OLHARES
O retrato e suas vertentes na fotografia
Confira a coluna Olhares
Por Cristina Damasceno*
Nas poéticas artísticas contemporâneas, ao escolherem representar fotograficamente o outro ou a si mesmo, os artistas acabam por vincular a estética do retrato com a encenação. Fui despertada por este assunto depois de visitar a exposição intitulada Fanm Fó, da artista Adeline Rapon, entretanto, antes de falar sobre o trabalho dela, acredito ser importante esclarecer alguns aspectos relacionados ao tema.
O retrato tem origem na antiguidade e esteve ao alcance, durante muito tempo, de apenas uma ínfima parcela da sociedade. Foi só no Renascimento Italiano, com o enfraquecimento do domínio da Igreja Católica, que se tornou um dos principais gêneros da arte. A ideia de o retrato refletir unicamente a fiel aparência do retratado, também, ao longo do tempo, sofreu algumas mudanças. Ele se tornou representação da personalidade e classe social do modelo e ainda passou a carregar o estilo do seu autor.
O conceito de retrato difundido na atualidade é fruto de sucessivas transformações que abrange desde o século 15 até o surgimento da fotografia, no século 19. A popularização desta modalidade, por meio da fotografia, ganhou grandes proporções a partir do período oitocentista, que relacionou a mesma atividade comercial à figura de dois profissionais: o fotógrafo e o pintor.
Muitos elementos estéticos da pintura influenciaram o gênero na fotografia. A começar pela atitude do modelo diante da câmera que era elaborada, muitas vezes, por uma linguagem teatral onde o modelo se apresentava da forma mais favorável possível, acentuando seus traços harmônicos e escondendo as formas físicas destoantes.
A pose herdada da pintura, na posição três quartos, foi massivamente difundida nos estúdios fotográficos da época. Outro recurso sugestionado pela arte pictórica foram os efeitos luminosos dos contrastes de sombra e luz, dando tons aveludados ou intensos e subjetivos à aparência da imagem. A influência foi tanta que, com base na pintura, surgiu uma técnica de iluminação na fotografia que até hoje é praticada.
O efeito claro-escuro na obra do pintor holandês Rembrandt foi exemplo a ser seguido na escolha de uma luz apropriada. Na iluminação Rembrandt, apenas a metade do rosto do modelo é iluminado de modo que surja a forma de um triângulo claro no lado ensombreado do rosto. Apesar da técnica ter se firmado nos estúdios fotográficos com o auxílio de luz artificial, que é mais fácil de controlar, é possível usar a luz natural, como a luz de uma janela, em um determinado horário do dia.
Autorretrato
Quando se pensa em autorretrato, é inevitável a associação com espelho e o mito de Narciso, uma das histórias mais conhecidas da mitologia grega.
Na arte, o autorretrato é considerado como um subgênero do retrato e teve também destaque desde o Renascimento. A formação e o conceito de indivíduo na época, certamente, foi uma das questões que moveu os artistas no sentido de se autorrepresentarem.
Na história da pintura foram muitos os artistas que se autotretratam, e, mais uma vez, o nome de Rembrandt aparece em evidência. O pintor holandês se retratou em momentos distintos de sua vida, como na mocidade, maturidade e velhice. Ele é conhecido como um dos artistas que mais produziu nesta modalidade, deixando um acervo de sua imagem em vários suportes.
Já na fotografia, o autorretrato aparece já nas primeiras tentativas de descobrimento da fotografia na França. Hippolyte Bayard foi o primeiro fotógrafo a praticar este gênero e ficou conhecido por se autorretratar morto, como forma de protesto, ao ser ignorado pelas autoridades francesas acerca do reconhecimento de seu processo fotográfico.
Na época, o método desenvolvido por Daguerre foi considerado oficialmente como primeiro meio fotográfico. Três versões semelhantes da imagem intitulada O afogado, circularam em Paris na ocasião. Contudo, existem outros autorretratos do fotógrafo nos arquivos Société Française de Photographie que revelam seu interesse pela autorrepresentação em cenas elaboradas, onde ele posa junto à sua coleção de estátuas e máscaras e ainda em seu jardim.
Fotografia contemporânea
Na arte contemporânea, quando se fala de autorretrato é impossível esquecer a obra da artista norte-americana Cindy Sherman, que na década de 1980 começou a se autorretratar inspirada por clássicos modelos da história da arte ou atrizes de filmes famosos.
A obra de Sherman continua influenciando poéticas vigentes: é o caso da exposição da artista Adeline Rapon, que ficou em cartaz até o mês passado na galeria da Aliança Francesa.
O título da exposição significa, na linguagem crioula, Mulheres fortes, e foi inspirado em uma pesquisa histórica de retratos de mulheres caribenhas no final do século 19 e início do século 20. Francesa de origem martinicana, a artista começou a colecionar, no Pinterest, imagens antigas do caribe a fim de compreender um pouco a vida de seus antepassados, considerando, segundo ela, que é um capítulo da história do qual se fala muito pouco na França.
Entre os meses de março a maio de 2020, período do primeiro confinamento da pandemia, Adeline, inspirada pelo material reunido, postais e retratos antigos no formato cartão de visita, começou a se autorretratar seguindo a pose, gestos de mulheres anônimas, estereotipadas no império colonial francês. Na ocasião, as imagens foram inicialmente compartilhadas no Instagram.
O percurso artístico de Adeline abrange estudos em literatura, história da arte, design de joias, escultura em metal, além de ela ser uma das primeiras blogueiras influentes na França.
Na Galeria da Aliança Francesa foi possível apenas ver 13 das 36 imagens que compõem a série, impressas em tecido num formato relativamente grande. Ao lado de cada fotografia, em um tamanho menor, estava a imagem que inspirou cada autorretrato, acompanhada por um texto que descrevia seu contexto histórico.
Percebi nas fotografias apresentadas uma forte influência estética da pintura, a cor, a luz e até as vestimentas, em algumas obras, me lembraram o estilo de alguns mestres da pintura barroca holandesa. Conversando com a artista, ela reconheceu ser apaixonada pela História da Arte e sempre procurou observar os trabalhos dos mestres. Ela lembrou, ainda, que no período da realização da série estava num antigo apartamento parisiense, cujas luzes naturais a permitiu reproduzir este efeito de “tela clássica”.
O trabalho de Adeline aponta para as diferenças entre o passado e o presente, a fotografia geradora inicial é deslocada para dar lugar a uma nova identidade, proporcionando reflexões. Quanto ao meio fotográfico neste caso, aparece como base matriz de outras fotografias, sendo referencial dele mesmo.
Concluindo a tentativa de explorar as fronteiras e limites de sua identidade, alguns artistas contemporâneos escolhem, com muita criatividade, a encenação do autorretrato como estratégia para ressignificar suas histórias pessoais.
*Doutora em Artes Visuais e professora da Escola de Belas Artes da Ufba
*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE
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