MUITO
"Precisamos libertar as pessoas do imperativo de ter filhos"
Por Marcos Dias

A complexidade do mundo contemporâneo para os que se lançam na experiência de criar filhos é, para Alessandro Marimpietri, baianamente falando, “barril dobrado”. Formado em psicologia pela Ufba e em neuropsicologia pela USP, com doutorado em ciências da educação, ele defende a permanente reinvenção dos sujeitos na relação entre pais e filhos, pois não há mais modelos ou catálogos como garantias. “Criar filhos hoje é um projeto que ressignifica nossa existência como pessoas e como pais e que exige esforço, sacrifício, repetição e insistência”, diz ele. Além do atendimento clínico especializado, o profissional presta consultorias a escolas, faz palestras concorridas e mantém um canal no YouTube. Nesta entrevista, ele fala sobre infância, adolescência, os efeitos do discurso político e da cultura no psiquismo de pais e filhos.
Há quem creia que as transformações por que o mundo passa, nos campos econômico, político e comportamental, devem durar pelo menos meio século. O que pensa que caracteriza o mal-estar do nosso tempo?
Poderia dizer que vivemos uma transição paradigmática. Como Boaventura Sousa Santos diz, a gente está entre um presente para determinar e um futuro que ainda não veio. Essa experiência intervalar, essa hiância, gera muita angústia. Na verdade, a gente só vai ver essa transição historicamente depois, à exceção dos artistas, que talvez sejam aqueles que mais conseguem perceber de uma outra perspectiva. Então, a angústia talvez seja a característica mais potente do ponto de vista psíquico que esse tempo gera, porque é um tempo de incertezas e as coisas estão acontecendo numa velocidade que a gente não consegue acompanhar. Conseguimos ter as referências do passado, de alguma maneira até conseguimos pensar no futuro, mas isso está tão misturado e liquefeito que não conseguimos interpretar esse tempo, a não ser vivendo-o. É, indiscutivelmente, do ponto de vista psíquico, uma tarefa difícil.
O senhor trabalha com crianças, adolescentes e famílias. Certa vez, falou numa palestra que, hoje, “ter um filho é um projeto de vida” e que, se não for assim, é melhor criar uma samambaia.
Essa brincadeira da samambaia, na verdade, é uma brincadeira libertadora. Porque existe quase que um imperativo da maternidade e da paternidade, da maternidade até mais. Nós vivemos num modelo ideal, em que vamos ter que constituir uma família, ter filhos... mas as pessoas podem ou não ter filhos. Precisamos libertar as pessoas desse imperativo de ter filhos. Porque filho é, pelo menos no mundo contemporâneo, um projeto de vida onde as pessoas que mergulham fortemente na experiência de paternidade e maternidade não saem dessa experiência iguais. Tem que se perguntar se quer ter essa experiência ou não, porque não é uma experiência passageira e vai lhe modificar para sempre. Então, se você não tem esse projeto, talvez haja outros que podem lhe suprir e realizar, que não necessariamente ter que ter um filho. Porque na hora que o projeto é um filho, sendo ele um sujeito humano, a relação entre pais e filhos passa ser uma relação inventada, não existe um manual, não existe uma forma certa, e aquilo que funciona hoje não funciona amanhã. Você tem que se reinventar. Numa linguagem baiana, é barril dobrado, não é uma coisa simples. Eu diria, então, que criar filhos hoje é um projeto que ressignifica nossa existência como pessoas e como pais e que exige esforço, sacrifício, repetição e insistência, a partir de uma trilogia que é sempre o afeto, como a base de tudo; a força, porque temos que ensinar esses filhos a serem do coletivo e isso implica impedir determinadas coisas; e insistência, porque você vai precisar fazer isso por muito tempo.
Em relação à educação, qual a grande paranoia dos pais?
Eu diria que são três: a ocupação, a preocupação e a culpa. Os pais estão muito ocupados, preocupados e culpados. Muito ocupados porque hoje o homem e a mulher trabalham. A relação entre a vida privada e o trabalho se desfez, e estamos muito mais ocupados, ocupadíssimos. Por conseguinte, culpadíssimos, porque a gente sempre acha que deve aos filhos, que é sempre menos o que a gente está fazendo. E com a ocupação e a culpa ficamos extremamente preocupados, então tudo vira uma grande demanda. Eu digo que os pais estão perdendo o bom senso: a decisão se vai tirar a mamadeira, se vai dar uma chupeta ou tirar uma fralda, vira uma questão científica, se procuram profissionais, livros, manuais, coisas que a gente resolvia com uma tia mais velha, com uma vizinha experiente, ou simplesmente com uma consulta interna, e hoje a gente precisa ter um aparato supostamente científico que, na verdade, descredibiliza uma certa aposta dos pais no seu desejo. É claro que os manuais são bem-vindos. Uma criança que não fala até uma determinada idade precisa de uma ajuda profissional urgente, então, é importante que os pais tenham esse conhecimento, mas isso não é a regência da relação entre pais e filhos, a regência da relação entre pais e filhos é uma aposta de desejo. Mas os pais ficam aflitos. É quase uma loucura, uma maluquice, mas é uma maluquice importante para aquela criança saber que aquele pai e mãe estão ali por ele e vão dar conta dele, sempre errando. Essa também é outra premissa, se pai, se mãe, são falhos, incompletos e equivocados, é nesse equívoco que a gente planta a chance de esse menino ser ele mesmo e não um espelhamento da minha expectativa. Então, meu pai errou comigo, eu errarei com meu filho e, ainda bem, se tudo der certo, ele vai errar com o dele. A gente tem que saber que pai é falho e incompleto; agora, é vivido? É colorido? É forte? Aposta? Se o menino tem isso claro, boa parte das dificuldades para ele ziguezaguear na vida vai estar, se não resolvida, pelo menos com instrumentais para que ele resolva.
As três paranoias são quase um tripé da ansiedade.
Essa ansiedade que você coloca é, falando tecnicamente, a doença do nosso momento. Depressão e ansiedade são os grandes adoecimentos. Porque estão ansiosos os pais e estão ansiosas as crianças. Se a criança é pobre no Brasil, ela vive uma ansiedade de sobrevivência, porque ela tem que trabalhar, tem que fugir da bala perdida, se defender de ser violentada, ela vive uma exclusão absoluta de políticas de saúde, educação, saneamento, das coisas essenciais de uma vida; então, vivem um grau de ansiedade absurda para sobreviver. Ricos, com alguma condição socioeconômica, a gente transforma a vida dos filhos em um executivo mirim, é um workaholic. Ele tem curso disso, daquilo, faz ioga, natação, vive uma agenda superlotada que, em tese, vai dar conta da sua sobrevivência. Em ambos os casos, essa infância está desprotegida, maculada, ferida, porque a premissa de uma infância é a preservação de condições por parte dos adultos. Porque ser criança não tem nada a ver com viver a infância. Ser criança é um critério etário, de idade, mas viver a infância é um conjunto de experiências simbólicas que a sociedade tem que preservar. Quando os pais estão ansiosos e as crianças estão ansiosas, o que a gente vê? Uma desproteção, um desajuste, uma falta de condições de preservação daquilo que seria essencial na vivência da infância. Aí estamos gerando um problema grande para a sociedade, porque aqueles países que priorizaram a cultura da infância nos dão melhores resultados em saúde, segurança pública e educação.
O senhor reconhece que a cultura exerce influência nas crianças, a ponto de uma garota com 7 anos sofrer por não ter uma barriga negativa...
Sim, ou existir sutiã de bojo para 2 anos de idade. São coisas que falam desse lugar da abreviação da infância. Vamos pensar na coisa da sexualização: nós somos completamente contra a pedofilia, contra que as crianças vivam uma erotização equivocada da sua infância, porque a criança tem sexualidade, mas é um tipo de funcionamento da sexualidade diferente da do adolescente, uma sexualidade não genitalizada. Quando a cultura traz referências extemporâneas da sexualidade para a infância, faz uma prática abusiva. Porque conecta a criança com um funcionamento da sua sexualidade para o qual, psiquicamente, ela não está preparada. Isso é abuso, não tem outro nome. Isso faz dano para a criança, e sendo ruim para a criança, é ruim para toda a sociedade. Só quem ganha com isso é quem vende os produtos. Portanto, proteger a infância é mais necessário hoje do que historicamente a gente tenha testemunhado porque as invasões, as apropriações desses conteúdos simbólicos que deveriam ser preservados e protegidos, são cada vez maiores.
Esse mesmo impacto que a cultura pode exercer também se reflete em relação à onda conservadora, anti-intelectual e autoritária do discurso político, como se autorizando a idiotização?
Acho os efeitos devastadores. Devastadores. Já tivemos efeitos na época da campanha eleitoral complicados. Me disponibilizei a ir a algumas escolas porque houve manifestações violentas dos adolescentes, e violências inéditas: alusão a armas, intolerância a funcionamentos de sexualidade diferentes, coisas que talvez existissem, obviamente existiam, mas havia uma custódia simbólica. Porque para existir em coletividade tem que ter um acordo mínimo de respeito à diversidade, de respeito à diferença. Mas na hora que as dimensões políticas tiram a tampa do limite, tiram a tampa da barreira simbólica, a gente se destrói. Quando a gente tira essa tampa para a adolescência é muito perigoso, quase uma autorização de um certo comportamento impulsivo, que a gente chama de uma certa onipotência pubertária, em que eles julgam mal as consequências e terminam metendo os pés pelas mãos. A gente precisa ajudar esses meninos e meninas a filtrar o entendimento desse cenário porque ele faz, sim, impactos muito diretos à subjetividade, a despeito de qual seja a posição política, mais para cá ou para lá, não é isso que estou discutindo. O que estou discutindo é a legitimação da violência, a legitimação da intolerância, o desrespeito e descrédito àquelas pessoas que são formadores, a criação de uma teoria supostamente conspiratória que só tem como objetivo recrudescer a ignorância. Esses são retrocessos históricos que nós já temos testemunho. Cabe a nós, educadores, lutar contra isso, acolher esses meninos, conversar com eles, mostrar que a gente pode ter uma posição para cá ou para lá, mas que tem que respeitar a diversidade, senão é fim de tudo. Quando a gente rompe esse acordo de convivência, está convocando a vida humana à barbárie.
A experiência atual da sexualidade da juventude parece ter centralidade em relação às expectativas dos pais.
Essa questão da sexualidade e do gênero para a nossa geração é uma coisa nova. Porque nós vivíamos um processo de repressão da sexualidade intenso. Hoje, a gente tem uma liquefação desses limites, para o bem e para o mal, então, toda liquefação das referências que vivemos na sociedade vivemos também no campo da sexualidade. Nesse caso, acho uma coisa positiva, porque as pessoas podem viver mais congruentemente, mais publicamente, com aquilo que vivem internamente. O que a gente pode informar aos pais é que a identidade de gênero é a maneira como a pessoa se percebe. E a maneira que ela vive a sua sexualidade, às vezes, é congruente ou não com essa identidade. O que essa juventude nos diz e nos ensina, acertadamente, é que as pessoas vão viver de acordo com o que vivem internamente desde que, e somente se, isso não violar o outro. Se não viola o outro, não machuca, ofende, agride, submete, aprisiona o outro, que mal tem? Por que isso é tão difícil para a gente lidar? Porque nós ficamos desesperados com a falta do catálogo. Temos que ter um pouco de parcimônia e de compreensão que, para os pais, é uma adaptação difícil. Agora, isso não dá lugar a desrespeito, à violência, porque vou lhe dizer: a pessoa que vive incongruente com a sua identidade de gênero é um sofrimento atroz, uma coisa insuportável. Uma pessoa que não pode viver plenamente a sua sexualidade tem um sofrimento atroz, então, quanto mais pessoas puderem estar em dia com a sua identidade e com a sua vivência da sexualidade, melhor para o mundo. Eu não consigo ver no que isso é ruim. Agora, não é porque não é ruim que é fácil. Porque não está estabelecido. Então, a gente tem que ficar no gerúndio das circunstâncias se reinventado. E quando é difícil de se compreender, quais são as saídas do humano? Existem algumas, vou citar três. Uma é o que Sygmunt Bauman chamou de retrotopia: pegar o passado, dar uma maquiada nele e dizer bons eram aqueles tempos; outra saída é a negação, a gente finge que aquilo não existe; e uma terceira saída, que eu acho que é pior, é a luta: essa luta de ir lá, ofender, humilhar, bater, prender, chacotear. As duas primeiras, acho compreensíveis, essa eu acho inaceitável.
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