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MUITO

Plantas de poder: as folhas são alento para males do corpo e da alma

Por Tatiana Mendonça

21/08/2018 - 10:00 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Edmundo Oliveira, o Gato, trabalha numa barraca de folhas na Feira das Sete Portas
Edmundo Oliveira, o Gato, trabalha numa barraca de folhas na Feira das Sete Portas -

Para que as folhas funcionem, é preciso encantá-las com palavras. É um pouco como o que preciso fazer aqui. Botar encantamentos nesta folha para que você fique até o fim, ou não se vá tão cedo. No candomblé, o ritual começa ainda na colheita. Quem tiver de entrar na mata tem que saber a hora exata de retirar cada folha. Umas no nascer do dia, outras no cair da noite, umas na lua nova, outras na cheia, reparando ainda no dia certo da semana. Ao adentrar o reino de Ossain, irá cantar, ao preparar as folhas irá dizer do jeito certo as palavras certas, e é assim que o sagrado se faz, que os mundos se comunicam, para que haja amparo, para que haja força, para que haja amor.

Era comum que toda casa de axé tivesse uma pessoa responsável pelas folhas, presentes em todos os rituais da religião. Ia mudando de nome a depender da nação de onde vieram. Babalossain, para os iorubás, Tata Kisaba, para os bantos. Hoje, essa figura está rareando, conta a bióloga e doutora Sueli Conceição, que estuda os impactos ambientais da urbanização de Salvador nos terreiros da cidade. Foram diminuindo, com o tempo, foram perdendo boa parte das matas que os cercavam, foram tendo que se adaptar.

A tarefa passou, então, a ser dividida entre a comunidade do terreiro. E quando os pais e mães de santo não acham em sua roça a folha de que precisam, vão buscá-las onde? Nas feiras, claro, como fazemos nós para males do corpo ou da alma quando não temos sorte de possuir quintal. Na sua pesquisa, Sueli madrugou para chegar a São Joaquim e a Sete Portas junto com os fornecedores, para ver como eles mercavam as plantas. Encontrou-as no chão, deixadas de qualquer jeito, com gente passando por cima, com cachorro passando por cima, sem nenhum sinal de reverência. Sentiu até uma aflição, ela que também é de candomblé. ”Não tinha nenhum cuidado, nem sanitário, nem espiritual”.

Mas não há de ser nada, é só o caso de reencantá-las, explica Tata Anselmo, líder espiritual do Terreiro Mokambo, no Trobogy. “Às vezes, preciso comprar canela-de-velho, que antes tinha muito aqui, muito, e agora não tem mais. Tenho que ir à feira. Não tenho problema nenhum, nada contra, mas não sei como aquela folha foi retirada, nem manipulada, não sei nada. Então elas passam por um processo de sacralização no barracão”, conta. E Sueli emenda, com um pé na ciência e outro na fé: “É um trabalho mais intenso, que leva mais tempo. Tem que esperar a folha descansar, tomar sereno de um dia para o outro. E aí vêm as palavras mágicas que irão ativá-las”.

Então de que serve aquele banho de folhas comprado engarrafado na barraquinha, será que está apalavrado ou não está, eis a preocupação. Tata Anselmo é de desconfiar, e explica bem explicado. “Tem muitos que pegam a folha, batem no liquidificador, coam e dizem que é o banho. Que sacralização pode ter nisso? Tudo no candomblé tem um objetivo, nada é solto. Se você beber um copo d’água com fé, pode te curar. Agora, se você tiver um indicativo e tiver a fé, vai fazer efeito mais rápido. Nem sempre aquela folha vai servir para aquela necessidade que você está. E se você não acreditar, não contribuir com a sua energia para aquilo, então é como um simples banho da Embasa. Só vai limpar seu corpo da sujeira, mas a sujeira espiritual vai permanecer lá, guardadinha, até você se resolver”. Vixe, que agora deu até um frio na espinha.

Imagem ilustrativa da imagem Plantas de poder: as folhas são alento para males do corpo e da alma
| Foto: Joá Souza / Ag. A TARDE
Para o banho de folhas funcionar, é preciso ter fé, diz Tata Anselmo: "Se você não contribuir com a sua energia para aquilo, então é como um simples banho da Embasa"

Para gerar renda para os povos de santo, e para aproximá-los ainda mais das plantas, posto que Kosi ewe, kosi Orisá (“sem folha não tem orixá”), Sueli idealizou o projeto Rede de Hortos de Plantas Medicinais e Litúrgicas (Rhol), com apoio do governo do estado. Lançado em 2015, o Rhol implantou hortos com 40 espécies utilizadas pelas religiões de matriz africana em 12 terreiros de Salvador e região metropolitana. Também foram criados um centro de beneficiamento, para produção de cosméticos naturais, que fica no Mokambo, e uma botica, para revender os produtos, no Pelourinho, aberta este ano.

Mau-olhado

Pergunte como Edmundo Oliveira, o Gato, começou a saber de folha, e ele vai dizer que foi de menino, enquanto “ficava ouvindo no pé da parede”. Em Cícero Dantas, onde vivia, remédio era à base de erva. Umburana para dor de barriga – para a mãe desta repórter, abaixo de Deus, está a umburana –, baço para pancada forte, folha de graviola para evitar a doença da qual não se podia dizer o nome. E serviam também para os maus-olhados todos, esse “pior feitiço que existe”, nas mãos das rezadeiras. “Eram as plantas que curavam, antes de tudo ser remédio”.

Quando veio morar em Salvador, malmente sabendo assinar o nome, Gato trabalhou como servente de obra. Foi aprendendo a ler folheando jornal. Depois, foi funcionário de uma sapataria e daí acabou na feira, numa barraca de folhas, primeiro em São Joaquim e depois nas Sete Portas. Com o dinheiro que tira dali, e dos acaçás que aprendeu a fazer, já formou dois filhos. A caçula está terminando a faculdade.

Um senhor aparece procurando um banho de descarrego, Gato pergunta se é para casa ou para carro, e o homem responde que é para gente mesmo. “Tome esse aqui que tira quizila”, recomenda, entregando a garrafa e dizendo o preço: R$ 4. Antes mesmo de entregar o troco, uma mulher pergunta se tem quebra-pedra, Gato diz que não, para procurar ali mais adiante.

As folhas que vende ali vêm do interior, de Simões Filho, das cidades no entorno da Linha Verde. Ele diz que hoje aparece em igual quantidade gente querendo tratar doença ou abrir um caminho. Só no fim do ano é que a balança pende dos chás para os banhos. “Até quem não acredita toma”. E aí, não importa a religião. Tem candomblecista, tem católico, como ele, tem até evangélico, segreda, com a mão na boca.

Fitoterapia

Desde que o mundo é mundo, o homem usa as folhas como meio de cura. Mas só recentemente, em 2006, o país passou a contar com uma Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, tudo assim com letra maiúscula, para impressionar. Antes do lançamento da política, uma portaria do Ministério da Saúde já autorizava e recomendava o uso da fitoterapia nos tratamentos oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

A coisa só começou a andar mesmo uns dois anos depois. Na Bahia, o primeiro projeto estruturado foi abrigado em São Francisco do Conde, em 2009. Por meio de um edital do Ministério da Saúde, no valor de R$ 100 mil, um grupo de pesquisadores do programa Farmácia da Terra, da Universidade Federal da Bahia, foi até o município para, primeiramente, fazer um “levantamento etnobotânico” das plantas que os moradores locais costumavam usar no dia a dia.

O próximo passo foi criar uma cartilha para que os profissionais de saúde da cidade também tivessem acesso àqueles conhecimentos ancestrais e a outros mais, avalizados pela ciência, e pudessem indicar as plantas para a população. Por fim, o grupo criou uma horta medicinal para abastecer os postos da cidade.

O projeto, que também contava com recursos da prefeitura, acabou em 2012, prazo estabelecido no edital. A farmacêutica Mayara de Queiroz, que integrou a equipe, lamenta a descontinuidade. “É uma política que não tem verba própria. E aí os projetos ficam dependendo dos editais e das iniciativas das prefeituras de cada cidade”.

Imagem ilustrativa da imagem Plantas de poder: as folhas são alento para males do corpo e da alma
| Foto: Foto: Raul Spinassé / Ag. A TARDE
"Tem que esperar a folha descansar, tomar sereno de um dia para o outro. E aí vêm as palavras mágicas que irão ativá-las", diz a bióloga e doutora Sueli Conceição, candomblecista

E as iniciativas das gentes, também, como não? A primeira horta medicinal em um posto de saúde de Salvador, criada antes da de São Francisco do Conde, foi uma ação isolada da comunidade que contou com a consultoria inestimável da rezadeira Maria Gorda. Primeiro lhe ofereceram uma sala para atender na Unidade de Saúde da Família (USF) do Candeal, vizinho à sua casa, mas ela não quis. Fez questão, no entanto, de doar mudas das suas plantas para cultivar a horta, da qual fazia questão de cuidar. Qualquer um que passasse podia pegar o que houvesse ali para fazer remédio.

Numa reforma recente na unidade, um cano estourou e lá se foi a hortinha. Outra, cultivada mais recentemente no Centro de Atenção Psicossocial em Piatã – onde Mayara sugeriu numa palestra que a valeriana bem poderia substituir os ansiolíticos para tratar quadros de ansiedade leve –, foi quase inteira comida pelas formigas. E no posto de Pernambués, outra reforma tomou o espaço de metade da horta, conta Nelson dos Santos, que gerencia a unidade.

Mas ele está animado para replantá-la. Prometeu botar a mão na terra assim que acabasse a greve dos servidores municipais. “Restaram poucas plantas, só boldo, praticamente, mas vamos mudar tudo, fazer uma maratona”. A horta da USF Professor Humberto Castro Lima, de Pernambués, foi criada há dois anos, por iniciativa de estudantes da Universidade do Estado da Bahia (Uneb). A comunidade apoiou especialmente o grupo de 69 idosos que costumam se reunir no posto, entusiastas de primeira hora da ideia. Indicaram plantas, trouxeram algumas mudas, participaram do cultivo. A responsabilidade por regar as plantas ficou para os agentes comunitários.

O médico Ari Avelar, que atende na unidade, diz que é, “a princípio”, um alopata, mas que nos últimos anos passou a se interessar por fitoterapia e a orientar o uso de plantas cujos efeitos já são comprovados por estudos científicos. “Chá que serve para tudo não serve para nada”. Anotou essa?

Farmácia viva

Todas essas hortas medicinais não são ainda o que o Ministério da Saúde chama de Farmácia Viva. Para ganhar o nome, elas precisam cumprir uma série de requisitos técnicos. A primeira do estado funcionará em Lauro de Freitas, na Unidade de Saúde da Família de Caji Vida Nova, com financiamento do governo federal (R$ 312 mil de um edital do MS), da prefeitura (R$ 73 mil) e apoio técnico da Unime. Ainda não há data de quando o projeto começará na prática.

Tayra Cunha, uma das farmacêuticas responsáveis, conta que o cultivo será acompanhado por um agrônomo e que será preciso esperar um tempo para as plantas estarem prontas para ser colhidas e manipuladas. “É preciso garantir que tenha os princípios ativos na concentração exata, para que faça efeito”.

Para além dos espaços de cultivo, com as plantas medicinais ali vivinhas, o SUS oferece 12 medicamentos fitoterápicos, feitos remédios mesmo, disponibilizados aos pacientes de unidades básicas de saúde após prescrição médica. Tem espinheira-santa para auxiliar no tratamento de gastrite, garra-do-diabo para dor lombar, babosa para queimaduras.

A Bahia não só está na lista dos 14 estados que recebem esses fitoterápicos como a lidera. Em 2016, o estado apresentou o maior número de atendimentos individuais em fitoterapia no país, para alegria infinita – e certo ar de “eu não disse?” – de todas as nossas avós, que por anos a fio tentaram nos empurrar as mais variadas qualidades de chazinho.

Os fitoterápicos, além de prescritos por médicos, também podem ser indicados por farmacêuticos, enfermeiros, nutricionistas. Mas o uso popular, é claro, não vai acabar nunca. “Todos ainda estão livres para ir à rezadeira”, ri Mayara. Ela ressalva, apenas, que é preciso procurar uma pessoa de saber reconhecido na comunidade, para evitar reações adversas. De novo, e sempre, atente à palavra que acompanha a folha.

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