ABRE ASPAS
"O São João tradicional não se perdeu”, diz coordenadora de quadrilhas
Confira a entrevista com Soiane Gomes, coordenadora do Fórum de Quadrilhas Juninas
Por Pedro Hijo
Quadrilheira junina há 30 anos, a baiana Soiane Gomes abraçou a missão de fortalecer e divulgar para novas gerações as quadrilhas de Salvador e Região Metropolitana. Criadora de um fórum de representação da expressão artística junina, Soiane é também a organizadora da exposição Arromba Chão, Quadrilha de São João!. A mostra apresenta um acervo histórico de peças de diferentes grupos de quadrilhas juninas baianas e ficará disponível até quinta-feira, 11 de julho, no Centro de Cultura da Câmara Municipal de Salvador Vereador Manuel Querino. “O figurino mais antigo que nós temos é do ano de 1993”, conta Soiane, que tem se articulado a favor da patrimonialização da quadrilha junina. Atualmente, de acordo com a coordenadora, são os membros dos grupos que custeiam todos os investimentos para as apresentações. Para o A TARDE, Soiane ainda fala sobre a importância das quadrilhas para as populações periféricas, o que falta para que a expressão seja mais valorizada e sobre a presença de cantores de axé e sertanejo em festivais juninos. “Se esses grupos mais tradicionais não estiverem presentes nos eventos, como as novas gerações vão conhecer e gostar?”, questiona.
Como surgiu a ideia de montar a exposição?
Eu sou artista da dança há 30 anos. Então, eu mesma já possuo um acervo dos figurinos que usei nos espetáculos que fiz parte. Com o passar dos anos, me tornei pesquisadora. Fiz um mestrado sobre as quadrilhas juninas de Salvador e Região Metropolitana e tenho feito também movimentos de articulação política para buscar fomento, financiamento e reconhecimento do governo do estado. A exposição é uma das ações que promovo dentro do Fórum Permanente de Quadrilhas Juninas, que é uma instituição que criei em 2019 para fazer todo esse processo de articulação. Convidei os quadrilheiros para ceder seus figurinos, para estarem aqui na exposição. Eu queria que, além do meu acervo, tivesse a representação de cada quadrilha. Nós temos as quadrilhas mirins e todas as quadrilhas de Salvador, que ao todo são oito, representadas aqui na exposição. O figurino mais antigo que nós temos é do ano de 1993. Então, temos 30 anos de figurinos aqui representados. As quadrilhas que participam da exposição são sobreviventes do tempo.
Por que?
Os grupos de quadrilhas juninas desenvolvem suas atividades a partir de uma renda muito específica. Cada componente paga um carnê, os diretores também investem e há também um pouco de cachês de apresentação. Tudo isso não consegue cobrir os gastos totais. Um espetáculo com 30 ou 40 pares produz muitos figurinos, cenários e tudo isso é muito caro. Todo ano são espetáculos novos, novos figurinos, nova contratação de serviços e profissionais. É uma resistência muito grande desembolsar um valor alto a cada ano. E nós não temos políticas culturais específicas para a quadrilha, fomentos para os grupos de Salvador ou da Bahia. As quadrilhas juninas promovem resistência cultural. A gente já teve muito mais quadrilhas aqui em Salvador. No Arraiá do Galo, de 1989, participaram 150 quadrilhas de Salvador e Região Metropolitana; no evento deste ano foram 10. Por causa dessa falta de fomento, os grupos não conseguiram se manter em atividade. Você não consegue pagar o trabalho que fez esse ano e já precisa começar a montar o trabalho do ano que vem.
Mas, naquela época, essas políticas existiam com mais força?
Não, nunca houve. Mas as produções das quadrilhas eram mais simples. Os grupos foram se superando a cada ano, colocando um figurino melhor, com tecidos melhores. Foi acontecendo também um encontro com grupos de outros estados. Estados, inclusive, que já têm políticas estabelecidas, com acesso a um maior recurso. Então, o uso de materiais, de aviamentos, de cenografias, de contratação, inclusive de artistas, diretores de outros estados, acontece com frequência. Isso tudo foi encarecendo com o passar dos anos. O Ceará, por exemplo, tem uma política cultural muito bem estabelecida e que serve de inspiração. É um fomento que não é só para as quadrilhas, mas para vários segmentos estabelecidos há alguns anos. Por lá, as quadrilhas podem contar com um edital chamado Ceará Junino, que já está na sua 32ª edição. Ou seja, anualmente, os grupos se inscrevem e recebem o valor que é voltado não só para os grupos, mas também para a produção de festivais.
Qual é a importância das quadrilhas para a população periférica?
Nós vivemos em um país que foi colonizado e que tem diferenças sociais gritantes. As pessoas que estão nas comunidades periféricas estão um pouco à parte dos direitos civis, do direito à cidadania. Então, na maioria das vezes, é a própria comunidade que faz esse trabalho de integração social com os jovens e com os idosos. Assim como os grupos de capoeira ou como os terreiros de candomblé, por exemplo, cada lugar com seus segmentos culturais faz o trabalho de juntar as mais diversas gerações. As crianças aprendem com os mais velhos. Esse é um valor simbólico, afetivo. Uma costura, outra faz o adereço, o tio toca na apresentação, a outra tia faz a comida... A importância das quadrinhas nas comunidades é, justamente, esse agrupamento social, a valorização das mais diversas gerações em torno da manutenção da cultura.
Há um fator de racismo na desvalorização da quadrilha, uma vez que, em Salvador, essa é uma expressão principalmente negra e periférica?
Não é explícito, mas a gente vê que, historicamente, as políticas tendem a chegar mais devagar para todas as expressões culturais que vêm dos povos indígenas, do povo negro. E ninguém admite que é por essa motivação. Grupos de balé têm outro tratamento, grupos de teatro que vêm de uma linguagem mais europeia, clássica, têm outro tratamento. Existe uma diferenciação até mesmo entre as palavras cultura e folclore. Ninguém vai dizer que um grupo de balé é folclore. Mas a capoeira é folclore. O que está na rua tende a ter menos valor do que o que está dentro de um teatro. O racismo é estrutural e invisibilizado. As pessoas não admitem, mas ele se traduz nas escolhas, afinal, os gestores escolhem quem eles vão patrocinar, escolhem quem eles vão dar visibilidade.
Há quem diga que o São João tradicional tem se perdido...
Não, o São João tradicional não se perdeu. São as comunidades que fazem a manutenção da cultura, que sempre trazem aspectos da tradição, sejam as comidas, sejam os ritmos. Porém, a cultura é dinâmica. Coisas novas vão acontecer e estão acontecendo. Isso, a gente não tem como controlar. Então, o que acontece é um pouco de tudo andando junto ao mesmo tempo.
Há uma discussão sobre a presença de artistas de gêneros distantes do forró em eventos juninos, alguns, inclusive, patrocinados por órgãos públicos. Cantores de sertanejo ou axé são contratados para ocupar lugar de destaque em festivais de São João. Qual é a sua opinião sobre isso?
São as escolhas dos gestores. Existe a pasta do Turismo que promove eventos e as pessoas pensam de uma determinada maneira. Existe a pasta da Cultura com outras ações, e as pessoas também pensam de outras maneiras. Eu acho que contratação de bandas desse ou daquele ritmo perpassa não pelo que o público gosta, mas pela escolha de quem está com a caneta e de quem vai fazer o pagamento. São pessoas, inclusive, que não têm um estudo da cultura, que vão levando as coisas numa leitura muito do que funciona na mídia ou no financeiro. Mas a gente sabe que se colocarem cantores tradicionais ou os ritmos mais historicamente ligados ao São João, vai ter público. E isso mantém a cultura também. Se esses grupos mais tradicionais não estiverem presentes nos eventos, como as novas gerações vão conhecer e gostar?
O que falta para que a quadrilha seja mais valorizada?
O Fórum Permanente de Quadrilhas deu entrada a um pedido de registro da quadrilha como bem cultural imaterial, para que ela tenha um fomento próprio, ou seja, um recurso específico para manter as atividades. Mas, a gente precisa que existam editais para as quadrilhas, que tenha financiamento para todos os processos produtivos que a quadrilha passa durante o ano. Quando os gestores entenderem que investir na quadrilha é investir na economia, talvez isso melhore. O Fórum tem esse intuito de conversar com secretários, a gente levanta dados, indicadores. Solicitamos que façam um mapeamento de quantos grupos existem na Bahia, para que possamos desenvolver políticas específicas. O Fórum de Quadrilhas é um mobilizador político-cultural.
E como é que tem sido a conversa com esses gestores?
Tem sido produtiva. A gente conseguiu criar o Festival de Quadrilhas Juninas de Salvador, o Arena Arromba Chão, que chegou a seu terceiro ano consecutivo. Também conseguimos colocar a categoria “quadrilha junina” no edital Emília Biancardi, do Centro de Culturas Populares e Identitárias, no período da Lei Aldir Blanc. Então, a expectativa é que essa categoria seja efetivada e que esse ano ela esteja de novo.
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