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“Precisamos entender por que as pessoas se apaixonam pelas mentiras”

Dunker é uma das referências sobre psicanálise no Brasil e auot do livro "Mal-estar, Sofrimento e Sintoma"

Publicado domingo, 07 de agosto de 2022 às 00:00 h | Autor: Vinícius Marques
O psicólogo e psicanalista Christian Dunker
O psicólogo e psicanalista Christian Dunker -

Professor titular da Universidade de São Paulo, no departamento de Psicologia Clínica, Christian Dunker é uma das referências sobre psicanálise no Brasil. Já publicou mais de 10 livros sobre o assunto e, em 2012, obteve o Prêmio Jabuti na categoria Psicologia e Psicanálise, por seu livro Estrutura e Constituição da Clínica Psicanalítica. O livro Mal-estar, Sofrimento e Sintoma foi classificado em segundo lugar na categoria Psicologia, Psicanálise e Comportamento da edição de 2016 do prêmio. Ontem, ele esteve na 3ª Festa Literária Internacional de Praia do Forte (Flipf), onde participou de uma mesa intitulada Vida que segue e abordou os temas ‘internet, vírus e novas configurações emocionais’. Nesta entrevista, ele fala sobre sua obra mais recente, a forte presença de psicanalistas nas redes sociais, além da autorregulação da profissão.

Em seu último livro, Lacan e a democracia: Clínica e crítica em tempos sombrios, o senhor afirma que a psicanálise pode alargar nosso conceito de democracia e ajudar no combate ao negacionismo. Pode dar mais detalhes desse processo?

 É um livro que vem nesse contexto de contração da democracia brasileira, de customização, uma democracia para poucos, para quem pode pagar, e recuperando uma afinidade da psicanálise e o campo da política, duas áreas que estavam meio distantes. Um entendimento possível para nossa crise da democracia é de que ela é uma crise da palavra. Crise de acesso à palavra, uma crise da redução da circulação da palavra, do uso da palavra. É uma crise das instituições que estão ligadas ao cuidado com a palavra como mediação. Todos os alvos do bolsonarismo têm em comum ser cuidadores, gestores da palavra. E a gente ainda tem aí o setor cultural. Nesse trabalho, vou mostrando que essas afinidades passam também pela psicanálise e, na clínica, a gente trata pela palavra. Em relação ao negacionismo, essa é uma ideia importante e fundamental para a psicanálise, a negação. A gente pode dizer que ela é uma teoria baseada nos trabalhos da negação. A gente fala no inconsciente, no recalcamento, uma série de processos, inclusive o da negação. O negacionismo foi descrito por Freud como um funcionamento psíquico das pessoas em geral. Há um editorial que conclamou os psicanalistas, junto com outras pessoas que trabalham com saúde mental, que trabalham com neurociência, a dissolverem, suspenderem suas animosidades históricas para que a gente pudesse enfrentar tanto a crise de saúde mental que veio com a pandemia, quanto o processo do negacionismo. Isso coloca mesmo em pauta que a psicanálise, enquanto uma prática da escuta, oferece instrumentos para a gente enfrentar o negacionismo mais além das checagens de informações corretas e incorretas, verdadeiras ou falsas. Precisamos entender por que as pessoas se apaixonam pelas mentiras, qual a função psíquica das ilusões, por que se criam crenças que germinam ódios à base daquilo que a gente não quer aceitar. Na medida que o processo de entrada e disseminação das redes sociais, que a linguagem digital no Brasil se firmou, a gente teve entrada de pessoas na conversa, democratização da conversa, mas também de grande instabilidade. Isso, de certa forma, nos ajuda a entender tanto a polarização quanto o negacionismo.

 E o que o inspirou a escrever sobre esses assuntos?

 A ligação com o problema de recuperar o que havia na história da psicanálise, de tradução crítica. As pessoas, frequentemente, pensam que a psicanálise é do ramo da psiquiatria, mas a ideia básica é que a psicanálise trouxe uma super-revolução. Revolução sexual, do desejo, que tem a ver com essa potência transformativa. Não conservadora, portanto. Uma coisa que está extensamente no livro é uma tentativa de mostrar como a psicanálise, particularmente no ambiente anglo-saxônico, está ao lado de outras tendências críticas contemporâneas, como o pensamento decolonial, como as frentes do feminismo, o pensamento queer. Nem toda psicanálise, mas uma parte dela, está ligada a essa tradução crítica e isso me inspirou a pensar as coisas desse jeito. Outra coisa que me inspirou foi quando fui estudar na Inglaterra e percebi como a gente dá pouco interesse, pouco valor, ao estudo do Brasil. A psicanálise é um saber de matriz europeia, mas a gente não valoriza muito o que fazemos por aqui. A terceira fonte de inspiração é quebrar muros e reduzir distâncias. Em última instância, poderia colocar a necessidade de tomada de posição nesse momento de crise da democracia, dessa ascensão do neofascismo à brasileira. Nessa hora, a gente se mobiliza a mais porque há uma espécie de perigo real de que a pesquisa, a palavra, a democracia, civilização estão em jogo. Nessa hora, temos que entrar em campo.

 Existe também um discurso afirmando que os psicanalistas não devem participar do debate público. O que o senhor pensa sobre isso?

 Penso que isso vem dessa matriz conservadora. Ela também se apoia no argumento de que isso seria diagnosticar pessoas que não estão sob nossos cuidados e que, portanto, é uma extensão indevida do nosso trabalho, mas que tem muito a ver com esse lugar que associa, equivocadamente, a neutralidade que a gente tem, que tem dentro do tratamento, de não influenciar o paciente e canonizar os nossos valores para o paciente. É uma regra prática que a gente leva em conta, mas que ela serviu de pretexto para que a gente se isentasse também no cenário social, no cenário político e também no cenário cultural. Não tem uma justificativa razoável, é mais uma reação corporativa. Muitos críticos dizem que a psicanálise 'é muito de elite, mas não pode se meter com política', ou seja... É o momento em que essa crítica vai ditar dentro da psicanálise, tem uma luta de classe, então, nada mais justo que as pessoas se manifestem também contra essas iniciativas e tentar tornar a psicanálise mais democrática e mais aberta, mais pública, mais acessível para as pessoas.

 Há uma popularização dos psicanalistas nas redes sociais. Hoje é muito raro não encontrar um profissional que não esteja posicionado e produzindo conteúdo online. Na sua opinião, a que se deve esse fenômeno?

 Acho que isso se deve ao incremento do sofrimento social que a gente vem passando e, com a Covid-19, houve a multiplicação disso. O investimento público em saúde mental é bizarro e grotesco. A falta de CAPs, a falta de contratação de pessoal, principalmente em saúde mental, é um elemento grande. As pessoas procuram livremente e isso é muito legal. Não é um movimento que há uma corporação por trás, um grupo muito definido, uma liderança clara. Isso tudo se apoiou no que as redes sociais permitem, que é dar visibilidade para um tipo de profissional que antes ficava restrito às redes sociais presenciais ou pessoais. Essas indicações dependiam de certos circuitos sociais, de conhecimento, às vezes em ligação com uma universidade, escola, processos jurídicos, outras instituições. Com a chegada das redes sociais, todos perceberam que elas representavam um instrumento para poder dizer 'Olha, estou aqui! Trabalho assim, me formei dessa forma', e isso levou a uma popularização da psicanálise. Em outros países, inclusive, há um grande interesse pela experiência brasileira agora em curso de um aumento do consumo da psicanálise.

 Quais os riscos de um profissional da psicanálise em se expor dessa forma nas redes sociais?

 Como toda novidade, o instrumento vai gerar usos erráticos. Vai gerar golpes, corrupções e de certa maneira muitos psicanalistas vão explorar o pior. Aquele apelo mais pessoal, mais confessional, aquela divulgação de si como uma pessoa muito amorosa ou muito sábia, e esse tipo de 'propaganda', vamos dizer assim, é vetada aos médicos, aos psicólogos, mas na psicanálise acabou se fazendo de forma indireta, porque não aparece como propaganda, mas sim como uma rede social, como se estivesse falando para amigos. Essa lacuna tem trazido formas de apresentação bem inadequadas. Estamos num momento, e eu acho que a psicanálise não se diferencia desses processos, em que uma certa autorregulação está em jogo, se fazendo necessária. Não é por outro motivo que a gente discutiu duramente a aparição de um curso de graduação em psicanálise, o que é uma ofensa à forma como os psicanalistas realmente se formam. E aqui há uma vantagem e uma desvantagem. Por não ser uma profissão regulamentada, e a gente não quer que ela seja, o controle do conhecimento e da formação cabe às instituições que operam de forma mais ou menos livre e depende da experiência pessoal do psicanalista em formação. Ele tem que fazer uma análise própria, supervisões, estudos teóricos. E no Brasil, como estamos habituados, aquilo que não tem regulação muito forte acaba sendo muitas vezes parasitado, destruído por processos de degradação tática. Essa é a encruzilhada no momento, muita gente fazendo contrapropaganda para a psicanálise, pessoas com formações precárias, empresas tentando abrir negócios de formação de psicanalistas. Mas, por outro lado, isso é uma coisa compreensível porque nossas instituições não estão dando conta da demanda que se formou, mas nós vamos demorar um tempo para chegar num novo patamar, autorregulatório como a comunidade dos psicanalistas acreditam e querem.

Neste momento pandêmico em que vivemos, a procura por profissionais para tratamentos psicológicos aumentou consideravelmente, segundo informações de companhias de seguros de saúde. De que forma foi preciso se adaptar a essa mudança?

 Teve uma adaptação geral ocasionada pelos atendimentos online, então, conseguimos alcançar populações, pessoas em lugares remotos, com dificuldade de acesso, que não tínhamos. E se não fosse pela pandemia, talvez esse processo fosse muito mais lento, mas foi assim de tal maneira que os psicanalistas tiveram que se adaptar e se adaptaram bem. Muita gente abandonou o consultório e hoje só trabalha online. A formação para isso ainda está em curso, ainda estão refletindo sobre as diferenças, semelhanças. O processo está em andamento. Eu diria que a grande dificuldade é que a formação do psicanalista é longa, e isso no momento em que há um boom de demanda força um pouco as pessoas, tanto psicólogos e terapeutas, a fazerem esses giros inoportunos ou pouco rápidos demais. A adaptação é a uma crise de crescimento e isso significa aumento da participação em YouTube, redes sociais e também aumento da crítica, dos dimensionamentos políticos dos modelos de informação.

O senhor possui um canal no YouTube chamado Falando Nisso, que possui mais de 300 mil inscritos. Para o senhor, quais são os motivos para que o público se aproxime tanto desse conteúdo?

 Ele já era um canal meio surpreendentemente grande, considerando o fato de que a gente não faz propaganda, não somos um canal profissional, não é um canal roteirizado, não temos equipes de produção. É um canal feito em uma pequena comunidade. Começou com a banda de rock do meu filho, o Lúcio. Não preciso viver do canal, não preciso criar mais e mais inscritos, fazer propagandas e coisas assim. Isso me parece ser um ponto que acabou indiretamente valorizando o canal como um ponto de representação de um saber, vamos dizer assim, menos comercial. É um professor universitário, posso dizer que é meio incomum entre meus colegas, inclusive pelo fato de que tenho uma carreira universitária longa e sou professor titular. É o topo da carreira, alguém que tem uma credencial, e que pode, de certa forma, atrair as pessoas. Uma reputabilidade, um respeito, um reconhecimento. Outro fato que eu acho decisivo é que a gente tenta realmente conversar com as pessoas, não é um canal de aulas gravadas. É essa ideia de que no Brasil classes diferentes conversam pouco entre si. Têm contato, mas não é contato, é uma coisa muito distante ou então gerado por uma situação de conflito e dominação. A ideia de ter alguém falando e respondendo perguntas que, às vezes, são inusitadas, às vezes, bastante simples, às vezes, extremamente complexas, técnicas. Essa multiplicidade de níveis de discurso, portanto de públicos com os quais a gente conversa, impulsionou muito o canal. Além de ser um canal que tem participação de professores de outros países, figuras mais ou menos conhecidas da psicanálise, uma vinculação de eu pertencer a uma escola de psicanálise.

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