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O poder da farda: quase 60 cidades da Bahia apostam na militarização das escolas públicas

Por Bruna Castelo Branco

05/08/2019 - 9:35 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
A escola Professora Altair da Costa Lima, em Dias D’Ávila, foi uma das primeiras a adotar a gestão compartilhada com a Polícia Militar
A escola Professora Altair da Costa Lima, em Dias D’Ávila, foi uma das primeiras a adotar a gestão compartilhada com a Polícia Militar -

Não importa se o dia está quente. Exatamente às 12h45, sob o sol de meio-dia, os estudantes do 6º ao 9º ano, todos fardados, entram em forma no pátio do Colégio da Polícia Militar, o CPM, na unidade do Dendezeiros, na Cidade Baixa. O capitão Ronaldo comanda tudo de cima, no primeiro andar da escola, e dá comandos pelo microfone. Na parede está escrito: “A palavra convence, o exemplo arrasta”.

– Sentido! Descansar!

Parece um balé. Os alunos batem as pernas e os pés, movem as mãos e aguardam as próximas orientações, sempre com postura. No final da atividade, que dura uns 20 minutos, estão liberados para ir para a sala. Na saída, o capitão Ronaldo grita: “Com o brado de CPM, fora de forma. Marche!”. Os alunos respondem, todos juntos: “CPM”. E marcham.

Na porta de cada sala, um colega espera os outros entrarem. É o xerife da semana, um líder, responsável por representar os colegas por cinco dias. Em caso de “transgressões disciplinares”, é o xerife quem passa para algum policial militar (PM) o nome dos transgressores. Será que dá ruim? O professor universitário Henrique Assumpção, formado no colégio em 2003, confirma: “Era o motivo das maiores tretas! Se tinha alguém na sala que você não gostava muito, já procurava razão para colocar o nome”.

O modelo disciplinar, como já deu para ver, é rigoroso. Como explica o vice-coordenador da rede CPM, capitão Rêmulo, a escola segue a cultura militar, mas de modo mais brando do que nos quartéis da polícia. “É um modelo, nem todo mundo gosta ou se adapta, por isso os pais precisam conhecer o regimento antes de matricular o filho”. Os alunos ficam mais aquietados em sala de aula, um alento para professores que lidam com adolescentes todos os dias.

Essa fama levou 58 municípios baianos a buscarem o Sistema de Ensino dos Colégios da Polícia Militar (SECPM), implantado com apoio da PM. A iniciativa, que começou em 2018, já está em 53 unidades da rede municipal, com mais 10 em processo de implantação. O tenente-coronel Ricardo Albuquerque, coordenador-técnico do comando geral e gestor do projeto, conta que a iniciativa veio das prefeituras do interior. “Nosso comando geral foi demandado várias vezes, por vários prefeitos, querendo a instalação de colégios da Polícia Militar em seus municípios. Como nós não temos condições de atender, surgiu essa ideia de fazer uma gestão compartilhada”. A ajuda é na parte disciplinar, não na pedagógica, que continua a cargo das secretarias do interior.

O “militar” não vai no nome, mas está em toda parte: nos uniformes dos alunos, nos policiais que trabalham nas escolas, nos cabelos cortados dos meninos e no coque das meninas, que não podem entrar de cabelo solto. Em julho, o governo federal anunciou que a implantação desse modelo é prioridade do Ministério da Educação (MEC), com investimento de R$ 40 milhões em 108 escolas. Ainda de acordo com o MEC, há 203 escolas cívico-militares no Brasil. O CPM, onde tudo começou por aqui, fica como exemplo.

No dia 26 de julho, o Ministério Público Federal (MPF-BA) encaminhou uma recomendação às prefeituras e escolas que estão na parceria. No documento, o MPF-BA sugere que as escolas municipais parem de impor aos estudantes padrões estéticos quanto a cabelos, unhas e o uso obrigatório de bonés e boinas, por exemplo. “São impostos aos alunos padrões estéticos e de comportamento baseados na cultura militar, sem qualquer relação ou potencialidade para a melhoria do ensino”, detalha nota divulgada pelo órgão.

Ainda segundo a recomendação, o regimento dessas escolas viola a Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. A nota destaca que “os estudantes, principais vítimas da violência, em vez de serem penalizados, com ensino autoritário, que suprime suas liberdades e individualidades, devem ser alvo de políticas públicas que promovam sua proteção integral”. Os órgãos oficiais têm um prazo de 15 dias para responder à recomendação.

Lá no CPM do Dendezeiros, a matriz, quem estuda de manhã já está em forma às 6h45, pronto para os 20 minutos de “sentido”, “descansar” e avisos de rotina. A vistoria de cabelo acontece a cada 15 dias, e quem deixa os fios crescerem fica sem poder entrar na escola até resolver. Já aconteceu com Henrique. “O meu cabelo cresce muito rápido, precisava cortar sempre, mas a gente não tinha dinheiro, eu não podia cortar a cada 15 dias”.

Sem maquiagem

Outra infração é ir de uniforme errado ou sujo. Há duas fardas para usar ao longo da semana, uma marronzinha, que vem com boina, duas camisas, saia ou calça, e sapato preto. A outra, usada nas sextas-feiras, é igual, só que azul. Brinco longo e maquiagem forte também não pode. Nada que faça o menino ou a menina sair do padrão visual. Aliás, cuidar do uniforme é obrigação até mesmo da porta da escola para fora: se um aluno for visto fazendo zoada na rua, e se estiver de farda, vai dar problema.

“Uma vez tivemos um caso de uns estudantes que estavam fazendo bagunça do ônibus, uma policial da reserva viu, anotou os nomes e passou para a gente. Eles sabem que são mais cobrados do que os alunos das outras escolas, não tem jeito, a farda tem um peso”, conta capitão Rêmulo Veloso. A pena? Ir à escola dia de sábado e escrever uma redação. “Eles não gostam de vir, então se esforçam para não tomar transgressão e vão se acostumando com as regras, como em toda escola”, conclui o capitão.

Mas, da sala de aula para dentro, o professor é quem manda, garante o ex-aluno e o capitão Rêmulo. “É como uma escola estadual comum, 70% dos professores são da rede estadual, encaminhados para cá pela Secretaria de Educação. A gente segue a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), prepara os alunos para o Enem [Exame Nacional do Ensino Médio]”, explica Rêmulo.

Imagem ilustrativa da imagem O poder da farda: quase 60 cidades da Bahia apostam na militarização das escolas públicas
| Foto: Joá Souza / Ag. A TARDE
No Colégio da Polícia Militar, em Salvador, há "xerifes" nas salas de aula e regras de como cortar e prender os cabelos

Os outros 30% são policiais militares com licenciatura, como capitão Rêmulo, por exemplo, que dá aula de história. Não deu para deixar de perguntar se todos os assuntos são dados por inteiro, sem censura de um ou outro termo. O professor garante que não, e Henrique, ex-aluno, confirma. “Na sala de aula, há total autonomia, os professores podem mudar as cadeiras, podem abordar o assunto como quiserem, desde que sigam a BNCC”.

Mesmo os professores civis são cumprimentados como militares na chegada. A turma os recebe de pé, em forma, e gritam em coro: “Bom dia, professor!”, com uma continência. Depois, a aula segue normal.

Henrique Assumpção entrou no CPM pequeno, no 2º ano do ensino fundamental, e não tem referência de como é estudar em uma escola “civil”. A família decidiu que ele estudaria lá por ser uma escola boa e pública. “Venho de família humilde, não teria como pagar escola particular, e o CPM tem uma estrutura boa, é conhecido por ser um bom colégio”, lembra.

De 2005 para cá, a unidade matriz vem melhorando segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), medido pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). De 2005 para 2017, a avaliação dos alunos do 9º ano foi de 4,4 a 4,7. A meta para 2019 é chegar a 6. A média da Bahia, entre estudantes da mesma faixa etária, é 3. Para entrar no colégio, só por sorteio. As vagas são divididas entre 70% para filhos de militares e 30% para os filhos de todo mundo.

Neste ano, 50.422 se inscreveram para preencher as 2.381 vagas das escolas da rede CPM. E, explica capitão Rêmulo, entram para ficar. “A evasão, que é um problema na educação no Brasil, é quase nula, eles se sentem valorizados, são incentivados”.

Para a pedagoga Cybele Amado, diretora do Instituto Anísio Teixeira, os resultados não têm tanto a ver com rigidez disciplinar, mas com o projeto pedagógico. Neste momento em que cada vez mais escolas particulares seguem por um caminho inverso, de educação construtivista e alunos sem uniforme, surge uma dúvida quanto ao futuro de colégios mais conservadores. “O modelo não pode ser mais importante do que o projeto pedagógico. As melhores escolas públicas da Bahia, que atingiram mais que 7 [no Ideb], não seguem esses modelos”. Disciplina sozinha não basta. Precisa ensinar.

Pular o muro

Dizem que o militarismo vem junto com um senso de camaradagem. O policial militar Diego Ramos concluiu o terceiro ano no CPM em 2010 e guarda boas lembranças em relação a isso. “Quando a gente não podia entrar na escola por ir com a farda suja, por exemplo, pulava o muro, só para ficar com os amigos. Pode perguntar a qualquer pessoa da minha geração, pular o muro era muito comum, todo mundo conhece alguém que fez isso”, conta.

O colégio prepara os alunos para o Enem, mas também os incentiva a seguir carreira militar. O coordenador da rede, capitão Rêmulo, explica: “É um dos nossos objetivos aqui, mas também temos muitas aprovações em universidades”. Henrique Assumpção tentou ir para a polícia, mas não se adaptou. “Parece um pouco com a escola, mas numa versão mais rígida”. Diego, que também estudou no CPM a vida inteira, decidiu seguir carreira. Mas, ainda assim, acha que tem coisa que pode mudar. “Acho que não precisa ter tanta cultura militar para as crianças”.

Realmente, começa cedo. Anexo ao CPM Dendezeiros fica a Creche Nossa Senhora das Graças, que recebe crianças de 2 a 5 anos. A administração é municipal, com funcionários concursados da prefeitura e espaço cedido pelo Colégio da Polícia Militar. Tem um PM de apoio, o soldado Luciano. A pedagoga Valéria Menezes, diretora da creche desde 2013, conta como funciona: “A gestão é toda da prefeitura, mas, por exigência da polícia, os alunos usam a farda da polícia”.

É interessante de ver. Tantas criancinhas, todas vestidas de camisa branca e short azul. Aos 5 anos o “gorro” já entra na farda, um chapéu azul parecido com o que usam no colégio. “Já é para eles irem se acostumando, para o impacto não ser tão grande quando chegarem lá”, diz Valéria, apontando para longe. Lá é o CPM, do outro lado da Vila Militar, o destino de todas as crianças que saem da creche.

Para os menores, de 2 e 3 anos, a creche funciona em horário integral. Eles chegam de manhã, às 7h, e saem às 17h. Tomam café, fazem as atividades, lancham, almoçam, escovam os dentes, dormem, lancham de novo. “Aqui, tudo tem que ser feito no horário. Se algo passar da hora, quer dizer que outra coisa não será feita. E as crianças voltam assim para casa, muitas não tinham essa organização... Elas criam uma rotina nas famílias”, diz a diretora.

Civil-militar

A Escola Municipal Professora Altair da Costa Lima, em Dias D’Ávila, foi a segunda das 63 a entrar no projeto de gestão compartilhada com a PM. Por enquanto, só unidades que atendem ao fundamental II, do 6º ao 9º ano, podem participar da parceria. Os que chegam até aí voltam ao sistema regular no ensino médio. Larissa Reis, aluna da escola desde o 6º ano, diz que se adaptou bem. “A sala fica mais silenciosa, é mais fácil prestar atenção, que vou sentir saudade no ano que vem”. Quem dá o apoio disciplinar são policiais da reserva, todos pagos pela escola. Na unidade que visitamos, trabalham seis PMs, que circulam pelos corredores como no CPM.

De cara, a diferença mais visível entre a Altair e as escolas comuns é a farda. Não é igual à do CPM, mas tampouco lembra o das outras escolas municipais do estado. De acordo com o secretário de Educação de Dias D’Ávila, Francisco Lessa, o uniforme é significativamente mais caro que o normal. “Mas o gasto que tivemos com a estrutura – que já estava lá antes da parceria – não muda muito de uma escola para a outra, não tem essa diferença”.

Outra mudança, também fácil de ver, é a limpeza e a qualidade dos materiais em sala de aula. De acordo com o subtenente Sérgio Glaydson Lima, diretor disciplinar, é mérito do novo sistema. “O fardamento é mais caro, mas não tem pichação nas paredes, nas carteiras, os banheiros estão sempre limpos. E isso é coisa deles mesmos, aprenderam a valorizar o espaço”.

Todos os dias, pontualmente às 7h30, os alunos entram em forma e cantam o hino. A revista de cabelo e fardamento também acontece: meninas usam coque e meninos deixam bem baixinho. Assistimos ao 6º A entrar em forma, comandado pela líder de sala daquela semana – é como o xerife do CPM, mas com um nome mais civil. Quando questionada sobre a recomendação do MPF-BA, a escola respondeu: “Foi apenas uma recomendação, emitida segundo o entendimento do promotor, que pode ser acatada ou não pelo destinatário. Se não acatada, cabe ao promotor ajuizar ação judicial, e então o Judiciário dirá se ele tem razão ou não. E, aparentemente, no caso, não tem razão”.

A parceria completou um ano em julho, então não há indicadores numéricos que possam comprovar a melhora. “Como só é avaliado no 9º ano, só dá para saber a real mudança quando esse 6º de hoje chegar lá”, esclarece a diretora da unidade, Kátia Murta. Em 2015, na última avaliação, o Ideb da escola ficou em 2,9.

As razões para escolas municipais buscarem a presença permanente da polícia no espaço são muitas, e vêm lá de trás, antes mesmo da escola. O secretário de Educação expõe: “Tem crianças que não têm estrutura em casa, porque os pais não tiveram. Os professores simplesmente não conseguiam fazer o que precisam fazer, que é dar aula. São comuns situações de violência, como uso e venda de drogas, agressão verbal entre colegas e outros desrespeitos, como usar celular em sala”. Pelos mesmos motivos, a Escola Municipal Laura Folly, também em Dias D’Ávila, já está implantando o “vetor disciplinar”, como chamam a parceria.

Para não dizer que houve unanimidade, Kátia conta que teve professor e família que não gostaram muito de primeira. “Mas acabam gostando porque fica mais fácil dar aula”. O professor de matemática André Guimarães está na unidade há 15 anos e nota mudanças importantes, especialmente, é claro, quando se fala em comportamento. “A gente já está vendo resultados mais satisfatórias em sala de aula. Não é o esperado ainda, mas está melhorando progressivamente”.

A Altair da Costa Lima leva nome de professora, mas, como outras escolas da Bahia, precisou mais do que professores para fazer educação. “Não é que tinha perdido o controle, são dificuldades e violências que estão nas cidades e chegaram ao sistema de ensino”, diz o subtenente. Periga ficarmos presos nesse ciclo.

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