O precioso ovo do pinguim

Você não sabia dessa história até que alguém lhe contou. Estamos sempre em algum grau de ignorância em relação ao mundo. E foi justamente uma contadora de histórias, Mari Bigio, que lhe trouxe o caso surpreendente e curioso. Multiartista que é, ela transformou em música a história que lhe inspirou. Você escutou a história e gostou. Você escutou a música A Clara e a Gema e se emocionou. Sua criança interior sorriu entusiasmada pelo achado das coisas misteriosas do mundo. Agora você sabe que o pinguim-imperador, um dos maiores da natureza, tem um modo peculiar de cuidar do fruto do seu amor na Antártida, seu habitat. A fêmea entrega com muita delicadeza ao macho o ovo precioso, em seguida, em meio à temperatura rigorosa, parte para uma jornada em busca de alimento no mar aberto, percorrendo um longo caminho que é feito sobre o gelo marinho. Sua proteção é sua plumagem especial. Nessa parceria, o macho fica incumbido da missão de proteger o ovo contra o mortal frio do inverno antártico. Para isso, ele precisa ficar imóvel, em jejum, por cerca de dois meses sustentando o ovo sobre as patas, numa espécie de bolsa térmica que possui, até o filhote eclodir do ovo e se tornar mais um ser vivo na terra. O macho perde, então, quase metade do peso nesse processo. Se o ovo tocasse o gélido terreno, congelaria mortalmente em segundos o fruto do amor deles. Restaria ao casal o esforço perdido e o profundo lamento. Mas há eras os pinguins-imperadores são afortunados nesse movimento complexo, frágil e poderoso que é cuidar do amor que os une. É verdade que estão em extinção, pois o caminho congelado está cada vez menos congelado por causa da crise climática, tornando estreito o caminho da sobrevivência. Você lembra que nós, humanos, também estamos caminhando para a extinção, mas vamos desaparecer por conta de nossos gestos deliberados e descuidados de autoaniquilamento. Quem se importa? Você observa a velocidade do mundo hedonista, tão bonito em suas ideias, a economia dos gestos humanos e acredita que isso tenha pouco a ver com o modo de vida do pinguim-imperador. Outro dia você leu algo solto na internet que julgou inusitado e triste: “A pessoa mais egoísta do mundo pode sair de uma sessão de terapia convicta de que precisa se priorizar mais”. Você volta a pensar na velocidade do mundo hedonista, no paradoxo do hedonismo, na economia dos gestos humanos e na história do pinguim-imperador. Você sabe muito bem que nem todo mundo habita lugares inóspitos e que o amor em si é mais generosidade do que esforço. Isso faz você se recordar da performance Rest Energy protagonizada por Marina Abramovic e Ulay em 1980. Faz tanto tempo. Você nem era nascido. Com o peso de seus corpos em direções opostas, ela equilibra o arco e ele a flecha mortal que está apontada para o coração da performer. Duas pessoas expostas à radicalidade que é a vulnerabilidade da confiança mútua. Desse movimento resultam corações acelerados. Poder ferir alguém ou mesmo ser ferido. Como lidar com isso? Viver é arriscado, mas não é só isso. Eles fazem você pensar que se não existe o cuidado, não existe o amor. Você acredita que quando se olha devagar para o outro se enxerga um pouco mais as muitas camadas de vida que constituem um ser. Você está na sua calorosa e barulhenta cidade em frente ao mar. Sente um vento frio. Seus pensamentos voam longe e encontram silêncio, penhascos de gelo e icebergs. Você volta a pensar na sobrevivência do precioso ovo do pinguim.

*Evanilton Gonçalves é autor de O coração em outra América (Paralelo13S)