ABRE ASPAS
Paulo Tavares lança dois livros em Salvador
Veja entrevista da Muito com o professor de arquitetura na Universidade de Columbia
Por Gilson Jorge
Professor de arquitetura na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, o paulista Paulo Tavares esteve em Salvador na semana passada para visitar o terreiro da Casa Branca. No ano passado, ele foi um dos curadores da exposição Terra, que focando contribuições do Candomblé e dos povos originários brasileiros, deu ao Pavilhão Brasil o inédito Leão de Ouro na Bienal de Veneza.
Tavares aproveitou a vinda à Bahia para o lançamento local de dois livros: Lúcio Costa era racista?, sobre o ícone da arquitetura brasileira, e Des-Habitat, análise da revista Habitat, criada em 1950 por Lina Bo Bardi. Ambos revisitam criticamente o trabalho de dois dos seus ídolos da graduação. Nesta entrevista, Tavares analisa dois pilares da cultura nacional pelo viés étnico-racial. Os livros estão disponíveis no Amazon e no site da n-1 Edições.
Como surgiu a sua relação com a Casa Branca e também a ideia de Terra na Bienal de Veneza?
A minha relação com a Casa Branca começa no contexto do Pavilhão Terra, na Bienal de Veneza. É um pavilhão sobre patrimônio afro-brasileiro e patrimônio indígena, e o Terreiro da Casa Branca, como primeiro patrimônio negro tombado era fundamental estar representado. Eu faço uma visita para convidar o terreiro, junto com a outra curadora, Gabriela de Matos, e Ana Flávia Magalhães Pinto, que é ekede e diretora do Arquivo Nacional.
A gente tem uma conversa com a ekede Cinha e a Yá Neuza e, desde então, a gente mantém uma relação. A ideia da exposição na bienal começa com uma carta-convite para Gabriela de Matos e para mim. A gente não se conhecia, mas a gente logo entendeu que o que nos unia no projeto era a questão da terra, do território. Fizemos essa proposta, que foi vencedora numa competição interna promovida pela Bienal de São Paulo e aí veio o prêmio.
O Leão de Ouro foi apresentado pela primeira vez no Brasil na Casa Branca, em junho do ano passado. Tem um vídeo muito legal em que a Yá Neuza anda pelo barracão falando "olha, esse leão veio para nos proteger". E tinha a questão do edifício, que está ali, ameaçando o patrimônio da Casa Branca, que era uma questão central no pavilhão, um terreiro sendo ameaçado pela especulação imobiliária, construções ilegais. Eu não acredito muito em coincidências, mas depois do Leão de Ouro o Ministério Público abriu um caso e embargou a obra. Uma vitória para o patrimônio da Casa Branca.
Lúcio Costa era filho de um engenheiro naval baiano [Joaquim Ribeiro da Costa], nasceu em Paris, cresceu na Europa e veio para o Brasil com 16 anos. Quando se formou em arquitetura trazia consigo o pensamento eurocêntrico e neocolonialista. Em uma entrevista ao extinto jornal O Paiz, em 1928, ele declarou que a sorte de uma nação dependia da qualidade dos seus imigrantes. Ele mudou de ideia depois?
Como você falou, Lúcio Costa teve a sua primeira formação na França. É natural imaginar que ele tenha se formado no auge do pensamento eugênico e racista europeu, que teve na França um dos seus principais centros intelectuais, se a gente pudesse dizer assim. Para eles, o Brasil era uma espécie de laboratório do que eles chamavam de degeneração da raça por conta da mestiçagem.
Nesse momento, o que está acontecendo na teoria da arquitetura, como em todas as áreas das ciências humanas e artísticas ocidentais, é que ela era muito balizada pelo pensamento racista. Com a expansão do colonialismo no final do século 19, principalmente com a Conferência de Berlim, os teóricos se defrontam com uma diversidade de produção arquitetônica.
Então, eles pegam aquele pensamento, principalmente da antropologia, que vai hierarquizar as raças, a geografia, e transporta isso para a arquitetura. Basicamente, eles diziam que diferentes raças produzem diferentes estilos. Nós tivemos nessa época o neogótico, o neoclássico e outros neos, e tudo isso estava relacionado a uma afirmação étnico-racial das nacionalidades europeias e da supremacia branca, através da arquitetura e da equação entre estilo e características étnicas.
Obviamente, Lúcio Costa está informado sobre isso, e quando vem para o Brasil e começa a estudar na Escola Nacional de Belas Artes nós estamos vendo uma explosão do que se chamava neocolonial, com as cidades brasileiras passando por esse processo de modernização no final do Século 19 e início do Século 20 e vendo seus centros urbanos se transformando em grandes centros de arquitetura eclética. Buscava-se um laço cultural, mas também um laço racial com a Europa.
Mas Lúcio Costa muda de pensamento...
Ele vai fazer a sua conversão depois para o modernismo, ele rejeita o passado neocolonial e, nessa conversão, ele tem que buscar alguma equação que vá se alinhar com o que os modernistas estavam pensando, que era muito na linha de Gilberto Freyre. E que era uma positivação da miscigenação, como caráter da definição do que era nacionalidade e, claro, dessa suposta democracia racial, que seria um dos elementos dessa brasilidade.
A democracia racial por meio da miscigenação, como um dos elementos que definiriam a brasilidade. Para fazer isso, ele precisa de alguma forma mudar o seu pensamento. E nos seus textos relacionados a essa virada modernista ele vai fazer uma equação dizendo que a arquitetura brasileira é um processo que, de alguma maneira, tem influência dos povos afro-brasileiros e dos povos indígenas. Ele tenta fazer essa equação nos textos dele. Mas, no fundo, ainda que de maneira tácita, e às vezes de maneira explícita, a centralidade da arquitetura colonial permanece. Portanto, deriva de uma matriz ocidental e, no fundo, brancocêntrica.
Oscar Niemeyer, que trabalhou muito tempo com Lúcio Costa e que era comunista, fez críticas ao projeto de Brasília pela falta de espaços públicos na capital. Nessa questão da visão colonial da arquitetura brasileira houve embates entre os dois.
Eu não sou historiador e foquei a pesquisa nos textos de Lúcio Costa. E essa visão racializada e racista sua era mais teórica do que prática, na definição do que é arquitetura moderna, mas principalmente do que seria patrimônio. Lúcio Costa é o grande conceitualizador do que seria cultura moderna e ele faz isso jogando com a linguagem moderna, mas também com o patrimônio. Uma articulação entre modernidade e tradição.
Ele vai definir o cabedal do que seria o patrimônio histórico e artístico nacional. Niemeyer começa a trabalhar com ele desde muito cedo, e Lúcio Costa, como a historiografia demonstra, meio que sai de cena para colocar Niemeyer como a grande expressão do modernismo nacional.
Principalmente, fazendo relação entre Niemeyer e a obra escultórica com um personagem muito conhecido que é o Aleijadinho, o grande artista do Barroco. Muitos críticos vão fazer essa leitura de Niemeyer como o herdeiro da arquitetura tradicional, que, na verdade, é o colonialismo.
A virada de Lúcio já está consolidada e Niemeyer entra como grande signo de uma arquitetura mestiça e vira claramente a expressão mundial do que seria chamado de arquitetura brasileira. Mas quem está definindo o framework, o enquadramento conceitual teórico desse estilo, é Lúcio Costa, que opta por trabalhar mais nos bastidores.
Por que decidiu estudar Lúcio Costa e se debruçar sobre essa questão de se ele era racista?
Essa é uma pergunta muito boa, porque eu não sou historiador e nunca tive vontade de estudar a obra de Lúcio Costa. Eu não sou uma pessoa dedicada à sua obra. Mas eu estou fazendo um outro livro, que ainda não terminei, e tive que voltar aos textos de Lúcio Costa. O livro, ainda sem nome definido, é sobre modernizacão e colonização do território nacional. Quando eu era estudante, era seu fã e tinha lido todos os seus textos, que não são muitos.
Eu voltei a lê-los e vi que havia recorrentes trechos que colocavam a raça como um dispositivo central no pensamento dele. O que acontece é que apesar de serem muito poucos textos, o trabalho teórico de Lúcio Costa foi absolutamente dissecado pela historiografia da arquitetura brasileira. Como são textos muito pequenos, analisou-se cada frase, numa tentativa de mostrar a genialidade dessa equação entre tradição e modernidade operacionalizada por Lúcio Costa. E uma vez que eu encontrei o elemento da raça como algo central, eu fiquei, digamos assim, surpreso.
Lúcio Costa era racista? Eu nunca aprendi isso na faculdade. E comecei a observar e fui ler essas teses para ver se alguém tinha escrito sobre esse aspecto central em sua obra teórica. E para minha surpresa nenhum das centenas de trabalho escritos sobre ele fala dessas passagens, que foram consciente ou inconscientemente negligenciadas. Eu tenho muitos colegas nos Estados Unidos que trabalham raça e arquitetura, achei que era necessário também fazer algo nessa direção e me debrucei sobre esses textos.
Pensei em escrever alguma coisa e publicar online porque achei que era importante que os estudantes lessem e a gente pudesse fazer o debate sobre essa figura canônica, num contexto de Black lives matter (Vidas negras importam), pós-morte de George Floyd [homem negro assassinado por policiais nos Estados Unidos, em 2020, cuja morte desencadeou protestos em todo o mundo], num contexto de crítica à monumentalização da colonialidade acontecendo mundo afora. Entrei em contato com meu editor e decidimos publicar um livro sobre isso. Não foi algo que eu quis fazer, mas algo que de alguma forma me foi demandado. É um livro sobre Lúcio Costa, mas também sobre a historiografia, que se omitiu em fazer essa pergunta: se ele era racista.
E falando do outro livro, o Des-habitat, porque o senhor resolveu se debruçar sobre a revista Habitat, criada por Pietro Maria Bardi e Lina Bo Bardi?
Quando estudante, eu também era fã de Lina Bo Bardi e muito entusiasmado com a obra dela. E sempre me impressionou na Habitat, a revista que ela criou dentro do Museu de Arte de São Paulo, que havia muitas imagens de objetos artísticos, de artesanato e escultóricos feitos pelos povos originários. Esse projeto surgiu no contexto de uma exposição sobre os 100 anos da Bauhaus. E o que a gente pergunta é como é que esses objetos indígenas foram parar em uma revista tão sofisticada, com um público classe média alta, que tinha o objetivo de formar uma audiência moderna no Brasil.
A gente faz o que eu chamo de uma arqueologia da revista Habitat para tentar entender como os objetos chegaram. O que a gente vê é que esses objetos foram extraídos dentro da expansão de um projeto colonial do Estado brasileiro, desencadeado nos anos 1930 por Getúlio Vargas, a chamada Marcha para o Oeste, em que há um processo muito violento de ocupação dos territórios dos povos originários, capitaneado principalmente por uma instituição chamada Serviço de Proteção aos Índios, originalmente chamada de Serviço de Proteção aos Índios e Localização do Trabalhador Nacional, que tinha como objetivos civilizar os povos indígenas, fixá-los em colônias rurais e liberar o território deles para colonização do Estado brasileiro.
E, dentro desse contexto, eles não só abriram espaço para uma expropriação territorial, mas também expropriação das imagens e objetos, que chegavam aos centros urbanos como significante da modernidade, equalizando aquela equação, modernismo e primitivismo, que a gente vai ver nas vanguardas europeias. Então, me pareceu fundamental mostrar que a revista Habitat e toda essa equação entre o primitivo e o moderno, de alguma maneira funcionaram como uma espécie de véu ideológico para um processo violento de ocupação dos territórios dos povos originários e a expropriação dos seus objetos, que estavam sendo conduzidos em nome da formação nacional.
Dá para dizer que a revista respaldava os objetivos do governo?
É difícil dizer se eles respaldavam oficialmente. Mas nessa época, pelo que se entende, era uma coisa dada. Todos, de alguma maneira, respaldavam. Era como "ah, essa entrada do indígena", como significante de nossa nacionalidade, da brasilidade. Você vai ver todas as vanguardas utilizando esse imaginário em torno do Tupi, do canibal, da antropofagia, em torno dos indígenas como grande signo da brasilidade, que acontecia concomitantemente ao processo cada vez mais violento, mais amplo de ocupação da terra desses povos originários.
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