MUITO
Palco de lutas: a arte e o ativismo de drag queens baianas
Por Gilson Jorge | Foto: Rafael Martins | Ag. A TARDE
Madrugada de 7 de setembro de 2018. Militares fazem preparativos para o desfile da Independência do Brasil no Campo Grande. A menos de um quilômetro dali, na boate Âncora do Marujo, na Carlos Gomes, a drag queen Petra Perón encerra o seu show conclamando os presentes a gritar “Ele não!”, em referência ao ex-capitão do exército Jair Bolsonaro, que no mês seguinte seria eleito presidente da República, lançando uma sombra de medo de retrocessos para a comunidade LGBT.
Mas meio ano depois da inauguração de um governo de extrema-direita, o clima entre a militância queer é de altivez. “Quando tentam nos imprensar, nós nos unimos”, resume Petra, estudante do bacharelado interdisciplinar em humanidades da Ufba que faz parte de uma geração de drags de classe média que abraçaram o que no ambiente acadêmico está sendo chamado de artivismo, que é o ativismo social através da arte. E, em um país polarizado, a militância muitas vezes inclui o choque com familiares conservadores.
No dia 19 de junho de 2015, um jovem vindo do interior, que na pré-adolescência brincava de dublar Mariah Carey, Britney Spears e Patti LaBelle, com um lençol amarrado ao corpo, faz sua estreia na noite de Salvador como Desirée Beck, durante o concurso Super Talento (ST), na mesma Âncora do Marujo. A acanhada casa noturna na rua Carlos Gomes é um dos mais conhecidos locais de shows performáticos da comunidade LGBT na cidade. Muitas das drags que se firmaram no mercado de entretenimento local subiram naquele palco, colocaram uma mão sobre o próprio peito e, com mil caras e bocas, interpretaram suas divas e se tornaram elas mesmas musas.
Foi na Âncora do Marujo que, em 2008, Desirée viu pela primeira vez uma drag queen, em um rolê para conhecer a noite LGBT da capital. Ficou encantado com o colorido e o glamour. Mas a decisão de se tornar uma artista veio sete anos depois, quando estava “zapeando” o controle remoto da TV a cabo e deu de cara com o RuPaul’s Drag Race, o reality show que é um fenômeno da TV nos Estados Unidos e que quase ganhou uma versão brasileira em 2017.
Os direitos de distribuição no país foram adquiridos pela Endemol Brasil, a mesma empresa que comercializa o Big Brother Brasil e o Masterchef, mas o projeto acabou engavetado. Segundo a assessoria da Endemol, o contrato venceu sem que houvesse um processo que na época foi atribuído à onda moralista que tomou conta do Brasil nos últimos anos.
De família conservadora, Desirée comprou a briga e se tornou um dos jovens de classe média que formaram o Haus of Gloom, coletivo de drags que funcionou até o ano passado, com uma clara dose de ativismo, contra os preconceitos e com o reconhecimento de que seus fundadores têm privilégios em comparação a drags negras da periferia. “Depois do concurso, eu nunca fiquei 15 dias sem me montar”, afirma Desirée, sobre a facilidade com que encontra trabalho como maquiadora ou animadora de eventos.
Uma facilidade que Ferah Sunshine não encontra. A drag, que tem como marca a dublagem de Elza Soares, às vezes se candidata a trabalhos na área de entretenimento e, apesar do vasto currículo na noite, não é selecionada. ”Você sente que a pessoa vai perguntando o que você faz, você manda portfólio e na hora da resposta percebe aquela coisa velada”, diz Ferah. Ela já ouviu como argumentação para não ser escolhida o fato de que o contratante teve experiências ruins. E ao investigar do que se tratava, soube que era outra drag negra que havia sido dispensada.
“Tem hora que é preciso ir além do entretenimento, do close certo”, afirma Valerie O’Hara, organizadora do concurso Super Talento, que endossa as queixas sobre discriminação no mercado de trabalho. Este ano, o concurso acontece no bar Caras e Bocas, também na Carlos Gomes. A primeira seletiva foi no último dia 6 e o evento prossegue até setembro, sempre aos sábados.
Salto alto
O desfile começa do lado de fora da boate. Na primeira etapa, 16 drags desceram em frente a Caras e Bocas de um carro de aplicativo, táxi ou na carona de um amigo, porque dirigir com salto alto não é fácil, com trajes que vão do lúdico absoluto ao glamour total. Na portaria, uma pessoa recebe o valor do ingresso e, ao colocar a pulseira de acesso, informa a quem parece estranho ao ambiente que se trata de um concurso de drag queens.
Cada candidata tem três minutos para estimular a plateia e garantir a presença no concurso seguinte. E, semanalmente, uma é eliminada pelo júri, que avalia o vestuário, a maquiagem e a performance.
Para as drags mais concorridas, o mercado de trabalho tem se diversificado, embora ainda seja difícil viver exclusivamente de arte. Outra ex-integrante do Haus of Gloom, Aimee Lumiére, comanda todas as quartas-feiras, desde o início deste ano, o karaokê da boate San Sebastian, no Rio Vermelho. Na mesma boate, ela é a DJ residente da festa Shantay. Pelo menos duas vezes por mês é contratada para chás de lingerie, como são chamadas as antigas despedidas de solteira, e faz animação de eventos, com cachês que variam de R$ 400 a R$ 500. “Mas eu me mantenho mesmo com um trabalho fixo”, explica.
Vencedora do Miss Salvador Gay, Miss Bahia Gay e Miss Brasil Gay, Petra Perón acredita que poderia sobreviver do trabalho como drag queen, mas faz questão de trabalhar como assessor parlamentar na Assembleia Legislativa, onde se tornou a primeira pessoa a ter a incumbência formal de acompanhar e propor pautas relacionadas aos direitos da população LGBT.
Foi do gabinete do deputado Jacó, onde trabalha, que saiu no mês passado a indicação 1534/2019, solicitando ao governo do estado a criação da categoria drag queens, drag kings e performers no Credenciamento de Artistas da Bahia, sistema mantido pela Secretaria da Cultura (Secult) para mediar a contratação de artistas para eventos.
Uma das preocupações de Petra é a costura de apoio, entre os movimentos negros e LGBT, a uma mesma candidatura a prefeito no ano que vem: “O Estado não é pensado para negros e homossexuais, temos que construir nossa agenda”.
“De um modo geral, a comunidade LGBT está mais militante”, avalia o professor Leandro Colling, coordenador do Grupo de Pesquisa Cultura e Sexualidade (CuS), que lança agora em agosto o livro Artivismos das dissidências sexuais e de gênero. Editada pela Edufba, a obra reúne 11 textos de vários autores sobre artistas e coletivos que utilizam o teatro e a música para “problematizar e questionar as normas de gênero e sexualidade no país”, conforme descreve o texto de apresentação.
Mais nova celebridade do universo drag queen na Bahia, Nininha Problemática começou o seu ativismo pelo viés étnico-racial quando ainda mantinha um canal no YouTube em que se apresentava como Digo Santtos. “Eu tinha a preocupação de dar visibilidade a artistas negros da periferia”, explica. Com o tempo, surge a ideia de acrescentar humor ao seu trabalho para tornar os vídeos mais atraentes. Com uma peruca de trança, tomada emprestada de uma amiga, virou uma entrevistadora, mas ainda faltava o nome. A escolha de Nininha foi uma referência à maneira carinhosa como as vizinhas do bairro de Sete de Abril se tratam quando conversam através das janelas. “O Problemática é de questionadora, não de barraqueira”, explica.
A popularidade entre os jovens veio com o clipe que produziu para Batedeira, música da banda La Fúria. Nessa versão, Nininha aparece quebrando até o chão, segurando uma batedeira e vestindo um short jeans apertadinho. “Eu usava esse short em todos os vídeos, era o único que subia”, diverte-se. Uma hora depois de postar o clipe, ela checou o celular e lá estavam 10 mil visualizações. Um assombro para quem ficava feliz quando era vista por 300 pessoas. Quando chegou ao trabalho, um cinema de shopping, um colega lhe chamou para dizer que tinha recebido um vídeo com ela pelo WhatsApp. Bafo.
Nininha pediu demissão e se jogou na carreira artística, que já rendeu parcerias com Leo Santana, Preta Gil e o Attoxxa, banda que ajudou a produzir seu clipe Favelada e que a convidou para dançar no clipe de Popa da Bunda, versão da Afrobapho, um coletivo de jovens negros LGBT que surgiu como página no Facebook e ganhou a noite soteropolitana. Um detalhe é que Nininha só se assumiu uma drag queen quando foi convencida por uma amiga: “Eu pensava que para ser drag tinha que ter aquele luxo de RuPaul”.
Verbete
Mas, afinal, o que é ser uma drag queen? Boa parte dos glossários LGBT vinculados a instituições acadêmicas tem o verbete dressed resembling a girl, que em português significa, em tradução livre, vestido semelhante a uma menina, cujas iniciais em inglês formam a palavra drag. O primeiro problema com essa definição é que há mulheres fazendo drag queens. “Tenho quatro amigas heterossexuais que se apresentam como drags. São minhas filhas drag”, brinca Aimee Lumiére.
Leandro Colling aponta que, em um dos primeiros registros surgidos nos Estados Unidos sobre o movimento, a pesquisadora Esther Newton traz as expressões impersonator (imitador) e drag. O trabalho de campo durou dois anos e gerou o livro Mother camp: Female impersonators in America, publicado em 1972.
“O queen, diz a autora, era uma forma de se referir de forma genérica a qualquer homossexual. Suponho que, muito mais, para os homossexuais afeminados”, pondera o professor, que discorda da definição associada às iniciais do termo. “Para uma drag, seria um fracasso parecer vestida semelhante a uma menina”, afirma Colling, que vê uma diferença substancial entre esse movimento e as transformistas que reinaram nas boates gays brasileiras até o início da década de 1990. Nesse período, o objetivo dos artistas era fazer uma imitação gloriosa de divas como Cher e Liza Minelli, cantando ou dublando, a ponto de deixar a audiência impressionada com a semelhança.
Em meados da década do 1990, o surgimento de RuPaul na TV norte-americana levou ao surgimento de umas poucas drags no Brasil, acompanhando um movimento mundial. Em Salvador, drags começam a se apresentar sobretudo na antiga Holmes 24, que funcionava onde hoje existe a Tropical. “Eu identifico Valerie muito nesse momento de transição e, além disso, ela trouxe com força para o palco a sua identidade afro-baiana, coisa que não era muito comum de se ver antes dela”, diz Colling.
A drag, remarca ele, não vem com o propósito de parecer uma diva conhecida, mas exagera nos atributos e características tidas como femininas. Cabelos, vestimentas, sapatos, cores berrantes. Tudo é harmoniosamente over. “Na cena de Salvador, eu identifico Sfat Auermann como uma das primeiras artistas conectadas com essa estética drag”, lembra.
Valerie não nega a influência de RuPaul no movimento de drag queens na Bahia, mas relativiza a importância da sua estética. “RuPaul é um produto internacional, e o Super Talento é um produto nosso. Claro que há essa projeção que as pessoas fazem desde o de fora para o nosso. E não vejo isso como algo ruim”, analisa.
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