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MUITO

Pare, olhe, escute

Por Tatiana Mendonça

18/07/2016 - 11:10 h
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Inaugurada em 1860, a Estação Ferroviária da Calçada, na Cidade Baixa, é o ponto de partida para uma viagem que corta a costa oeste da cidade rumo a um passado e a uma paisagem bucólicos - paisagem que, em breve, será radicalmente modificada com a implantação do VLT

No começo de uma tarde de quarta-feira, uns homens jogam baralho em meio às barracas de frutas e verduras da feira. A mulher grita vendendo chip para celular, os barulhos dos carros se multiplicam, a vida pulsa no largo. Um prédio imponente assiste ao movimento com certo orgulho de tê-lo criado. Inaugurada em 28 de junho de 1860, a Estação Ferroviária da Calçada fundou um destino e um bairro. Para quem vem do centro, é o primeiro ponto de acesso ao trem do subúrbio ferroviário, que percorre a costa oeste de Salvador. A construção antiga dá ares de que a viagem será no tempo. Lá no alto, tremula uma bandeira puída da Bahia.

Num futuro próximo - sendo próximo uma palavra elástica quando se trata de obras públicas - aquela paisagem irá mudar. O feirante Edvaldo Barbosa, 59, já ouviu falar nessa história, mas não sabe direito o que é, nem quando, nem como. Por enquanto, tem só medo de que sumam os fregueses conquistados em oito anos de trabalho.

O plano do governo é substituir os trens do subúrbio pelo VLT (veículo leve sobre trilho), cuja licitação deve ser divulgada em agosto, depois de mais de um ano de atraso. O projeto é ambicioso. O VLT deverá ter 18,5 quilômetros de extensão e 21 paradas, mantendo o atual desenho do trem com duas intervenções: a ligação de Paripe à Av. São Luiz e da Calçada ao Comércio, com possível extensão via metrô para a Lapa ou Retiro.

O custo total da obra é de R$ 1,1 bilhão, com recursos federais e estaduais. O valor é próximo ao que foi gasto na desastrosa construção da linha 1 do metrô, orçado inicialmente em R$ 350 milhões e que após 15 anos de obras ficou pronto pela bagatela de R$ 1,4 bilhão. Não há estimativa de quando o VLT começaria a operar.

Hoje, dois trens percorrem lentamente 13,6 km entre a Calçada e Paripe, parando em dez estações, contando a chegada e a partida. Muito embarcou nessa viagem com uma pontinha de despedida.

Mesmo fora do horário de pico, corre-se o risco de não achar lugar para sentar, o que acaba sendo um bom negócio para passageiros estreantes. Assim, dá para ir espiando ao mesmo tempo a vida alheia nas casas que ficam ali na beira e a vastidão do mar. Soa o apito, as portas se fecham.

A vida pela janela

No princípio, é tão devagar o trem que não é totalmente maldade pensar se não era melhor ir andando. Passados alguns minutos, vai ganhando velocidade. As outras duas sensações imediatas são o barulho contínuo e o calor. As frestas das janelas ficam abertas, mas não tem luxo de ar-condicionado. Por dia, são transportados ali cerca de 17 mil passageiros. Já foram 30 mil, mas minguaram com a diminuição do número de locomotivas e o aumento do tempo de espera. Quem chega e perde o trem que acabou de sair aguarda por pelo menos 40 minutos. São, na maioria trabalhadores indo ou voltando do serviço, estudantes à caminho da escola, gente rumando para a casa.

Entre os trilhos há mato alto e muito lixo. Como não há muros ou gradis separando-os da vizinhança, os trens passam sem barreiras por centenas de portas e quintais. Ali adiante são duas mulheres conversando da janela, mais embaixo há roupas estendidas nos varais. De repente, parece que caímos num livro de Lima Barreto. É difícil não ser tomado por certa comoção.

Pergunto a uma moça que segura sacolas do mercado se ela não se importa de ir em pé no vagão cheio. "Cheio? Cheio é o de 16h em diante", responde com certo ar de superioridade experiente. Uma moça de batom brilhante e cabelão loiro exibe-se para as fotos, com jeito de quem nem está ligando. Ramona seu nome. Toda vez que fala alguma coisa, ergue os olhinhos para cima, como se tivesse que pensar um pouco antes, mesmo que só precise dizer a idade. Olhinhos, 27. Mora em Plataforma e conta que pega o trem todos os dias para trabalhar. A passagem é baratinha, R$ 0,50, e não tem que ficar presa em engarrafamentos. Aproveita o tempo para ouvir música, falar com os amigos pelo WhatsApp. Já ouviu falar de gente que foi assaltada ali - "isso hoje é em todo lugar, né?" - mas ela mesma, graças a Deus, nunca viu nada.

O sol bate no mar deixando a água brilhante. Um pescador joga a rede, os meninos batem baba na areia. Não é qualquer trem que tem essa vista, podendo ainda passar por uma ponte, a São João, que liga o Lobato a Plataforma. O equipamento foi reinaugurado em 2012, ao custo de R$ 60 milhões. A estrutura do equipamento estava comprometida, depois de 60 anos sem reformas. Logo no dia da festa de reinauguração, com aquele monte de autoridade ali se promovendo, o trem quebrou e teve que interromper a viagem.

Autoridade e assédio

De repente, a segurança que viaja encostada na porta diz alto, para que fiquem todos cientes da sua autoridade: "O senhor sabe que assédio é crime? O senhor sabe?" Um homem que bebia sua cachaça, levada numa sacolinha, a importunava e não ligou muito para o aviso. O outro vigia teve que pedir para que sossegasse. Reconheceu a palavra masculina, parou logo ali em Escada. "Graças a Deus, o 'bêbo' foi embora. Ousado, né?", disse um senhor direcionando a frase a um interlocutor aleatório. Depois seguiu a prosa. Que muita gente se perde assim, na cachaça, nas drogas. Já tinha visto muitos desse jeito, quando trabalhou com meninos carentes. "Tem que dizer assim agora, carente, porque chamar menino de rua... Você é até processado!".

Em Coutos, o dia escurece na passagem do túnel. No caminho se veem escolas, como a piloto Escolab, criada este ano pela Secretaria Municipal da Educação numa parceria com o Google, e hospitais de porte, como o João Batista Caribé. Há quem desça do trem e ande ali mesmo pelo trilho para chegar ao destino. Outros param na espera do trem passar para chegar à praia. É tudo junto, tudo parte da vida. Em 35 minutos, chegamos a Paripe. Já é hora de voltar.

>> Cenários bucólicos e realidade sombria

Os trilhos batizam e margeiam o subúrbio ferroviário. Desde que nasceu, há 37 anos, Jefferson Santos mora de frente para a linha, em Santa Luzia. Menino, andava muito de trem, mas hoje só embarca se precisar resolver alguma obrigação rápida na Calçada. Por isso, hoje lembra mais dos transtornos que das vantagens. Que racha as casas, que faz um barulho medonho. "É uma zoada que a pessoa nem consegue dormir direito. Mas a tudo se acostuma".

Pai de dois filhos, já cansou de repetir para a menorzinha, de 7 anos, que não é para atravessar o trilho sozinha. Conta que já viu muito acidente feio, coisa de gente que passou achando que ia dar tempo, e depois não houve tempo que desse. Se são muitos? "Oxe, são. Só eu já vi mais de 10. De 'rancar' braço, pescoço. Mas, com a construção dessa estação aí [a de Santa Luzia], melhorou". De acordo com os dados oficiais, o trem "alcançou" 12 pessoas e 19 veículos nos último cinco anos, provocando duas mortes.

Da varanda, a dona de casa Vânia Félix, 32, vizinha de Jefferson, espia o movimento da rua. Ela demorou a se acostumar à vista. Nascida em Cajazeiras, mora no bairro há oito anos. Ainda hoje, volta e meia se aborrece de acordar com o barulho do trem de manhã cedinho e de perder as falas mais importantes das novelas, porque bem na hora o trem passa. Eles nunca ouviram falar nessa história de VLT.

No subúrbio vivem cerca de 600 mil moradores, cuja renda média mensal não costuma superar os R$ 500. O cenário bucólico abriga uma realidade sombria. Só este ano, foram registrados 72 homicídios. No ano passado, o total de assassinatos chegou a 244, o que deixou a área no primeiro lugar do "ranking". A "segunda colocada" foi Tancredo Neves, com 153 mortes.

Costa Oeste

O trem faz parte da paisagem do lugar desde junho de 1860, quando foi inaugurado pela Bahia and San Francisco Railway Company. Atualmente, é administrado pela estatal Companhia de Transportes do Estado da Bahia (CTB), vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Urbano (Sedur). Al Mota, 62, é o responsável por controlar as operações e é também um dos funcionários mais antigos da ferrovia.

Aos 26 anos, engenheiro recém-formado, começou a trabalhar com trens e não parou mais. Só ali no subúrbio já está há 27 anos. Mas esse não é um nome de que goste. Acha pejorativo por causa do prefixo "sub", como se estivesse abaixo da urbanidade. Prefere costa oeste. E fala de boca cheia que estão ali as praias mais bonitas da cidade.

Al conta que, antes de haver a mudança para o VLT, há a esperança de dois novos trens, o que diminuiria o tempo de espera para quinze minutos. Quando a conversa percorre os perigos da linha férrea, minimiza dizendo que o trem é o meio de transporte mais seguro que existe e que "99%" das ocorrências são suicídios. Mas lembra o caso de uma mulher que estava fazendo uma oferenda num cruzamento e "incorporou uma entidade" que a deixou "descontrolada". "Ela se jogou no trem e ficou sem as pernas. Isso tem uns dez anos, ali na Baixa do Fiscal".

Paixão por trens

Apaixonado por ferrovias, Gilson Vieira, 61, lembra que com o VLT os intervalos vão diminuir (a estimativa é de 10 a 12 minutos) e que por isso seria importante gradear os trilhos e construir passarelas, para que os moradores possam ter acesso à praia. Mas diz tudo isso para o caso de sua luta maior não vingar. Por meio da organização Movimento Trem de Ferro (MTF), que criou em 1986, está entrando com uma petição contra o estado pedindo acesso aos estudos que respaldam a implantação do VLT e defendendo a manutenção dos trens do subúrbio.

Por ele, o VLT percorreria apenas o trecho Comércio-Calçada. "Para que dispensar uma estrutura na qual foram gastos recentemente R$ 200 milhões? O que precisa ser feito é disponibilizar mais trens à população e modernizar os existentes. Não se pode alterar tanto algo que é tão característico do subúrbio. É nossa memória".

Já Carlos Martins, da Sedur, defende que os atuais trens estão "ultrapassados" e que o VLT foi escolhido justamente por evitar a "segregação", ao contrário do que ocorre com o metrô. "É um veículo que convive com o tráfego de pessoas e veículos. Em Paris, passa por dentro da cidade e não há qualquer problema".

Quando Gilson era miúdo, a hora mais feliz do seu dia era andar de trem. Aos 5 anos, fugiu de casa, em Periperi, com o firme propósito de viajar até Pojuca. A família conseguiu resgatá-lo antes que embarcasse. Lembra também que um amigo seu tinha um trenzinho, mas era só apontar em sua casa para que guardasse o brinquedo. "Aquilo me dava uma angústia, uma frustração".

A vida tomou outros caminhos, e Gilson não conseguiu tornar-se maquinista, mas compensa o desencontro com o trabalho do MTF para fortalecer a minguante política ferroviária do país. Como nem tudo é luta, o grupo também organiza passeios turísticos pelos trens do Brasil e, claro, do subúrbio ferroviário, cujos vagões já abrigaram forró, samba e rock. "Hoje, no trem que eu quiser eu entro", diz Gilson, que agora pode fugir sem que ninguém lhe busque.

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