PLURAL
Ocupação e quilombismo
Confira a coluna Plural
Por Daniela Castro*
Em busca de inspiração para esta coluna, o algoritmo das redes sociais me levou ao perfil do projeto Experiência Griô, que me puxou pela mão para celebrar o Dia da Consciência Negra – pela primeira vez no calendário como feriado nacional – fora das telas. O chamado era para uma caminhada inspirada no quilombismo, conceito proposto por Abdias Nascimento lá nos anos 1970.
Antes que você pergunte, eu recorro ao próprio autor para responder: “Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre, solidariedade, convivência, comunhão existencial”. Mas é claro que ele não está falando somente sobre aproveitar mais um feriado para confraternizar com as amizades. Mais do que isso, é sobre o enfrentamento ao racismo a partir da construção de redes como estratégia de ocupação de espaços, sejam físicos e simbólicos. Quer algo mais atual?
Esteja onde estiver, o mestre deve estar orgulhoso de um discípulo que deixou por aqui. O historiador André Carvalho, cofundador da Experiência Griô, transforma a ideia em ação ao nos conduzir por lugares como a Praça Maria Felipa – antes conhecida como Visconde de Cairu, lembra? – a Casa das Histórias de Salvador, o Muncab (Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira) e a Casa do Benin. Dá pra pesquisar no Google e ir por conta própria? Dá. Mas fique comigo que você vai ver que diferença.
André se recusa a ser chamado de guia, diz que é “apenas” um professor, embora traga no currículo também os títulos de mestre em Educação e especialista em História Social e História Afro-brasileira. Ele mostra, na prática, a habilidade de costurar fatos históricos com cada pedaço do roteiro que percorremos a pé, compartilhando com fluência um conhecimento profundo sobre nossa herança africana e trazendo o debate para o agora com provocações no tom certo.
Faz a gente enxergar o mapa do continente-mãe que ele desenha no ar, cita sem presunção suas referências de leitura, percebe e acolhe as nuances de letramento de um grupo heterogêneo. Só faz isso quem sabe.
O “guia” (desculpe, André) conta com a parceria do simpaticíssimo Flávio Luis Silva, especialista em tecnologia e projetos, que acompanha nossa “aula de campo” e administra – ou, pelo menos, tenta – a logística de deslocamento e tempo de permanência em cada local visitado. E fica aqui minha única ressalva ao programa, que se mostra impossível de cumprir plenamente em um único turno, principalmente quando somos sugados para algo como a exposição Raízes: Começo, Meio e Começo, em exibição no Muncab.
Com nome inspirado na frase lapidar de Nêgo Bispo, líder quilombola que encerrou sua jornada na terra no fim do ano passado, a mostra reúne 200 obras de mais de 80 artistas. Entre elas está Baobá, de Marcos Costa (também conhecido como Cabuloso), não por acaso escolhida para ilustrar esta página. Ícone da ancestralidade africana, a árvore típica de regiões como Madagascar e Senegal atravessa a história como símbolo de longevidade e resistência.
E, por falar nisso, não é por acaso que a programação se encerra no Zanzibar, comandado por Ana Célia. Pico da cena cultural de Salvador desde a década de 1980, a casa especializada em comida de origem africana já esteve em diferentes endereços antes de se instalar no atual, na Rua Direita do Santo Antônio. Se a presença de uma empreendedora preta e idosa em um pedaço da cidade que passa por intenso processo de gentrificação não gritar algo pra você, volte lá para o segundo parágrafo.
E se eu te disser que, além de uma varanda com vista para o mar e uma comida deliciosa, encontrei na parede do restaurante a reprodução de uma matéria que escrevi sobre o “Zanzi” tempos atrás, aqui para a Muito? Você achou que meu relato sobre o Dia da Consciência Negra teria começo, meio e fim? Pois eu fico com a lição de Nêgo Bispo, é tudo começo, meio e começo.
*Daniela Castro é jornalista, mestra em Cultura e Sociedade e criadora da Inclusive Comunicação. Ela assina a coluna Plural sempre no último domingo do mês.
Dicas plurais:
Curso
O Sesc Digital oferece o curso Dispositivo de Racialidade, ministrado por Sueli Carneiro, uma das mais importantes vozes da militância antirracista brasileira. Em seis aulas on-line, a filósofa examina como o racismo se estrutura e se perpetua na nossa sociedade, abordando a educação como ferramenta de emancipação e importância da ação coletiva para a resistência. O acesso é gratuito.
Audiovisual
O especial Falas Negras promove um experimento social ao simular o julgamento de um jovem negro acusado de homicídio. Com um elenco todo formado por atrizes e atores, exceto o júri, a produção discute a relação entre o uso de provas baseadas em reconhecimento fotográfico e o encarceramento de pessoas negras. Disponível na Globoplay, inclusive para não assinantes.
Livro
O Pacto da Branquitude é leitura essencial para entender como a construção de um acordo social não verbalizado contribui para a legitimação de pessoas brancas em espaços de poder, a partir de mecanismos que normalizam e perpetuam a desigualdade racial. A obra é de Cida Bento, cofundadora do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades (Ceert).
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