MUITO
O senso comunitário e artístico do Quilombo Aldeia Tubarão
Associação comunitária do bairro de Paripe reafirma ideais de território, cultura e identidade através da arte

Por Gilson Jorge

Em 2014, dois garotos caminhavam pelo subúrbio ferroviário com os rostos cobertos por máscaras, as Caretas de Tubarão, manifestação cultural tradicional da região. Foram abordados pela polícia e, ao chegarem em casa, os jovens relataram um tratamento desrespeitoso por parte da PM.
Em reação ao episódio, desde 2015 a Associação Cultural Quilombo Aldeia Tubarão (Quial) realiza anualmente o desfile das Caretas de Tubarão na quadra dessa região costeira e de aparência rural, no populoso bairro de Paripe. Uma forma de reafirmar à comunidade a importância dessa tradição oral e mostrar que as caretas não são um caso de polícia, mas cultura.
A imersão de jovens suburbanos na arte e na cultura tem criado empreendimentos importantes, como a produtora Eu Melanina, que além da oferta de produtos culturais na música e no audiovisual, ajuda a retirar o estigma da juventude periférica.
Mas os planos da Quial Tubarão, que reúne jovens artistas e senhoras com mais de 60 anos que nasceram no bairro, vão um pouco além. "Reconhecemos a herança indígena e quilombola e incentivamos o sentido de comunidade", afirma a ativista social Mãe Natureza, responsável pelo Quial Tubarão.

A associação, que desenvolve trabalhos com samba de roda, capoeira e até compostagem, formalizou-se recentemente e já fez parcerias com a Ufba e com a Coordenadoria Ecumênica de Serviço (Cese) para mergulhar fundo no audiovisual.
Em novembro deste ano, será lançado o curta T de Tubarão, que enfoca a estrutura metálica em forma de T na área da antiga fábrica de cimento e que se tornou uma referência importante para a comunidade. "O curta trabalha a memória do local, a intervenção da fábrica e como a comunidade ressignifica tudo isso", afirma Mãe Natureza.
Realizado com apoio da Pró-Reitoria de Extensão da Ufba e dirigido pelo filho da ativista, o publicitário Pólen Acácio, T de Tubarão é resultado de um esforço de impulsionar a produção audiovisual nesse pedaço da cidade, aproveitando o entusiasmo com eventos recentes.
A filmagem em Salvador da série espanhola Santo, protagonizada por Bruno Gagliasso e disponível na Netflix, teve locações na antiga fábrica de cimento e acabou oferecendo trabalho temporário para jovens do bairro na produção.
Além disso, o filme Voyá, de Fanny Oliveira, moradora de Paripe, venceu o Festival Panorama do ano passado, na mostra Competitiva Baiana, no júri popular do festival promovido pelo Cine Metha Glauber Rocha.
Mas se o próprio Glauber usava a máxima "Uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", o grande achado da junção de diferentes gerações de moradores nos projetos da Quial é a diversidade de perspectivas sobre a vida nessa parte do bairro de Paripe.
Lazer
Uma das principais alternativas de lazer para os jovens, que usam sua estrutura para pular no mar, o T de Tubarão é alvo de constante preocupação para a pensionista Ana Maria Silva Lima, 61, anos, viúva e mãe de duas filhas. "Aquilo é uma armadilha", diz ela, que teme a traçoeiragem do fundo do mar e reprova a ida de jovens ao local.
Para Marco Antônio Santana, 20 anos, conhecido como Neto, ir ao T de Tubarão é uma decisão bem simples. "Oxe! Mil grau de aventura", diz o jovem que aparece no filme T de Tubarão falando de sua relação com o lugar. Ana, por sua vez, aparece no filme Matriarcas de Tubarão, Potência e Resistência das Mulheres de um Lugar, produzido pela Quial com o apoio da Cese para ajudar as mulheres de lá na pandemia. Os filmes produzidos pela associação estão no canal da Quial Tubarão no YouTube.
Quando o assunto é samba, Ana Maria e Neto estão na mesma praia. Ele toca atabaque e ela dança no grupo Samba de Roda de Tubarão, herdeiro do A Corda, Samba de Roda, criado em 2013 por Mãe Natureza, uma cidadã cachoeirense que seguiu o curso do Rio Paraguaçu e desaguou na Baía de Todos-os-Santos, trazendo para Tubarão parte da herança cultural do Recôncavo.
Nesse território, encontrou com pessoas de outras paragens que foram morar em Paripe, antes e depois dela, e convergiram na Quial. Como o músico e capoeirista David Bahia, 24 anos, que aprendeu a jogar capoeira ainda criança, quando morava no Alto de Ondina e teve aulas da luta que é uma dança dentro do Programa Fome Zero, em 2011.
Há quatro anos, mudou para Tubarão e juntou-se ao grupo. "Eu sou da Associação Cultural Nossa Arte, de capoeira regional no Alto de Ondina. A gente cria esse projeto para complementar todos os saberes possíveis que a capoeira pode proporcionar", afirma David, que também integra a banda Samba de Roda de Tubarão.
No fim de semana passado, o grupo se apresentou na Cantina da Lua e tem dois shows agendados para o início de novembro no Subúrbio. No repertório, sambas atuais com composições antigas resgatadas pelas matriarcas.
Tanto o samba quanto as Caretas de Tubarão têm influência dos fluxos migratórios do Recôncavo e uma história de décadas, reproduzida pela tradição oral, e não conta com registros formais na comunidade.
Mas o modo de vida comunitário vai se revelando em eventos como a comemoração do Dia das Crianças, na última quarta-feira, quando as matriarcas de Tubarão e outros moradores dividem as tarefas de preparação do evento.
Uma moradora faz o bolo, outro prepara os salgados, um terceiro de encarrega dos cachorros-quentes e alguém mais se ocupa de ir à feira comprar os ingredientes.
A festa desse ano foi pensada para 100 crianças e realizada na Quadra Comunitária, com distribuição de brinquedos. Tubarão é uma comunidade pobre e parte das suas crianças ajuda na complementação de renda da família pedindo esmolas ou vendendo artigos diversos na feira do centro de Paripe. Alguns moradores de Tubarão podem passar muito tempo sem se deslocar ao centro de Salvador.
"Tem gente que ganha a vida aqui mesmo, pescando, tratando peixe e vendendo na feira de Paripe", explica Mãe Natureza. O Centro de Paripe, sim, é a referência. Se em Tubarão, o principal ponto comercial é um pequeno supermercado, quando é preciso algum outro serviço é preciso se deslocar para Paripe, que na informalidade da comunicação diária é tratado como um outro bairro ou mesmo uma pequena cidade dentro de Salvador.
Ana Maria, que quando vai à praia pega a Linha Vermelha e ruma em direção ao Litoral Norte, vai pouco ao centro da cidade. Mas sente falta da infância quando a vida em Tubarão era mais interiorana. "A gente comia fruta à vontade, não tinha criança gorda. Todo mundo era saudável. A gente nadava, corria picula. E todo mundo se conhecia, quem morava em Periperi, São Tomé. Hoje, tem muita gente, mas ninguém se conhece", queixa-se, recordando um tempo em que possivelmente dois jovens vestindo as Caretas de Tubarão não seriam abordados pela polícia.
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