MUITO
O passado a caminho
Crônica de Franklin Carvalho*
Por Franklin Carvalho*

Um vídeo publicado recentemente na internet nos alerta: “Não diga que não há coisa boa na MPB atualmente. Fulana, que é do Pará, canta com a potência de Gal Costa. Já Mariazinha, que veio da Bahia, é poesia e atitude igual Rita Lee. E João de Tal, do Paraná, tem um suingue do mestre Jorge Benjor…”. A lista prossegue com amostras do som e das performances de vários jovens, mas parece condenar todos eles, e nós, ouvintes, à sombra do passado.
Essa situação se explica pelas escolhas do mercado musical, que sufocam a inovação, mas também porque tem sido mais lucrativo à indústria cultural manter os olhos voltados para trás.
Sim, o passado está cada vez mais presente, mais fácil de ser encontrado numa lista infinita de produtos na web. Hoje é possível assistir todos os capítulos de uma novela televisiva dos anos 1970, ou ouvir numa só plataforma digital qualquer disco de um cantor que lançou 20 álbuns. Os canais de streaming permitem conhecer os clássicos do cinema de muitas décadas. E tudo isso sem a clientela gastar uma fortuna ou encher prateleiras com fitas empoeiradas ou vinis pesados. Ao mesmo tempo, antiquários on-line vendem de tudo que a memória dos consumidores pede, até itens com restrição de comércio, infelizmente.
O passado se modernizou e se infiltrou em nós, e outras épocas estão por aí, falando conosco graças à tecnologia. Sempre houve alguma coexistência entre o antigo e o novo, mas agora a parede foi quebrada.
Mais do que isso, o passado entrou nos cérebros da inteligência artificial, que é alimentada com bilhões de informações que a humanidade produziu ao longo de milênios. A IA sabe desenhar um rosto humano com detalhes realistas porque “viu” inúmeras fotografias. Pode imitar grandes escritores porque conhece os textos que eles produziram. Pode até compor músicas parecidas com as de um grande maestro, porque esquadrinhou as suas partituras e o seu estilo. Mas, como já disse o neurocientista Miguel Nicolelis, a máquina não pode criar uma sonoridade inteiramente nova, um ritmo que ainda não foi tocado, um roteiro de filme verdadeiramente criativo. Porque a IA somente repete, reproduz, retruca.
Existe algo de ainda mais curioso na força do passado. O historiador Jean Delumeau dizia que Martinho Lutero arrebatou os protestantes não porque prometesse algo de novo no futuro, mas porque propunha levá-los de volta a um período feliz do cristianismo primitivo. Daí talvez se explique, penso eu, que vários projetos políticos seduzam a humanidade com a ideia de que já houve um tempo bom onde tudo era mais puro (inclusive as raças), seguro, limpo, e harmonioso. Que é preciso retomar aquela suposta paz. E aí temos fortes saudosismos querendo resgatar tempos felizes que ninguém viu.
Sim, o passado é importantíssimo e é interessante como os moços nas redes sociais fazem postagens contando histórias antigas da música e da sociedade brasileiras, apesar de alguns exageros e equívocos nas versões que apresentam.
É preciso mesmo estar de olho nos dias de ontem, porque eles podem voltar e nos atropelar, por mais ridículos e inacreditáveis que sejam seus personagens e enredos. Afinal, domina melhor o presente quem percebe nele os reflexos de outrora.
Quem não está distraído, usando a internet só para compartilhar selfies, pode encontrar toneladas de informações, que nascem em árvores e estão gratuitas nos sites de pesquisa, por exemplo.
Mas, ao contrário da IA, o ser humano que aproveita o filme, o texto ou a canção antiga pode gerar algo inteiramente moderno e arrojado, se temperar seu conhecimento com experiências de vida e um olhar sensível. E assim dar o primeiro passo, sair do que fomos para o que seremos.
*É autor de Tesserato – A tempestade a caminho (Ed. Noir)
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