MUITO
Potencialidades e experiências de afroturismo em Salvador
Afroturismo traz sabores, mas também dissabores
Por Gilson Jorge

Tão logo chega à Feira de São Joaquim pela entrada principal, às 11h15 de uma terça-feira, a turismóloga e empreendedora carioca Carina Santos se comunica com feirantes que passam por ela. De costas, é reconhecida por um jovem sem camisa, que aperta a sua mão direita e pergunta como ela vai. Um cumprimento que se repete, de perto ou à distância, com alguma frequência.
Entre motocicletas que avançam pelos pequenos becos da feira, enquanto pedestres recuam para dar espaço ao entregador de mercadorias motorizado, e um homem que puxa um carro-de-mão com quatro bodes amarrados, destinados ao abate, Carina está cada vez mais familiar com os personagens e fatos de um dos principais mercados populares da cidade.
Em Salvador desde 2019, a carioca utiliza a paisagem, os sabores e histórias da feira para explicar a turistas a cultura negra soteropolitana. Boa parte de sua clientela é formada por estadunidenses negros de Nova York, Atlanta, Houston e outras cidades, que se interessam por conhecer as raízes africanas da Bahia e são apresentados a ela por meio de agências de viagem especializadas em afroturismo. O turismo cultural afrocentado, que nos últimos anos vem despertando o interesse de autoridades estaduais e municipais na Bahia.
E o potencial da atividade na capital baiana incentivou Carina a deixar a sua cidade natal e se mudar para cá em 2019, trazendo junto a sua empresa Afrotrip, com a qual elabora os roteiros de sua clientela. "Eu não sou guia. No turismo, para guiar, você precisa ter uma certificação. A minha habilitação é planejar a viagem. E a minha pegada, dentro do turismo, é mostrar a cultura afro e também conhecer pessoas negras como turistas", destaca a carioca.
Carina começou a desenvolver a Afrotrip depois de uma viagem como mochileira pela Europa, quando se deu conta que quase não havia turistas negros nos distintos pontos de visitação que percorreu. Depois de voltar para o Brasil, montar a Afrotrip em 2016, e visitar Salvador pela primeira vez, ocorreu-lhe que esta cidade se adequava mais aos seus propósitos profissionais. "A Bahia me chamou. O berço da cultura negra brasileira está na Bahia", define a turismóloga.
Em um passeio de aproximadamente duas horas, os visitantes conhecem um casal que prepara na feira a massa do acarajé e o abará e ouvem explicações sobre o sacrifício de animais em rituais de Candomblé. Com direito a almoço em um restaurante local, o tour sai por R$ 200 por pessoa.
Um dos pontos de visitação dos turistas que acompanham Carina é a barraca de pimentas de Elismar Reis, que depois da pandemia decidiu investir em um negócio próprio. Além de uma variedade de pimentas in natura, o comerciante produz um molho próprio que é vendido em garrafas de diferentes tamanhos. Curiosamente, não gosta muito de pimenta. Os turistas, sim. "As que fazem mais sucesso são a pimenta chocolate e a pimenta carolina. Já o molho, eu vendo muito para o pessoal do Rio e de São Paulo. Eles compram mais a garrafa de um litro ", conta. O comerciante afirma que as pimentas fortes fazem mais sucesso entre as mulheres do que entre os homens. "Eu mesmo não gosto, mas minha mulher gosta", brinca o comerciante.
O afroturismo traz sabores, mas também dissabores. As visitas dos turistas negros dos Estados Unidos a Salvador rendem por vezes uma sensação de frustração com a capital idealizada por eles. A fama de ser a cidade mais negra fora da África aguça a curiosidade dos gringos, mas quando eles chegam e percebem a desigualdade social entre a minoria branca e a maioria negra o encanto pela terra diminui.
"Eles veem a Bahia como um portal de conexão, querem ver a preservação da cultura africana que nos Estados Unidos já não tem. Mas quando eles chegam a Salvador, eles esperam ver a população negra no poder, com as pessoas morando em bairros legais", comenta a turismóloga.
Identidade
Guia de turismo nacional e regional e uma mulher do axé, Rita Souto, da Abayomi Tour, destaca que historicamente os city tours são voltados para o processo colonizador e deixam de lado a cultura escravocrata e a participação negra na construção da cidade. "Aquilo me incomodava muito e, por ser uma mulher preta, remanescente, eu decidi voltar o meu trabalho para o afroturismo ", destaca Rita, que no ano passado ficou ainda mais motivada a enveredar por esse caminho com duas iniciativas oficiais para o setor.
A Prefeitura de Salvador estabeleceu 11 rotas turísticas voltadas para a cultura negra, com o nome Rolê Afro. O Governo do Estado, por sua vez, criou o programa Agô Bahia, que visa a reforma de dez grandes terreiros de candomblé. "O reconhecimento da verdadeira identidade da nossa cidade está muito presente. Eu tenho imenso prazer em dar seguimento a esse processo", celebra a guia.
Um dos roteiros feitos por Rita é o do Centro Histórico, a partir da Barroquinha, contando a história de Iyá Nassô, uma das fundadoras do Candomblé da Barroquinha. Depois de subir a Praça Castro Alves e passar pela Travessa da Ajuda, ela explica aos turistas a Revolta dos Malês, que teve como referência um casarão na antiga Ladeira da Praça, hoje demolido. No ano passado, o prefeito Bruno Reis sancionou o projeto de lei que muda o nome do logradouro para Ladeira Revolta dos Malês.
O roteiro no Centro Histórico inclui ainda informações sobre o trabalho do fotógrafo, antropólogo e etnólogo francês Pierre Verger, o Memorial Zumbi dos Palmares e o Memorial das Baianas de Acarajé, além de visitas a negócios do Pelourinho de empreendedores negros, como Negra Jhô e Clarindo Silva. Depois de passar pelos obrigatórios Filhos de Gandhy e Olodum, o grupo segue até o Santo Antônio para uma refeição no Zanzibar.
Rita também oferece um roteiro religioso, em que aposta no sincretismo. Como muitos baianos fazem, os turistas visitam a Casa de Iemanjá no Rio Vermelho, a Igreja de São Lázaro e terreiros tradicionais de candomblé, incluindo a Casa Branca, onde Rita tem o seu axé.
Os visitantes chegam em grupos formados por agências de viagem, que fornecem também o veículo para o tour. "Geralmente, as agências também colaboram com os terreiros, assim como fazem com a Igreja de São Francisco. O valor da contribuição depende da agência, mas geralmente fica entre R$ 10 e R$ 12 por pessoa", afirma Rita.
Em setembro do ano passado, o Terreiro da Casa Branca recebeu um grupo de estudantes do Colégio São Luís, um dos mais tradicionais de São Paulo e de origem jesuíta. Foram quase 200 alunos. "Tem agência que faz rolê afropedagógico, com escolas de outros estados", explica a guia, ressaltando que os estudantes do São Luís eram quase todos brancos. "Devia ter, no máximo, cinco negros", estima Rita.
História e cultura
Historiador e professor da rede pública municipal, André Carvalho criou o Experiência Griô, projeto em que leva pessoas, que moram ou não em Salvador, para conhecer aspectos culturais e históricos relacionados à negritude baiana. "Eu não sou um guia de turismo. Mas percebi a necessidade de levar a pessoas que não estão mais em sala de aula para histórias que a lei 10.639 entende que deveríamos ter estudado", afirma o historiador, referindo-se à lei de 2003 que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas.
Um dos roteiros preferidos de André é o bairro de Itapuã, com a Lagoa do Abaeté, e a sua importância sociocultural, com a presença dos pescadores e das Ganhadeiras de Itapuã. "Quando a gente vai montar o roteiro, acaba procurando espaços que nos permitam uma conexão com a história negra positiva”.
A história de resistência, de lutas, explica o professor, ressaltando que o grupo cultural Ganhadeiras de Itapuã, organizado pelo músico e ativista cultura Amadeu Alves, faz referência às mulheres escravizadas que moravam na região nos séculos 18 e 19 e eram conhecidas como ganhadeiras por lavar roupas no Abaeté e exercer outras atividades profissionais a fim de juntar dinheiro para comprar a carta de alforria. O grupo ficou nacionalmente conhecido em 2020, quando a Viradouro foi campeã do Carnaval carioca tendo as Ganhadeiras como samba-enredo.
Itapuã também é roteiro em passeios preparados por Gisele França, guia há 20 anos e que desde o ano passado imergiu no afroturismo. Um assunto que chegou aos seus ouvidos depois que tinha concluído sua graduação em psicologia e já atuava como psicóloga.
"Eu sou candomblecista e estava buscando algo que pudesse relacionar o turismo com essa questão da religiosidade", lembra Gisele, que no início da movimentação em torno do projeto Salvador Capital Afro, no fim de 2023, conheceu a coordenadora de Diversidade, Afroturismo e Povos Indígenas da Embratur, Tania Neres, e se interessou pelo tema. "Ainda em 2023, eu abri uma agência chamada Expedição Raízes, comecei a fazer redes e acompanhar como anda o movimento na Bahia, no Brasil e no exterior", conta Gisele.
Um dos roteiros criados pela Expedição Raízes chama-se Ómi Tutu, que significa a água que acalma. "É um roteiro para contar a história de Itapuã em um contexto afrocentado, através do olhar de Oxum e Iemanjá. Como o bairro tem o privilégio de ter água doce e o mar, a gente consegue navegar por dentro desses dois orixás", explica a guia.
Se as águas do turismo tradicional ficaram turvas para os guias, com a concorrência brutal das informações online e da grande quantidade de pessoas explicando a cidade para turistas, o afroturismo surge como um nicho que parece promissor. Pelo menos, até agora, as agências de viagem de outros locais que conduzem turistas a Salvador desse segmento costumam enviar os visitantes para um pequeno grupo de profissionais cadastrados no Guia de Afroturismo da Prefeitura do Salvador.
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