MUITO
O universo dos compositores de blocos afros de Salvador
Por Gilson Jorge
Quando o Hospital Getúlio Vargas, no Canela, fechou as portas em abril de 1990, levou junto uma página da cultura carnavalesca da cidade. Ao longo da década anterior, um de seus funcionários, Valter Farias, costumava se reunir com colegas na cantina do prédio, nos intervalos do trabalho, para se divertir batucando no balcão sucessos de Agepê, Roberto Carlos e outros cantores consagrados.
Com o tempo, a hora do recreio no hospital gerou algumas canções próprias de Valter em parceria com o jovem Adailton Poesia, morador de Pirajá, que fazia serviços domésticos no Canela, estudava à noite nos Maristas e ia visitar o novo amigo no trabalho.
Ambos haviam sido apresentados por Luciano Gomes, autor de Faraó – composta para o Olodum e estrondoso sucesso na voz de Margareth Menezes –, que trabalhava à época como empacotador no supermercado em frente ao hospital. “Eu mesmo prefiro compor sozinho, mas, como vi que os dois estavam querendo compor, apresentei um ao outro”, lembra Gomes.
Era um momento em que jovens e adultos de bairros periféricos que sonhavam em viver de música juntavam-se nos ensaios dos blocos afros que afloraram na cidade após a criação do Ilê Aiyê, em novembro de 1974.
Melodias que brotavam da alma durante a tentativa de dormir, ideias que surgiam durante a viagem de ônibus e que eram rapidamente anotadas num papel.
Como ocorreu com Deusa do Amor, sucesso do Olodum na voz de Pierre Onassis e, mais recentemente, com Moreno Veloso, cujos primeiros versos surgiram na cabeça de Adailton Poesia em homenagem a sua companheira, vizinha, futura parceira nos desfiles do Olodum, com quem começou a caminhar mais lado a lado pelas bandas do Canela, onde a mãe dela também trabalhava como empregada doméstica. O rascunho da música foi compartilhado com o parceiro Valter, que ajudou a construir a versão final.
Desfile
No caso das músicas-tema, a inspiração vem a partir do enredo decidido pelo bloco para o desfile na avenida. Quando o Olodum lançou o tema Tanzânia, as aldeias ujamaas, em 1984, Luciano Gomes se debruçou sobre a apostila fornecida pelo bloco e em pesquisas para compor Raça Negroide, música vencedora naquele ano do Festival de Música e Artes Olodum (Femadum), evento aberto a compositores que acontece desde 1980 e este ano será em setembro, de forma virtual, com o nome de Panafro.
“Não foi uma música que explodiu nas rádios, mas me dava muita alegria entrar no ônibus e ver os meninos que traseiravam batucando e cantando Ujamaa”, diz Gomes. Traseirar era viajar nos bancos do fundo do coletivo, quando desciam sem passar pelo torniquete. E Ujamaa é uma palavra do idioma suali que significa familiaridade e representa a ideologia política de Julius Nyerere, pan-africanista que se tornou em 1961 o primeiro presidente da Tanzânia unida.
Por trás das músicas
Para os compositores que ajudam Olodum, Ilê Aiyê, Muzenza, Malê Debalê e outros a contarem um enredo grandioso ou levar o público ao delírio com um refrão bem formulado, é difícil segurar a emoção de ver um bloco passar na avenida com a multidão cantando a canção que saiu de suas noites insones.
Ao lado de seu amigo Guio, Silvinho Almeida tinha 15 anos quando foi pela primeira vez ao Pelourinho, antes da reforma do Centro Histórico, concluída em 1993. Tinha medo da insegurança, a fama do bairro era ruim nos outros cantos da cidade.
Mas uma das coisas que lhes chamaram atenção nos ensaios do Olodum era a enorme quantidade de braços brancos agitados para cima em meio a outros tantos braços negros e mestiços. “Eram brancos turistas, os brancos daqui não iam”, lembra Silvinho.
Em 1990, o Olodum saía com o tema Unindo uma miscigenação, música composta pelos dois meninos do Nordeste de Amaralina, que faz parte do álbum Do Saara ao Nordeste brasileiro. Anos depois, a dupla criaria Vem meu amor (vem meu amor, me tirar da solidão...), que seria regravada posteriormente pela Banda Eva, com Ivete Sangalo, e por Wesley Safadão, entre outros.
O sucesso dessa música lhe permitiu comprar alguns imóveis, postos para alugar, mas ainda trabalha como vigilante. “É muito difícil viver de música. É uma megassena se você acertar uma música”, diz o compositor que começou a escrever versos no caderno da escola, influenciado pelos festivais de Samba Junino do Nordeste.
As probabilidades estatísticas de ser discriminado, entretanto, são bem maiores do que ganhar dinheiro. “Fomos convidados para o show da Banda Mel, que tinha gravado uma música nossa e no camarote fomos barrados pela segurança. Tínhamos direito de estar ali, fomos convidados”, pontua Silvinho. Guio deixou a parceria antes do estouro de Vem meu amor, convertido a uma igreja evangélica. Silvinho ainda planeja emplacar outros sucessos.
Pandemia
Em pleno período que seria de Carnaval, não fosse a pandemia, o professor de educação física Marito Lima está empenhado em organizar o campeonato de futebol da Liga de Santa Mônica, da qual é presidente.
Para esse ano sem folia, a sua principal aspiração é acompanhar a evolução de Exalou, música composta para o Ilê Aiyê e gravada por Daniela Mercury no álbum Perfume, lançado no ano passado.
Os versos “exalou o perfume dela, eu vou seguir o Ilê Aiyê pra ver se encontro com ela”, foram escritos por Marito com o nome Negras Perfumadas. Daniela ouviu, gostou, mas preferiu mudar para Exalou. “Para mim, foi um sonho que virou realidade Daniela Mercury me gravar. Eu já vinha sonhando com isso há muito tempo”, declara Marito.
A mudança de nome foi uma nova adaptação feita pela produção da cantora, que tem laços antigos com o Ilê. Em 1992, Daniela gravou o pot-pourri O Mais Belo dos Belos, junção de O charme da Liberdade (Adailton Poesia/Valter Farias) com A verdade do Ilê (Agnaldo Pereira da Silva). Da segunda, ficou apenas um trecho. “A letra original trazia umas críticas veladas ao Olodum, o autor tinha passado pelos dois blocos”, explica Adailton Poesia.
Em alguns momentos, chegou-se a criar alguma rivalidade entre os blocos afro. Mas isso não impediu que alguns compositores oferecessem suas obras a mais de uma agremiação. Luciano Gomes, que era fã de reggae, e de Bob Marley em especial, aceitou o convite para ir cantar no Muzenza, bloco para o qual compôs o megassucesso Swing da Cor, gravado por Daniela. E ainda assim voltou a compor depois para o Olodum, mesmo desfilando para o Muzenza.
Há sempre um espaço para a mulher no cancioneiro carnavalesco, como nos sucessos Rosa e ou Requebra (Deusa de Marrom). Difícil mesmo é ver letras e melodias assinadas por mulheres ecoarem nos trios e blocos afro. “Dizer é poder. Há um machismo em várias dimensões”, opina Viviam Caroline, diretora da Didá, a primeira banda percussiva feminina do Brasil.
Viviam considera a linguagem um tipo de empoderamento muito específico e diz que, apesar de haver mais mulheres negras do que homens negros na universidade, por exemplo, ainda há uma visão de que o discurso não cabe à mulher. “Os blocos sempre trazem a temática feminina, mas sob o ponto de vista do homem”, declara.
Longo caminho
O dinheiro que os compositores recebem pela execução de suas músicas passa por um longo caminho: bares, restaurantes, rádios, TVs, trios elétricos e até estudantes colando grau. Todo mundo que usa uma canção em público, em tese, tem que pagar uma taxa ao Escritório Central de Arrecadação (Ecad), responsável por enviar o dinheiro às associações de compositores.
O cálculo do valor a ser pago é feito através do site do Ecad, e depende da natureza do serviço e da frequência de execução de músicas. Uma TV aberta, por exemplo, pode chegar a pagar 2,5% do faturamento em direitos autorais. O dinheiro é repassado às associações de compositores, que distribuem aos seus afiliados a depender das informações obtidas sobre execução das obras.
Esse método está longe de evitar criar confusão. “Já teve dia em que se quebrou o pau, com porrada, na antiga Anacim (Associação Nacional de Autores, Compositores e Intérpretes de Música”, declara Adailton, que lembra de momentos em que ele e seu parceiro, falecido no ano passado, receberam cheques com valores diferentes pelas obras que assinavam juntos.
Luciano Gomes, que trabalhou durante muitos anos como policial depois de deixar o supermercado, permanece inspirado até para comentar a situação financeira dos compositores populares. “Se não fosse o carro do ovo, eu estava frito”, diz, em referência ao aumento dos preços dos alimentos.
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