CRÔNICA
Os tímpanos de Bigue Bróder
Confira a crônica da Revista Muito deste fim de semana
Por ró-Ã
Um amigo me garantiu ter começado a receber publicidade de determinados produtos no celular após mencioná-los numa conversa. Atenção: não é que ele tenha pesquisado sobre o item, mas apenas comentado estar precisando de um novo colchão, por exemplo. Teve início, assim, uma danação de anúncios de colchões de todos os tipos e preços, inclusive um de Látex Natural! tamanho Queen! por módicos R$ 130,00! e frete grátis!
Será, meu Deus, que Bigue Bróder já anda urubuzando nossos papos no mundo físico? Que olhos tem, a gente sabe: gulosos e algorítmicos. Agora ouve também? Porque não há motivo para o sujeito ter inventado essa história. Conheço-o faz tempo e sempre se mostrou confiável, jamais indicando sofrer do juízo em maior grau do que qualquer um de nós, que atendemos aos critérios de mentalmente sãos. Coincidência, talvez?
Tem gente que não acredita em coincidência de espécie alguma: tudo tramado, seja pela CIA ou pelo Cosmos. Eu nunca fui paranoica, porém já estou começando a suspeitar de que somos bem mais vigiados do que possa imaginar a nossa vã filosofia. Por enquanto, parece que a coisa ainda está principalmente voltada a ofertas comerciais e promoções irresistíveis, como adquirir um colchão Queen de látex natural pelo valor de um inflável, quando sabemos que mesmo os de espuma, de igual tamanho, não se vendem por menos de mil reais.
O troço vai pegar brabo quando BB passar a escutar nossos pensamentos ou uma ou outra palavra que falemos durante o sono. Eu, tagarela adormecida ferrenha, estarei lascada de pai e mãe. Sonho, ainda que inocente, é íntimo demais para ser exibido em praça pública. Vamos especular o que seria da minha reputação se Bigue Bróder divulgasse aos quatro cantos que certa vez me sonhei namorada de um grão de bico. Íamos ao cinema, à praia no Porto da Barra, trocávamos carícias, dançávamos Canzone per Te – que merece ser regravada a fim de que as novas gerações a conheçam.
No mínimo, os detratores desta personalidade tão influencer cairiam matando por eu não ter tido como muso um feijão carioquinha; grão de bico é coisa de burguês, não acessível à população de baixa renda. Afinal, recentemente fui espicaçada por declarar que há muitos anos faço coleta seletiva, com os argumentos de que (1) quem mora na periferia não separa lixo, (2) tenho essa preocupação por desconhecer a infeliz realidade de muitas populações africanas e (3) possuo uma mente colonizada pela faculdade da Ufba onde cursei Comunicação com Habilitação para Jornalismo. Fiquei estupefata com o disparate das acusações, só conseguindo ponderar que o ato de separar meus resíduos não prejudica um único organismo sobre a Terra. A não ser, talvez, os catadores nas ruas, a quem não deixo sobrar nada vendável.
É verdade que nada que a gente faça está isento de causar reação ao outro, nem que seja despertar um sentimento cujas origens são de difícil identificação – ou tantos não se ocupariam disso desde que Dr. Freud se enveredou por tais mistérios. Estar sujeito a esses enigmas é parte constituinte de viver, desde que o mundo é mundo, porém a vulnerabilidade de ver qualquer palavra proferida ser imediatamente transformada em mercadoria não é só desconfortável; é preocupante.
Quando li 1984 pela primeira vez, ainda bem jovem, me impressionou aquele mundo presumido por George Orwell, que não me soava impossível mas parecia compor um futuro além da minha existência. Não pensei sequer que chegaria a conviver com as videochamadas exibidas no desenho animado Os Jetsons, às quais tanto almejava que pedia a Jesus todas as noites a graça de vir a testemunhar.
Tudo certo, até que o amigo do parágrafo lá em cima me assegurou estar observando suas conversas transmutadas em comerciais e tentativas de golpe. Se não for acaso ou fruto de delírio, meu primeiro impulso é perguntar aonde vamos parar. Logo em seguida, no entanto, penso que sempre encontraremos formas de driblar, com maior ou menor sucesso, as eternas brujas que hay, em suas diversas e infinitas formas de manifestação. E de deixar descendentes mais aptos a coletar seletivamente as alegrias e dores desta vida curta, incompreensível, quem sabe terminando com uma vírgula a ser desvendada mais adiante.
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