MUITO
“O poder do médico é bem maior que o poder do paciente”, diz médico da Sesab

Por Gilson Jorge

Em diferentes estados do Brasil, médicos insatisfeitos com a atuação política do Conselho Federal de Medicina (CFM) começam a levantar suas vozes em favor da ciência e cobrando punição a quem respaldou a adoção do tratamento precoce para a Covid-19 e se envolveu em corrupção na compra de vacinas e medicamentos durante a pandemia. Uma das principais vozes desse movimento na Bahia é Renan Araújo, médico do trabalho aposentado da Previdência Social, médico da Secretaria de Saúde do Estado da Bahia e um dos membros da coordenação estadual da Associação Brasileira de Médicas e Médicos pela Democracia. Nesta entrevista, Araújo cobra investigação da diretoria do CFM, fala em politização inédita do Sindicato dos Médicos com a eleição de negacionistas de extrema direita para a sua diretoria, mas vê um ponto de inflexão com médicos arrependidos pela radicalização e posições intolerantes surgidas na categoria em reação à implantação do programa Mais Médicos.
O presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, admitiu em entrevista este mês ter liberado a adoção de hidroxicloroquina e ivermectina no chamado tratamento precoce para a Covid-19, embora não haja comprovação científica de sua eficácia. Como os médicos que ficaram na linha frente do combate à pandemia veem essa posição do conselho?
Essa posição do conselho contraria todas as manifestações das sociedades de especialidades médicas e da Associação Médica Brasileira (AMB). Contraria as resoluções da Organização Mundial de Saúde e contraria, sobretudo, todas as evidências científicas ou as conclusões científicas a respeito do combate à Covid-19 no mundo. É um posicionamento contrário à ciência. E isso fez com que o Conselho Federal de Medicina colaborasse com o desempenho desastroso do combate à Covid-19 no Brasil. Poderíamos ter cerca de 200 mil mortos ou até menos e estamos agora com 600 mil mortos. Diferentemente do mundo, o Brasil é um dos países que tiveram o pior desempenho no enfrentamento da pandemia. E o conselho foi cúmplice. Um vídeo divulgado recentemente do presidente do Conselho Federal de Medicina, Mauro Ribeiro, numa live com o presidente do Conselho Regional de Medicina de Goiás, admite publicamente que não havia evidência de eficácia do tal do tratamento precoce com hidroxicloroquina e ivermectina, principalmente, mas que mesmo assim ele assumiu uma posição de neutralidade porque estava havendo a politização do debate. Nós já desconfiávamos de que havia um posicionamento permissivo. Na medida em que ele admite as razões, esse posicionamento passa a ser criminoso, porque ele sabia do risco de assumir essa atitude. E o que é que ele diz? Assumimos essa posição porque estamos diante de um presidente da República que acolheu o conselho. Ele fala, já nos recebeu cinco vezes, abriu as portas e tem atendido às reivindicações da categoria médica, que ele chama erroneamente de classe médica, não é uma classe. É uma categoria profissional. Ele diz que a classe médica estaria sendo bem tratada pelo presidente e que esse posicionamento seria uma retribuição. É condenável. Deixa de ser negligência e passa a ser crime. Passa a ser uma parceria com o genocídio.
E a relação dos médicos com o Conselho, como fica?
Dois aspectos precisam ser desmistificados. Primeiro, a principal função do Conselho Federal de Medicina e dos conselhos regionais é defender a sociedade brasileira do erro médico e das más práticas médicas. Não é defender o médico. É uma autarquia federal que tem como objetivo defender a sociedade. Por conseguinte, defender a prática da boa medicina. Uma segunda questão, também muito grave, essa deturpação, esse desvirtuamento das funções do conselho, do que está no Código de Ética Médica, é a questão da autonomia médica. O próprio código diz que há autonomia desde que a medicina seja praticada baseada nas evidências científicas. Não cabe o vale-tudo. A autonomia médica se dá dentro de um contexto. E existe, também é muito importante, a autonomia do paciente. A relação médico-paciente termina sendo desigual porque o poder do médico é bem maior do que o poder do paciente. Então, a autonomia médica está sendo desrespeitada. Quando surge essa questão da Prevent Senior, nós sabemos que outras operadoras adotaram posições parecidas, mas a Prevent Senior talvez pelo volume de situações e pelo tamanho da empresa, ganhou mais notoriedade, mais mídia. Mas o que está sendo mostrado é que houve por parte dessa operadora um desrespeito absurdo à autonomia do médico. Hoje [11.10] eu estava lendo uma denúncia de que militares do Ministério da Saúde estariam ameaçando, pressionando médicos para a prescrição do tal kit covid. E a direção e as coordenações médicas dessa instituição estariam travando uma guerra psicológica, de pressão e ameaças a médicos e médicas muito grande para que houvesse essa prescrição. Já há denúncias de médicos que participaram, já há denúncias de pacientes, processos na justiça, há inquérito aberto pelo Ministério Público de São Paulo, há CPI aberta no município de São Paulo e no Estado de São Paulo, há a própria CPI no Senado. As informações estão vindo à tona e são estarrecedoras. O Conselho que deveria defender a sociedade e defender a categoria médica para que as coisas se dessem de acordo com o conhecimento científico abre um precedente enorme. Se esse cidadão e essa diretoria do CFM e todos os envolvidos não forem julgados e condenados exemplarmente, o exercício da medicina no Brasil daqui para frente vai estar comprometido. Não há precedentes do que está acontecendo.
Houve um relato de um paciente da Prevent Senior, Tadeu Andrade, que em depoimento à CPI disse que houve uma decisão do plano de saúde de que seria adotado o kit covid e que ele não poderia permanecer recebendo o tratamento intensivo, com o oxigênio, e que só teria sobrevivido porque houve uma intervenção da família e foi tratado em outro lugar. Mesmo com todas as evidências, uma parte considerável das entidades que representam os médicos seguem apoiando o presidente do CFM. O Sindicato dos Médicos da Bahia (Sindimed), por exemplo, emitiu nota respaldando Ribeiro. A que o senhor atribui esse respaldo?
O Sindimed foi tomado pela extrema-direita bolsonarista. Nas últimas eleições, o grupo de médicos da área democrática, que atua em defesa do estado democrático de direito, dividiu-se em duas chapas e por uma pequena diferença essa turma da extrema direita foi eleita. É um pessoal negacionista, é um pessoal intolerante, que pratica o discurso de ódio e, nessa onda que tivemos nos últimos anos, aconteceu a ascenção dessa turma à direção de algumas entidades médicas. Por ódio ao Mais Médicos, por ódio aos médicos cubanos, por intolerância. Essa turma cresceu no movimento médico e expandiu esse tipo de pensamento na categoria médica. Hoje, já está havendo muita reflexão e muito recuo por parte de médicos e médicas no Brasil e na Bahia, admitindo que a opção feita foi errada. Porque as coisas estão indo por caminhos muito perigosos. O Sindimed é composto por essa turma de extrema direita, que fez uma campanha falando em sindicato sem partido e que está exercendo um partidarismo que nunca houve antes. Que tem inclusive realizado atividades políticas dentro do sindicato com partidos de direita e extrema direita, convenções de partidos, debates. Trouxe, recentemente, a Mayra Pinheiro, ex-presidente do Sindicato dos Médicos do Ceará e que é uma negacionista que ocupa um cargo importante no Ministério da Saúde.
Foi a que ofendeu os médicos cubanos…
Sim. Ela foi indicada para o cargo por isso. Uma pessoa de extrema direita, intolerante e que no auge da crise de Manaus criou o aplicativo TrateCOV e foi lá implantar a adoção massiva do tratamento precoce. É gente assim que se alinhou, que se juntou, então, não vemos com surpresa o Sindimed da Bahia apoiar, vergonhosamente, o cidadão Mauro Ribeiro, que tem adotado essas posições publicamente. É a certeza da impunidade. Só que o Conselho Federal de Medicina não é uma entidade sindical, cultural ou científica. É uma autarquia federal. Ele sofre fiscalização dos órgãos de controle do Estado Brasileiro. Esse cidadão Mauro Ribeiro, o vice-presidente [Donizetti Dimer Giamberardino Filho] e essa diretoria têm que ser investigados a fundo, a partir da CPI, a partir do Ministério Público Federal, a partir do Tribunal de Contas da União. Ele tem que ser fiscalizado porque não ficou neutro, não foi em defesa dos médicos. O que se está vendo na Prevent Senior é que os médicos ficaram desprotegidos da pressão que houve da Prevent Senior, sofrendo todo tipo de ameaça. Esse conselho se posicionou ao lado de um governo genocida, que negou a vacina, as medidas não farmacológicas do controle da pandemia, que se envolveu em corrupção na compra de vacinas, vacinas até que não existiam, nós estamos vendo fartamente através da CPI. Cegamente, o conselho se aliou a esse tipo de coisas, o que gerou mortes evitáveis que os cientistas avaliam em torno de 480 mil a menos. Todos deveríamos estar unidos, aliados à ciência, ouvindo o que as sociedades de especialidades médicas estavam falando, principalmente a Sociedade Brasileira de Infectologia, a Sociedade Brasileira de Medicina Intensiva e a Sociedade Brasileira de Pediatria. A própria Associação Médica Brasileira, quando mudou a direção e entrou um grupo de defesa da ciência, porque o outro anterior além de estar envolvido em corrupção, estava envolvido em negacionismo. Esse pessoal foi derrotado. O nosso papel nesse momento é mostrar à população a verdade, esclarecer, defender a medicina, a ciência, os médicos e fazer com que haja julgamento e punição. Senão, a ciência vai ser jogada na lata do lixo. Se eu tenho autonomia completa para fazer o que quero, se eu não sigo a ciência, se eu chamo experimento em que aplico medicamentos ineficazes, altero prontuários médicos, altero as declarações de óbito, se eu estabeleço o tratamento do cliente de acordo com o que posso ou não gastar com ele de oxigênio e de medicamentos, se eu defino tempo de internação em UTI por cálculos meramente econômicos, não estou praticando medicina, estou praticando o nazismo. Na medida em que você tira um paciente da UTI alegando que ele vai para os cuidados paliativos, e você nega a ele a possibilidade de tratamento integralmente, você está praticando uma coisa que não é cuidados paliativos e certamente vai levar o paciente à morte ou a sequelas graves.
Ainda sobre a imagem do Conselho, o respaldo da entidade foi mencionado por Bolsonaro em seu discurso na ONU. Nessa live que o senhor mencionou, Mauro Ribeiro alega que a categoria médica recebeu benefícios do governo. O senhor tem notícia de alguma decisão do governo que tenha sido benéfica para os médicos ou para o exercício da medicina em geral?
Os benefícios ele teria que dizer quais são. Teria a obrigação. As principais reivindicações dessa turma da extrema direita médica quando se tornou hostil ao Governo Dilma eram acabar com o Mais Médicos e a implantação de uma carreira nacional de médico. Ainda dizem assim: comparável à carreira de juiz federal. Essa é a reivindicação principal. Não se fala em fortalecimento do SUS. Na assistência à saúde não existe só o médico. Existem diversas outras profissões envolvidas na atenção à saúde. Primeiro, é uma posição exclusivista. Deixa eu resolver o problema dos médicos através de uma carreira muito bem remunerada, que tenha concurso público e que dê estabilidade, que dê condições de avanço, de progressão ao longo da vida…
E que não mande ninguém para o interior do Amazonas.
Claro. É sempre assim. Eu quero salário, quero tudo, mas quero ficar num grande centro, ter boas condições de trabalho. Mas essa discussão na carreira aí ninguém nem fala mais. Essa seria a grande reivindicação. Houve redução de investimentos no SUS, que é a grande área de atuação dos médicos no Brasil desde o Governo Temer com a aprovação da Emenda 95. Redução de investimento, teto de gastos, o que é ruim para os médicos. Essa semana houve um corte do Ministério da Ciência e Tecnologia de 95%. Praticamente, todas as bolsas para pesquisadores foram cortadas, projetos de pesquisas suspensos.
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