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Patrimônio: a presença de casas culturais africanas no Centro Histórico de Salvador
Por Yumi Kuwano

Considerado Patrimônio Mundial pela Unesco desde 1985, o Centro Histórico de Salvador, além da admirável arquitetura, guarda memórias de um passado doloroso, mas que também constitui nossa identidade.
A primeira capital do Brasil, fundada em 1549 e construída para centralizar as ações de Portugal na América e facilitar as transações comerciais com a África e o Oriente, também foi o primeiro mercado de escravos no continente.
Hoje, quando é celebrado o Dia Internacional dos Monumentos e Sítios – criado pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios para conscientizar a sociedade sobre a valorização e preservação desses patrimônios –, a presença de três casas de culturas africanas no Centro Histórico de Salvador ajudam a lembrar os vínculos da Bahia com o Benin, Nigéria e Angola, países com que têm relação de longa data.
A Casa do Benin, no Pelourinho, lança no mês de seu aniversário o projeto Memórias Situadas. Com uma pesquisa que teve início em 2019, Lucas Feres e Lucas Lago, vinculados ao Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal da Bahia, tinham como objetivo num primeiro momento realizar trabalhos artísticos sobre a Casa do Benin.
Mas após encontrar poucas informações e muitas lacunas, foram investigar a história da casa, desde a sua concepção.
O processo de criação foi concluído e, ao lado da pesquisadora Sarah Marques, eles deram continuidade ao trabalho. “Elaboramos o projeto de estruturação das memórias da Casa do Benin para reunir essas informações que são um convite para olhar essas memórias e pensar em outros rumos”, diz Feres.
Piloto
A casa concebida pela arquiteta Lina Bo Bardi, o etnólogo e fotógrafo Pierre Verger e pela editora e fotógrafa Arlete Soares, a partir das relações exteriores Salvador-Benin, foi inaugurada em 1988 como um projeto-piloto no Brasil para muitas outras iniciativas que, no país, acabaram não indo para a frente.
A Casa do Benin ocupa um casarão de três andares do século 18, que já foi comércio e residência até um incêndio em 1978. O projeto da recuperação arquitetônica foi desenvolvido pelo escritório de Lina Bo Bardi, financiado pelo Fundo de Recuperação do Centro Histórico em parceria com a Fundação Gregório de Mattos (FGM), que hoje é responsável pelo espaço.
De acordo com Igor Tiago, atual gestor da instituição, ela fica em um local privilegiado, ao lado de muitos outros equipamentos culturais, monumentos, e é um espaço de memória e resistência, com acervo que tenta contar um pouco do país.
E, apesar disso, não é museu, e sim uma casa: “Vai além de museu, temos outros espaços dentro da casa que compõem uma programação que dialoga com a cultura afro-brasileira, ampliamos o olhar. É um espaço educativo, de conexão com as origens”, analisa.
Nigéria
A mais jovem casa de cultura africana, e que atualmente não está aberta, é a Casa da Nigéria – não se sabe se em razão da pandemia ou não, mas a reportagem não conseguiu entrar em contato com o espaço, que fica em um casarão do início do século 17 no Pelourinho.
A casa existe desde 2000, como uma representação da Nigéria na cidade, mas só em 2008 foi oficialmente inaugurada, após reforma, quando a gestão passou a ser do Ministério da Cultura do país africano. Situado na Rua Alfredo de Brito, o prédio pertence à Santa Casa da Misericórdia da Bahia e é tombado pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
A principal missão da Casa da Nigéria é estreitar os laços históricos entre o Brasil e o país africano, além de promover uma maior compreensão da cultura negra, através da cultura e língua iorubanas, dança e música afro, além de acervo de livros e exposição de objetos do artesanato nigeriano.
Há uma forte relação entre a Bahia, o Benin e a Nigéria, que é intensificada no século 18 pelo comércio de africanos escravizados nessa região. De acordo com o historiador e professor da Universidade Estadual de Feira de Santana Carlos Silva Jr., a Bahia estabelece essa relação com o antigo Reino do Daomé (atual República do Benin) por um século e meio, até o final do tráfico, mas mesmo depois havia um fluxo de pessoas por diferentes motivos, o que durou quase dois séculos. “No início do século 20 ainda havia uma linha regular de navios que ligava a Bahia à África”, diz ele.
Origens e reconexões
No dia 5 de novembro de 1999 foi inaugurada a Casa de Angola. O centro, que ocupa o Solar do Gravatá, construção de 1733 também tombada pelo Iphan, foi resultado da iniciativa da Embaixada de Angola no Brasil, com a parceria do governo da Bahia e da prefeitura municipal de Salvador, mas é mantido pela Embaixada de Angola em Brasília.
Com o objetivo de divulgar e promover a cultura angolana no Brasil e fortalecer os laços por meio de intercâmbio, a Casa de Angola (@casadeangolanabahia) segue com a realização de eventos online durante a pandemia.
De acordo com o diretor do espaço, o angolano Benjamim Sabby, essa relação entre Brasil e Angola, que começou de forma ruim séculos atrás, pode ser vista hoje sob outra perspectiva.
E para o historiador Carlos Silva Jr., temos uma relação não apenas histórica, mas, a partir disso, foram construídos laços culturais muito fortes: “Seria importante uma política de fortalecimento e estreitamento desses laços. Inclusive deveríamos ter políticas públicas de valorização desses espaços, interagindo mais com as escolas”.
Ele ressalta ainda a importância de criar mecanismos para que haja um trânsito cultural que não se restrinja apenas à dimensão dos museus, mas que possibilite que as pessoas possam fazer viagens de turismo, para reconexão com o continente africano.
Prova dessa importância é a semelhança da cidade com a Angola descrita por Benjamim, percebida quando chegou a Salvador: “Encontramos aqui muita influência angolana, e os brasileiros nem reconhecem isso. Na culinária, na língua portuguesa, na capoeira e no samba encontramos traços angolanos. Isso torna o nosso trabalho ainda mais importante”.
Simbolismo
Há quatro anos morando na cidade, o diretor da Casa de Angola diz não se sentir estrangeiro, pela cultura e preservação da estética africana locais. “Aprendi algumas coisas sobre a África na Bahia. Isso para mim tem um simbolismo muito grande”.
O momento de pandemia é um desafio enfrentado pelas casas de cultura que, segundo Benjamim, costumava ter uma forte interação com as pessoas: “Mas estamos nos esforçando e adaptando para o novo formato e nos preparando para que a casa reabra mais forte. No espaço são realizados seminários, palestras, espetáculos de dança, desfiles de moda, lançamento de livro, tanto de angolanos como de brasileiros.
Um dos projetos mais importantes é a visitação de alunos de escolas públicas e particulares. “Já chegamos a receber 100 alunos de uma vez. Conversamos com eles sobre as semelhanças, falamos da Angola e da África, sobre tecnologia, cultura e desenvolvimento para que fiquem orgulhosos da sua origem. Sinto que isso contribui com a formação de identidade”, observa o diretor.
Preciosos
O acervo emprestado do Museu Nacional de Antropologia, em Luanda, é dividido em duas salas, onde tem arte, peças mágico-religiosas usadas em rituais de iniciação além de uma biblioteca com mais de nove mil títulos, entre livros, revistas e jornais, de Angola, África, Brasil e do mundo.
Na opinião de Benjamim, é preciso que os baianos visitem mais, pois vão conhecer mais deles mesmos, para entender as suas origens e fazer as conexões.
Já o acervo da Casa do Benin, que teve peças recolhidas por Pierre Verger, mostra os costumes beninenses, com máscaras, colares, armas, potes e algumas peças afro-brasileiras do acervo do antigo Museu da Cidade.
Separado por categorias, são diversos grupos de obras que dialogam e contam histórias. Além disso, a casa tem sala de ensaio, cozinha industrial, auditório, espaço múltiplo para atividades que dialogam com aspectos da vida afro-brasileira.
No Instagram (@casadobenin), são publicadas imagens de peças do acervo da instituição. Uma websérie, disponível no YouTube, conta um pouco a história da casa em três episódios – a criação; arquitetura e acervo, memória e mediação cultural.
O maior desafio do gestor Igor Tiago é transformar espaços como a Casa do Benin em um lugar atrativo, principalmente para os mais jovens. “Temos um déficit na educação sobre o museu, que é colocado como lugar monótono, chato, nem um pouco atrativo. Mas podemos trabalhar isso de diversas formas. É um desafio”.
Memórias
A primeira ação pública do projeto Memórias Situadas serão duas oficinas nos próximos dias 20 e 21, das 18h às 21h, no Google Meet, mediante inscrição, por meio do formulário disponível no Instagram @memorias.situadas. O objetivo é apresentar os aspectos da história da Casa do Benin para estabelecer diálogos com os interessados.
Além disso, serão lançados o site do projeto e um e-book com diversos materiais sobre o espaço, como o contexto de criação da casa, as viagens para a África, a vinda de comitivas, os pensamentos de quem constituiu o acervo e uma catalogação fotográfica com mais de 115 peças de diferentes procedências, nunca realizado anteriormente.
A live de lançamento do projeto será no dia 6 de maio, às 19h, no YouTube da Casa do Benin, quando também serão lançados o site e o e-book A Casa do Benin na Bahia: projetos, memórias e narrativas.
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