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Primeira ópera negra do Brasil, "Lídia de Oxum" será remontada em novembro

Publicado segunda-feira, 14 de outubro de 2019 às 09:35 h | Atualizado em 21/01/2021, 00:00 | Autor: Gilson Jorge
Bailarinos ensaiam a nova montagem da ópera, que estará em cartaz de 21 a 23 de novembro no TCA
Bailarinos ensaiam a nova montagem da ópera, que estará em cartaz de 21 a 23 de novembro no TCA -

Aos 10 anos de idade, Ildazio Tavares Junior questionou  o seu pai, o escritor Ildásio Tavares, sobre a razão de seu nome ser grafado com Z e sem acento. A resposta, vigorosa, foi que duas pessoas não ocupam o mesmo lugar e espaço e que ele deveria moldar sua própria personalidade. Em janeiro de 2020, completam-se 80 anos do nascimento do intelectual inquieto e temperamental que não hesitava em apontar o dedo às falhas alheias, o que lhe custou amizades, mas que deixou como legado a poesia, canções de sucesso e a coautoria, com Lindembergue Cardoso, de Lídia de Oxum, a primeira ópera brasileira em português, que ganha no mês que vem uma releitura, produzida por Ildazio Junior e dirigida por seu irmão mais novo, o dramaturgo Gil Vicente Tavares. É o principal projeto da Coleção Ildásio Tavares, que prevê outras três produções até 2021. “Meu pai tinha o sonho de refazer Lídia de Oxum. E eu prometi no dia de seu velório que iria produzi-la”, diz Ildazio Junior.

Marco na produção cultural baiana, a ópera narra a relação entre brancos e negros em uma fazenda de Santo Amaro durante o período de escravidão. Uma narrativa de amor e ódio entre  oito personagens centrais, que se propõe a ser também um grito de liberdade. A montagem original contou, há 24 anos, com a  participação da Orquestra Sinfônica da Bahia (Osba), de Lazzo, do barítono Inácio de Nonno e foi regida pelo maestro Julio Medaglia. “É um espetáculo visionário e utópico. Pena que não houve grandes espetáculos populares. Triste ver que não houve nada parecido depois”, lamenta Paulo Dourado, diretor nas duas primeiras apresentações no palco do TCA.

Dourado afirma que planejava ousar, colocando os 30 bailarinos, 80 integrantes do coro e  oito solistas para atuar no centro do palco, cercados pelos músicos da Osba. Mas a ideia teria desagradado ao maestro Lindembergue, que teria que reescrever a ópera e adaptá-la a essa configuração. “Ele morreu antes da montagem, mas decidi respeitar sua vontade”, diz Dourado. Uma briga com Ildásio o afastou das apresentações ao ar livre no Parque Metropolitano do Abaeté, em 1997, quando houve a participação de Margareth Menezes. Bergue, como o maestro era chamado pelos amigos, morreu de infarto em 1989.

“Sinto-me honrado em ter sido convidado por esses dois grandes homens”, afirma Dourado. Mas ele defende a tentativa de experimentar. “Não havia know-how disponível e estava-se inventando uma ópera brasileira, sem o aspecto melódico e lírico que caracteriza a ópera italiana”, afirma.

Lídia de Oxum começou a ser construída, de fato, após um encontro casual entre o maestro Lindembergue Cardoso e Ildásio, em 1987, no saguão do Edifício Bráulio Xavier, Rua Chile, onde o escritor mantinha um curso de inglês, o IEC. Ele declarou então ao músico a sua vontade de montar uma ópera e viu que Cardoso tinha a mesma ambição. Uma ópera negra, enfatizou... sim!, e coincidiu outra vez com a intenção do maestro. A ideia era encenar a ópera em 1988, Centenário da Abolição da Escravatura, mas o apoio do governo para a execução só veio em 1995, quando o então secretário de Cultura e Turismo, Paulo Gaudenzi, ligou para a viúva do maestro, Lucy Cardoso, em busca de informações sobre o projeto. “Acho que foi a única vez em que um gestor procurou um artista”, provoca Dourado. 

Imagem ilustrativa da imagem Primeira ópera negra do Brasil, "Lídia de Oxum" será remontada em novembro
Escrito por Ildásio Tavares e Lindembergue Cardoso, o espetáculo foi encenado pela primeira vez em 1995

A base da ópera foi a peça Os sete poemas negros, que Ildásio escreveu a pedido do músico Djalma Corrêa depois que este rompeu uma parceria com o dançarino norte-americano Clyde Morgan. Era uma peça inspirada nos talking drums, um instrumento de percussão da África Ocidental com três tons que encenou no Instituto Cultural Brasil-Alemanha (Icba), em 1976, e que, segundo declaração de Ildásio  na década de 2000, havia sido recusada por produtores dentro e fora da Bahia, sob o argumento de que nem negros assistiriam a um espetáculo teatral com temática negra. A pedido do ator Grande Otelo, que estava na plateia do Icba, ele havia tentado levar ao circuito comercial uma peça em que negros fossem protagonistas. Após a conversa no Bráulio Xavier, Cardoso pediu ao amigo que transformasse a peça em libreto e que o procurasse.

A ópera é reflexo de um momento em que a Bahia mergulhava na influência africana na cultura brasileira. Nomes como o antropólogo e obá (ministro de Xangô )  Vivaldo Costa Lima e a etnolinguista Yeda Pessoa de Castro traziam a público estudos sobre o continente africano e a sua diáspora. “Ildásio e Lindembergue foram  frutos de um mesmo projeto, a Ufba”, destaca o maestro Paulo Costa Lima, assinalando que a decisão do reitor Edgard Santos de criar o Centro de Estudos Afro-Orientais, em 1959, foi fundamental para a valorização da presença cultural africana na Bahia. Em 1991, a Escola de Música da Ufba, então dirigida por Paulo Costa Lima, inaugurou o Memorial Lindembergue Cardoso, que abriga o acervo do maestro. Mas o local só abre esporadicamente, quando a viúva do músico, Lucy Cardoso, pode estar presente. 

Imprevisível

Mesmo que quisesse contrariar a sugestão dada pelo pai em sua infância, o produtor Ildazio Junior teria muitas dificuldades em replicar a personalidade paterna. Ildásio era mestre em deixar desconcertados os seus interlocutores, criando epigramas ofensivos ou reagindo de forma  imprevisível. Em uma visita ao amigo  escritor e professor Cid Seixas cruzou na porta com um enfurecido Sante Scaldaferri, artista plástico que havia presenteado o escritor com um quadro seu e o flagrou desfigurando a tela. Ao ouvir a reclamação irada do artista, Ildásio disse  aos gritos: “Deixe de ser ignorante! Eu estou dialogando com a sua obra” .

Às vezes, os desentendimentos com os amigos vinham de discussões bobas, pequenas contrariedades, que geravam dias de zanga. O próprio Cid foi vítima da ira de Ildásio após  uma discussão que tinha tudo para ser inconsequente. Possesso, o escritor escreveu em banheiros de bares e boates o nome do amigo, dizendo que ele estava oferecendo-se para o sexo, com o número do telefone, ainda uma linha fixa, ao lado. “O telefone tocava até de madrugada”, diverte-se Seixas, ao relembrar as histórias.

Confraria

Aluno de Ildásio no IEC e depois colega dele como professor na Ufba, Cid logo se transformou em amigo do escritor e se engajou na confraria de intelectuais que faziam animadas reuniões para discutir literatura na sala da direção do curso ou na antiga livraria Civilização Brasileira da Rua Chile, à época o logradouro mais chique de Salvador. O Edifício Bráulio Xavier foi o primeiro da cidade a ter uma escada rolante. E a figura de Ildásio era um ímã para quem gostava de artes e também de tiradas inteligentes. “A gente sente muita falta da pessoa inteligente, que também chutava o balde”, destaca Cid. 

Mas na maior parte do tempo, as lembranças deixadas pelo pai são histórias que causariam inveja a qualquer artista. Gil acompanhou ainda criança a noite em que seu pai compôs com Baden Powell a Canção de Iansã. Os dois haviam sido apresentados, e mesmo temendo não ser reconhecido, Ildásio esperou o fim do show do músico fluminense no antigo Hotel Meridien (atual Pestana Bahia Lodge), para cumprimentá-lo. Baden mencionou uma melodia, entregou-lhe caneta e guardanapos  do bar do hotel e lhe pediu uma letra. Gil teve uma péssima experiência na aula no dia seguinte, mas não lamenta o sono perdido. 

Ildásio também compôs com Vevé Calazans e com a dupla Antônio Carlos e Jocafi, com a qual assinou seis das 13 canções da trilha sonora da novela  Primeiro Amor (1972), mas o que seria uma grande alegria trouxe-lhe fúria. Seu nome saiu creditado na capa como I.Tavares.  

Outro parceiro de Ildásio, com quem escreveu Salve as Folhas, Gerônimo o conheceu no dia em que o escritor foi confirmado como obá de Xangô do Ilê Axé Opô Afonjá. “Eu estava lá de penetra, fui entrando no barracão e estava ocorrendo a cerimônia. Ele olhou para trás e eu achei que ele não tinha gostado da minha presença”, relata. Mas quando se reencontraram, Ildásio fez questão de cumprimentá-lo. Gerônimo também teve a experiência de uma terrível briga que dura alguns dias com o amigo, com um desfecho curioso protagonizado por Gil Vicente. “Ele soube que eu fui ver um show de Gerônimo enquanto eles estavam brigados. Eles fizeram as pazes, mas meu pai ainda ficou sem falar comigo uns dias”, relembra.

Perfeccionismo

Nem Gil Vicente escapava das duras críticas do pai, um intelectual que cultivava o perfeccionismo e fazia questão do confronto de ideias em ambientes onde discordar poderia parecer uma declaração de inimizade. “Meu pai foi um dos poucos gênios com quem convivi”, afirma. Para o dramaturgo, assim como Myriam Fraga, Ildásio não teve o valor de sua poesia devidamente reconhecido. “Ele é um dos melhores sonetistas da língua portuguesa”, declara.

A nova montagem estará em cartaz de 21 a 23 de novembro no TCA. No elenco estão a soprano Irma Ferreira Santos (Lídia de Oxum), a também soprano Izadora França (Gracinha), o tenor Carlos Eduardo  dos Santos (no papel de Romão), o baixo Josehr Santos (Bonfim) e o barítono Miguel Nador (Tomás de Ogum). Único integrante do elenco original, Inácio de Nonno agora será Teodoro de Aragão, pai do personagem Lourenço de Aragão, interpretado por ele há 24 anos. Bailarinos e o coro já estão ensaiando.

As homenagens ao escritor previstas até 2021, por iniciativa da produtora de Ildazio Junior, a Viramundo, incluem uma antologia de poemas, livros esgotados,  a Ópera Caramuru e o espetáculo Os Orixás. A captação de recursos é feita por meio do FazCultura.

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