MUITO
Orgulho da Bahia e sucesso nacional, Nelson Rufino completa 80 anos
Fã de Chico Buarque, Rufino diz que considera importante ressaltar trabalho de outros artistas
Por Gilson Jorge
Alheio à política, o jovem Nelson Rufino ouviu falar na suposta ameaça vermelha quando foi servir o exército, em 1961, três anos antes do golpe militar. Os rumores de agitação popular eram constantes com a renúncia de Jânio Quadros à presidência e a posse de João Goulart. Como em todo o país, os soldados do Quartel da Mouraria eram mantidos em estado de prontidão.
"A gente ouvia que tinha que se ligar nos civis, que o movimento era civil. Tinha gente que era comunista sem saber por quê. Todo mundo queria protestar", lembra o compositor, vestido numa elegante camisa vermelha, escolhida sem conotação política, apenas porque combinava com o seu humor quando saiu de casa para dar entrevista na ensolarada tarde da última terça-feira.
Dois anos antes do golpe de 1964, Rufino terminou o serviço militar obrigatório e foi para o Rio de Janeiro, com um violão no braço, mas com o sonho de ser jogador de futebol. Parecia a melhor alternativa para sustentar a família, depois da morte do pai, mas o plano não funcionou. "Eu não me cuidei fisicamente e o teste no Fluminense foi um desastre", conta.
Ainda tentando conseguir um trabalho na Cidade Maravilhosa, recebeu uma carta da irmã com o seguinte recado. "Meu irmão, ou você volta pra casa ou minha mãe morre de tédio". Abatido, Rufino pegou o violão companheiro e, aos 20 anos, escreveu a sua primeira canção, Bahia, meu primeiro travesseiro.
Viver de música não estava em seu horizonte ainda. Voltou para Salvador e, com a ajuda de um amigo, conseguiu um emprego de metalúrgico, que lhe deu estabilidade financeira. Casou-se com dona Célia, comprou um Opala Coupé preto, e se jogou no universo da música por prazer. Virou compositor na escola de Samba Filhos do Tororó e dos Apaxes do Tororó, passou pelos blocos Alerta Mocidade e Alerta Geral e ajudou a fixar a quinta-feira do samba no Circuito do Campo Grande, durante o Carnaval. Em 2003, criou com o filho Fernando o Bloco Amor e Paixão.
No plano nacional, tornou-se conhecido e admirado como co-autor de sucessos como Todo Menino é um Rei e Vazio, gravados por Roberto Ribeiro, e Verdade, sucesso com Zeca Pagodinho.
Mercado Modelo
Na última sexta-feira, às vésperas de rápida viagem para shows em São Paulo, Rufino, que completa 80 anos amanhã, sentou-se no terraço do Restaurante Maria de São Pedro, no Mercado Modelo, para repassar sua história. O mesmo local onde muitas vezes registrava as inspirações que lhe vinham em um gravador portátil com fita cassete, método que nunca abandonou.
O Mercado Modelo tem uma grande relevância na carreira de Rufino. Ali, conheceu o lendário sambista Chocolate da Bahia, que completa 80 anos em 2023, e fez muita festa com outro mestre do samba, Walmir Lima, autor de Ilha de Maré.
"Nelson Rufino é um dos grandes poetas do Brasil, uma das grandes expressões do samba, junto com Edil Pacheco e Ederaldo Gentil", diz Lima, nascido no Tororó e que foi casado com a irmã de Nelson. Onze anos mais velho que o compadre, Lima, que já fazia samba, acabou introduzindo o adolescente no universo das escolas de samba do Tororó.
"Quando ele tinha 12 anos, a mãe dele me perguntou se ele tinha jeito para música, porque gostava muito de cantar", lembra Lima, que recebeu do cunhadinho o apelido de Picardia, pela elegância com que ia ao samba.
Sambas certeiros
Outro grande sambista do convívio de Rufino é Zeca Pagodinho. Eles se conhecem há mais de 30 anos e, além do super hit Verdade, o carioca já gravou diversos sambas compostos por Rufino, como Dono da Dor, Pago pra Ver e Cadê Meu Amor?. O amigo é só elogios. "Seus sambas são certeiros, com ginga baiana e cheios de poesia. Vida longa pra Rufino e pra sua música", declara Zeca.
O contato por telefone entre os dois é regular. "A gente sempre se liga nos aniversários ou quando dá saudade. Mas ele não é de falar muito não, conversamos uns 30 segundos e ele desliga", diverte-se Rufino.
O episódio em que a música Verdade foi parar no repertório de Zeca é bem peculiar. Na década de 90, durante uma visita do carioca à Bahia, Rufino e outros sambistas foram visitá-lo no Bahia Othon Palace Hotel. Zeca subiu para o quarto e sua filha Elisa, então criança, ficou na área de lazer tomando aulas de capoeira do compositor, meio desengonçado.
Quando Zeca voltou, encontrou os dois se divertindo enquanto o amigo baiano cantarolava a canção, ainda inédita. O carioca pediu para os dois continuarem e foi buscar uma filmadora. Rufino riu ao ver-se no vídeo sem camisa, lutando capoeira com uma criança, e um tempo depois chorou quando recebeu de surpresa a gravação da sua música na voz do amigo.
A rítmica na métrica
Nas palavras da sambista e pesquisadora Juliana Ribeiro, a música de Rufino é específica e pontual. "Ele tem a capacidade de colocar a rítmica dentro da métrica”, diz ela, que é mestre em Cultura e Sociedade, pesquisa compositores brasileiros e conheceu Rufino em show dela na Varanda do Sesi.
Ela o reconheceu na plateia e pediu para sentar-se à mesa. Descobriu que o sambista foi colega de seu pai no quartel do exército. A aproximação rendeu convites mútuos. Rufino aceitou participar das quatro edições do projeto Cantando com compositores, que Juliana conduziu em diferentes espaços culturais, para que os artistas falassem ao público sobre o processo de criação de suas obras.
Juliana aceitou cantar no bloco Amor e Paixão, de Rufino, nos anos de 2018 e 2019, quando a cantora também era comentarista de samba nas transmissões de Carnaval da TV Bahia (2018) e TVE (2019). "Teve um dia em que passou o bloco e eu desci correndo do estúdio móvel da TVE para ir cantar", lembra.
Antes de conhecer Rufino pessoalmente, quando começou a pesquisar sua música, Juliana descobriu o videoclipe do Fantástico em que Roberto Ribeiro canta Todo Menino é um Rei. "É um clipe de 1978, ano do meu nascimento, que fez umas misturas de imagens interessante. Ficou híbrido e poético, que são marcas de Rufino", declara.
Responsável há cinco anos pela agenda de Rufino em São Paulo, a produtora Cecília Souza destaca que começou a trabalhar com ele, logo depois de encontrá-lo em um evento na capital paulista que tinha o baiano como um dos convidados. Era o Encontro de Gerações. "Fiquei encantada com a apresentação dele, fiquei mais fã ainda, daí apareceu a oportunidade de trabalhar diretamente com ele", lembra Cecília.
Homenagens
As homenagens pelos 80 anos estão acontecendo. E uma delas vem em forma de nova canção. Nelson Rufino já gravou os vocais para o single Jangadeiro, música composta em sua homenagem pela brasiliense Ana Luíza Flauzina, professora da Faculdade de Educação da Ufba. O single deve sair em breve.
Filha de cariocas fãs de Zeca Pagodinho e Nelson Rufino, Ana se acostumou a ouvir samba enquanto a mãe cozinhava na residência de Brasília aos domingos. "A música de Rufino é, para mim, sinônimo de alegria, das reuniões de família", conta a professora, que veio morar em Salvador em 2016, quando passou em um concurso público para ensinar na Unilab.
Na capital baiana, se enturmou com sambistas e se animou a fazer suas próprias músicas. Uma delas, inicialmente batizada de O Samba é a Força que me Conduz foi apresentada a Rufino no ano passado, quando ela o conheceu através de uma amiga baiana que contou sobre a música ao compositor, explicando que a canção foi feita em sua homenagem. "Rufino tem essa coisa generosa de ouvir o trabalho de quem está começando", diz Ana.
O compositor não só aprovou o presente, como se dispôs a gravar a música, que para o single recebeu o arranjo da violonista Marília Sodré. Um trecho da música diz: "Tenho certeza que cumpri minha missão de ser sambista, amar a vida e honrar meu coração". A pedido de Rufino, o nome da música, que cita uma jangada, mudou para Jangadeiro. "É uma música tão bem feita que podia ter dois ou três títulos", elogia o compositor.
Mas há também homenagens coletivas. O grupo cultural Vivavós, formado, como o nome sugere, por pessoas idosas, realiza no próximo dia 20, na Sala do Coro do TCA, o espetáculo Recital para o poeta, com músicas de Rufino, às 19h, com valor R$ 30 (inteira).
Em parceria com a produtora Macaco Gordo, de Chico Kértesz, está sendo finalizado o DVD 55 anos de samba, que foi gravado na Concha Acústica do TCA em 2019, mas que acabou ficando mesmo para este ano. "Foi uma festa muito bacana que fizemos. Infelizmente, veio a pandemia e tivemos que parar o trabalho. Mas é tudo no tempo de Deus", declara o músico e produtor Fernando Rufino. Entre os convidados para a festa estiveram Jorge Aragão, Péricles, Dudu Nobre, Jau, Ilê Aiyê, Gal do Beco e Edil Pacheco.
Fã de Chico Buarque, Rufino declara que considera importante ressaltar o trabalho dos outros artistas. "A nobreza de um compositor é o respeito pela obra alheia. É muito bom quando um compositor reconhece uma grande obra de outro autor. Por exemplo, tem Chuva Santa, de Chocolate; Walmir Lima tem cada coisa... É bom não ter birra com o outro compositor e poder bater palma. Como se diz, essa música eu gostaria de ter feito", declara.
Sobre o seu próprio trabalho, ele diz: "É preciso ter talento e sorte. Eu tive os dois". O menino rei, que na infância pobre da Curva Grande do Garcia pegava o bonde "para levar a roupa dos brancos" que sua mãe lavava, chega aos 80 pensando em desacelerar e levar uma vida mais família.
"Dona Célia é uma companheira maravilhosa, me deu filhos lindos e me ajudou nos tempos difíceis", diz o compositor, que, talvez inspirado pela letra de Jangadeiro, pensa em dois ou três anos ir morar numa casa de praia em um município pequeno.
Em qualquer lugar, pode repetir o olhar para cima, o gesto de colocar a mão na orelha e ligar o gravador quando chegar uma inspiração. Verdade.
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