outro como espelho. É aí que a coisa se perde porque vai para uma alienação banal narcísica, o espelho de si mesmo.

A questão da audiência também parece uma coisa cruel. Enquanto o influencer está satisfazendo a expectativa do público a coisa está ótima. De uma hora para outra, tanto a passageira do avião quanto Fernanda Torres ganharam milhões de seguidores. Mas quando o influencer pisa na bola pode ser cancelado de vez...

Não sei se é cancelado de vez. A gente vê no noticiário um jogador que cometeu estupro e daqui a pouco ele ganha um milhão de seguidores. Às vezes, tem um efeito contrário e isso é curioso. O que a gente diz na psicanálise é que tem um prazer no ódio, também. O ódio não é uma coisa somente criticada na sociedade. A psicanálise divide as três paixões do ser: ódio, amor e ignorância. A ignorância é na linha do negacionismo, eu não quero saber. Quanto mais eu sei, tenho que lidar e olhar para isso. Eu tenho que me posicionar. Se eu não sei, é melhor para mim. A ignorância é uma das paixões do ser. O amor é o que a gente sabe e o ódio também é uma paixão do ser. Muitos movimentos desses vão pelo ódio mesmo. Eu não diria que é de verdade um cancelamento. Não sei. Alguém que sai do Big Brother com uma altíssima rejeição depois dá a volta por cima. O ódio também mobiliza muito.

E o ódio nos esportes? Eu conversei com pessoas ligadas em futebol e há um pensamento de que além do racismo, que é real, existe também no futebol a cultura de desestabilizar o outro, o adversário. Que para fazer alguém perder as estribeiras vale a pena qualquer tipo de provocação. No caso da Espanha, por exemplo, a gente vê que por mais evidentes que sejam os casos de racismo contra Vini Jr, boa parte do país continua mandando mensagens ruins para ele...

E ele bravo na maneira como se defende, né? Acho bonito. É isso. Vozes que eram ocultas na sociedade começam a ganhar alguma notoriedade. Tem uma disputa, eu vou te desestabilizar nem que seja por via da agressão porque eu tenho que ganhar e não tenho a capacidade de simbolizar. O que é que a gente faz? Nós não podemos brigar com o chefe todo dia. Você respira fundo, ouve uma música, faz qualquer coisa para simbolizar esse mal-estar. Mas estamos falando de pessoas que parecem ter orgulho de mostrar a sua ira. A lógica de ganhar de qualquer jeito. No imaginário, há um cabo de força aí sempre presente. Há uma ilusão narcísica de que essa superexposição pode contemplá-lo, independente do que ele esteja fazendo. Quando a pessoa perde seguidores ou quase é cancelada e vai chorar na Internet, ou se sente odiada e decide se ausentar um pouco, é aquela angústia do vácuo, como a moçada diz hoje em relação a ser deixado pelos pretendentes. Mas a maioria volta com uma outra roupagem, porque eles vivem de likes.

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