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“O sofrimento do luto precisa de validação", diz psicóloga

Confira a entrevista com a psicóloga Juliana Correia

Por Pedro Hijo

16/06/2024 - 8:00 h
Imagem ilustrativa da imagem “O sofrimento do luto precisa de validação", diz psicóloga
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As enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul no mês passado deixaram um vácuo emocional em quem testemunhou a tragédia socioambiental e viveu na pele seus efeitos. A avaliação é da psicóloga Juliana Correia, sócia do VOA Instituto de Psicologia. Ela é baiana e especialista em luto e na Teoria do Apego, que aborda aspectos dos relacionamentos humanos. "Imagina você ter trabalhado anos para construir suas coisas, do seu jeito, e de repente você se ver sem nada? É um buraco imenso”, comenta Juliana. De acordo com a Defesa Civil estadual, foram 175 óbitos e mais de 423 mil pessoas desalojadas de suas casas. O número de pessoas afetadas pelas enchentes de alguma forma ultrapassa 2,3 milhões, cerca de 20% da população do estado. Para Juliana, viver o luto é um processo de transformação. “Se olhamos para o luto como a experiência natural de reação e a adaptação depois da perda ou ruptura, começamos a entender também que ele não é um obstáculo a ser superado. O luto é uma experiência que vai ser integrada”.

Qual a importância de uma pessoa viver o luto?

O luto é um processo natural de reação a uma perda ou ruptura que envolve a adaptação a uma nova realidade. Viver o luto é necessário para que possa existir essa adaptação a uma nova realidade, bastante desafiadora. Essa adaptação vai se construindo na oscilação entre a conexão com a perda e o olhar para a tristeza, para a saudade, para a dor, para as emoções que vêm da perda. E sentir essas emoções e atribuir significado a elas é o que chamamos de reparação, que é esse processo de dar continuidade à própria vida, de compreender quem se é agora, o que se espera da vida sem aquela pessoa. É neste momento que se descobre quais são os novos sentidos que podem ser atribuídos a si mesmo e à existência após ter passado por essa experiência. O luto é uma experiência totalmente individual, porque antes da perda essa pessoa já existia.

Uma teoria popularmente famosa e replicada diz que o luto possui cinco fases. Como funcionam essas fases?

Essa teoria é de uma autora chamada Elisabeth Kübler-Ross e ela sugere que o luto é vivido em fases sequenciais: a negação, a raiva, a barganha, a depressão e a aceitação. Ela foi pioneira em olhar para o que um enlutado sentia e vivia e nomear de forma organizada esse processo. Na prática, essa teoria já não é um modelo que observamos na vivência dos enlutados. O modelo proposto pela Elisabeth sugere uma organização que a experiência do luto não contempla. O luto é mais da ordem do “tudo ao mesmo tempo aqui agora”. Algo que, no mesmo dia, o sujeito oscila entre sentir raiva, depressão e barganhar. Como uma montanha-russa com altos e baixos misturados e exaustivos que não se sucedem e, sim, se misturam.

Por que a morte é considerada um assunto tabu?

Acredito que no aspecto individual nós temos uma dificuldade grande com a ideia da finitude. A ideia de ter um fim que não controlamos o quando e o como nos traz angústia, claro. E, de fato, não conseguimos suportar essa angústia em tempo integral. É por isso que precisamos esquecer da única certeza, que é a morte. Só que, invariavelmente, pessoas morrem e nos lembram disso o tempo todo. No aspecto coletivo, existem muitas crenças que vão afastando o assunto, como a de que falar da morte atrai a morte. Por outro lado, quando transformamos a morte em assunto, podemos pensar inclusive sobre nossos desejos para ela e para nossos rituais. Se não falamos sobre morte, como os mais próximos saberão se desejávamos ser enterrados ou cremados, por exemplo? Restará a eles, no meio de sua dor do luto, tomar decisões importantes sem saber se estão agindo de acordo com nosso desejo. Hoje, com a existência do Testamento Vital, também podemos e precisamos falar do pré-morte. É direito do sujeito deixar por escrito que medidas ele autoriza a família e a equipe médica a tomar no cuidado de fim de vida com ele. Deseja ser reanimado, por exemplo? Como todo tabu, só vai ser quebrado ao ser falado.

Quais são as consequências de um luto não vivido em sua completude?

Em algumas situações, a pessoa pode estar ainda tão em risco que não tenha espaço emocional para viver aquela perda. Outra possibilidade é que a pessoa seja alguém que tenha menos intimidade com seus processos emocionais e pareça estar ‘tocando a vida’ sem estar impactado pelo luto. Só que isso não é possível, então, em algum momento, esse luto vai se pronunciar. Quando a gente não se permite, por inúmeras razões possíveis, viver esse momento, aumentamos o risco de que apareçam outros adoecimentos psíquicos, como a depressão e a ansiedade. Mas, mesmo que não se adoeça, se vive o descompasso de tentar manter a vida como costumava ser e seguir falhando, sem a possibilidade de elaborar o que aconteceu e em quem essa vivência nos transformou. Toda vez que falamos de morte, de perda, vamos ter muito espaço para falar de vida, da vida que levamos, da vida que queremos levar, do que é valioso para nós.

Em casos de catástrofes como a que aconteceu no Rio Grande do Sul recentemente, o processo do luto costuma ser diferente, já que são pessoas que estão lidando com o emergencial? É comum que, nesses casos, o luto seja postergado para dar lugar a outras prioridades mais urgentes?

O que você chama de prioridade já faz parte do luto. É comum também que haja uma resposta à vivência traumática que tiveram, em alguns casos chegando a desenvolver transtorno de estresse pós-traumático. É como se a pessoa se sentisse constantemente ameaçada e que situações que representem possibilidade de ameaça, como sinais de chuva, possam disparar ansiedade e pânico. Honestamente, se olhamos para o luto como a experiência natural de reação e a adaptação depois da perda ou ruptura, começamos a entender também que ele não é um obstáculo a ser superado. O luto é uma experiência que vai ser integrada. Ter vivido aquele luto vai nos transformar. Não seremos mais quem éramos antes. Tirar a ideia de superação não significa que todos viverão cronicamente enlutados como no início do processo, mas é poder ser mais fidedigno a como ele acontece dentro da gente. A palavra tem importância para nossa expectativa e para o nosso significado, então, quanto mais a gente desconstruir essa expectativa de “superar o luto” menos vamos ter enlutados se cobrando por seus ‘aindas’ e a sociedade os cobrando também.

O luto coletivo pode ser um atenuante da dor?

É possível, mas não garantido. Como estão essas pessoas? Que rede se forma ao redor delas? Elas estão tendo suas necessidades básicas atendidas? No momento da emergência, da tragédia, o que conta é o que ajuda. Às vezes, é encontrar o cachorro que não se conseguiu levar; às vezes, é poder tomar o chimarrão no mesmo horário que sempre se tomava; às vezes, é estar no mesmo abrigo que familiares e amigos. Então, o abrigo é seguro? É minimamente confortável? O que ajuda um enlutado nessa dimensão da tragédia, pensando em primeiros socorros psicológicos, é poder ouvir e oferecer, dentro do possível, aquilo que ele precisa. Talvez nisso, o luto coletivo do Brasil tenha ajudado, já que fez ser possível chegar muitas doações no Sul.

Há também um luto em relação à perda dos objetos, da moradia, dos pets e das expectativas de planos criados em um caso como esse?

Com certeza. Quando se trata sobre luto, se bate muito na tecla de um conceito chamado ‘mundo presumido’. Esse conceito representa a vida como a gente espera que seja, a previsibilidade e os planos que a gente tem para a vida. Por exemplo, eu trabalho presencialmente toda segunda. Isso é algo contínuo e esperado na minha vida, portanto, oferece uma sensação de controle, segurança e rotina. Quando estas coisas são ameaçadas ou rompidas, precisamos ajustar a realidade. Imagina se eu não pudesse mais ir trabalhar presencialmente às segundas, não por escolha, mas porque meu consultório não está mais ali, não existe mais? Isso exige uma adaptação psíquica imensa. Em casos extremos, como o que ocorreu no Sul, estamos falando de perder tudo: o referencial do presente e do passado, de casas, ruas, comércios que sempre foram frequentados e que, de repente, não existem mais. É uma história que some na frente de todos. Olha o peso que tem esse vácuo na constituição de uma pessoa, de ter que guardar tudo apenas na memória. Imagina você ter trabalhado anos para construir suas coisas, do seu jeito, e de repente você se ver sem nada? É um buraco imenso.

Quais são as suas sugestões para aliviar a dor da perda?

Neste momento, as pessoas precisam estar com todas as suas necessidades básicas atendidas e em um lugar que ofereça segurança a elas. Para conviver com o luto, quanto mais rotina e continência, melhor. Por outro lado, essa dor vai precisar ser muito vivida antes de poder ser aliviada, senão, a sociedade volta para o lugar de silenciar o sofrimento do outro porque nos incomoda e aflige. O sofrimento do luto precisa de validação e cuidado.

Como auxiliar pessoas enlutadas?

A gente ajuda quando não tenta silenciar a dor dessas pessoas com respostas prontas, como ‘você precisa ser forte’, discursos como ‘pelo menos você está vivo’ ou falas em que atribuímos o nosso significado e impomos ao outro, como ‘Deus sabe de todas as coisas’. A gente não precisa tamponar a dor do outro com consolo, pelo contrário, a gente oferece os ouvidos para ouvir o que ele tem e precisa dizer. É preciso ofertar abraço e colo para que essa pessoa possa chorar e ser cuidada.

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Tags:

Elisabeth Kübler-Ross enchentes Rio Grande do Sul luto processo de adaptação psicologia do trauma teoria do apego

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