MUITO
Par ou ímpar
Após uma série de relacionamentos malsucedidos, Zelda decidiu aguardar um par que fosse impecável – ou mais ninguém. Nem que ficasse solteira para o resto da vida. Àquela altura, achava até que poderia se dar melhor com outra mulher, mas o problema se expunha de que gostava de namorar com o sexo oposto.
Avaliava que peso tem o prazer carnal num relacionamento amoroso. Começa assim, a gente sabe, paixão na fúria de se afogar em manifestação de todos os sentidos, pretendendo nunca ter fim. É verdade, o amor muitas vezes não morre – especialmente se for verdadeiro –, porém o ímpeto do acasalamento quase sempre vai se afastando das condições ideais de temperatura e pressão.
De todo modo, estava agora mais interessada em uma alma gêmea, composta por elementos dos homens que conheceu: Afonso inteiro, fora os calundus; Deraldo também, exceto a posse do copiraite da Verdade; Guido sendo o máximo, se apenas conseguisse exercitar mais delicadeza e companheirismo. Além dos três maridos, ocupava-se em elaborar uma lista das qualidades maiores dos namorados, numa espécie de exercício à moda do Dr. Frankenstein, mas que não resultasse em monstro solitário e vingativo. Reunidas num só homem, as partes mais apreciadas de uns e de outros viriam a compor o sonho bonito que sempre sonhara esta Bela Adormecida já ensaiando a apresentação de rugas gravitacionais.
Realista, no entanto, parecia-lhe que encontrar combinação que resultasse em felicidade sob a forma de (1) ser vivente do sexo masculino, (2) que também se engraçasse por ela e (3) dessem de se encontrar no momento propício, era possibilidade mais remota que ganhar sozinha na loteria acumulada. Contemporizava, então: Tá bom, uma besteirinha ou outra que nele existisse de imperfeição não seria problema. Todavia, não era assim a grande parte dos relacionamentos de gente sua conhecida: conveniência, acomodação, interesse, grosserias cotidianas de parte a parte, como é que esse povo consegue se arrastar desse modo? A vida não é tão curta?
Influenciada por Guadalupe, possuidora de diplomas sem conta e há quatro décadas mantendo um casamento de pós-doutorada merda, Zelda teimou em seu último por 18 anos. Tese guadalupana: “Vejo minhas amigas tudo se queixando, pra que vou me mexer e perder este apartamento maravilhoso?”. O que Zelda dividia com o marido nem era essas coisas, mas uma vez que não existia homem que prestasse…
No dia em que Guadalupe lhe telefonou, eufórica, anunciando que estava apaixonada! renovada! rediviva! Zelda não demorou a despachar o tipo com quem não tinha certeza de poder contar numa situação difícil, porque em situações difíceis ele só conseguia se ausentar. Que nada! Quero um parceiro de verdade! Era exigente de mais? Quem muito reivindica fica só? Deveria bastar-lhe o que encontrasse à beira do caminho? Não! Já tinha agora maturidade para relevar pequenos defeitos, afinal ela mesma não era uma coleção de virtudes. Contudo, não estava mais disposta a querer menos que uma convivência amável e cúmplice. Nem a tolerar traços da personalidade do outro que a esmagassem.
E assim, talvez ele ainda viesse. Talvez nunca. Não tinha medo do tempo e se deixava nas mãos do Acaso, que a tudo rege. Quem sabe na próxima encarnação, se houver. Entretanto, a certeza feliz de que jamais lhe assombraria o suspiro: “Ruim com ele, pior sem ele”.
É certo que compartilhar a vida com alguém é mais gostoso que uma jornada solo; os segredos, o carinho, as piadas, o universo que se desenvolve entre duas pessoas contribuem para encher de graça a existência tantas vezes árdua e insuportável. Mas antes de poder ser par, o indivíduo precisa viver de boa como ímpar, consigo mesmo – acreditava Zelda. Curtir a si e sua própria companhia, cultivar gostos e hábitos, dedicar-se às suas flores e ervas daninhas intransferíveis, desenvolver um mundo próprio – que, sendo divisível, estaria apto a acolher outro alguém. Conhecer-se, antes de tudo, ou a tentativa será vã de saber respeitar a adição que o companheiro trará.
Outras muitas crenças cultivava Zelda, mas se calava porque tinha horror a cagar regra. Se soubesse vanGoghear, produziria uma mulher amarela como polpa de manga madura e detalhes em fúlgido azul, com a qual se entendem as almas e os corações, ainda que jamais venham a se encontrar.
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