MUITO
Produtor musical Roberto Sant’Ana completa 80 anos com histórias
Roberto Sant'Ana completou 80 anos no último dia 19
Por Gilson Jorge
Enquanto se acomoda em uma cadeira na área externa de uma loja de conveniência para dar entrevista, nas proximidades de sua casa, o produtor musical Roberto Sant'Ana, 80 anos, completados no último dia 19, percebe a chegada da baiana do acarajé e de seus parentes no box ao lado e provoca: "A barraca para roubar a gente. Acarajé de quinze mil réis. Isso é um roubo!". A baiana ri do seu comentário e diz apenas "Ai, ai".
O homem que durante 39 anos foi responsável por catapultar carreiras de jovens artistas, alguns que tinham apenas abrangência local, como Luiz Caldas e Gerônimo, e mesmo ilustres desconhecidos, como Elomar, não se acanha em usar palavras fortes para fazer críticas, o que tem lhe rendido problemas de relacionamento ao longo da vida, na profissão e mesmo no âmbito familiar.
Quando foi trabalhar na gravadora Phonogram, Sant'Ana recebeu do diretor de criação da empresa, Armando Pittigliani, o apelido de cachorro perdigueiro. Sertanejo recém-chegado ao Rio de Janeiro, o produtor desconfiou da alegoria, mas depois entendeu que era um elogio ao seu faro para caçar talentos. Um bote certeiro ao ouvir uma voz, uma música, um ritmo que julga ter possibilidade de atingir o sucesso.
No início da década de 1970, Sant'Ana foi jantar em um restaurante italiano próximo ao Convento de Nossa Senhora do Desterro, em Nazaré, na companhia do maestro Carlos Lacerda. Nesse dia, havia um homem com o rosto parcialmente encoberto por um chapéu e tocando violão.
"Ele estava cantando umas poesias que eu entendia pela metade, e olha que eu sou catingueiro, sertanejo. Mas aquilo mexeu comigo. Eu disse, porra, bicho, isso é novidade no Brasil!", lembra o produtor.
O cantor misterioso era o menestrel e arquiteto conquistense Elomar. Finda a apresentação, Sant'Ana se aproximou e propôs que o músico gravasse um registro de sua obra. "Ele respondeu, daquele jeito dele, ‘Que nada, rapaz, oxe’, mas depois de um tempo eu o convenci", conta Sant'Ana.
Com a gravação concluída, o produtor convidou o fotógrafo é arquiteto Sílvio Robatto, que foi professor de Elomar na Faculdade de Arquitetura, e a equipe se deslocou para fazer um ensaio fotográfico na região sudoeste do estado. Assim surgiu o primeiro disco de Elomar, Das Barrancas do Rio Gavião. "O encarte tinha umas 50 fotos. Foi o melhor encarte de disco em muitos anos", comemora o produtor. Mas foi a única experiência de trabalho com Elomar.
Um ano depois, Sant'Ana entrou em contato com o artista para negociar um segundo álbum, mas a conversa mudou de rumo. "Ele queria comprar o primeiro disco dele, mas a Polygram não vende seu material. Depois, eu descobri que fizeram a cabeça dele para ele próprio gravar seu disco", afirma o produtor.
Sant'Ana diz manter consigo apenas 22 discos de vinil mais representativos de sua história como produtor. Entre eles, Barra 69, de Gil e Caetano; Walter Smetak, Alcione, Caymmi e Vinicius de Moraes. A maior parte de seus discos foi doada ao Movimento Cultural Viva Irará, cidade natal do produtor e de seu primo, o músico Tom Zé.
Ex-diretor da Casa da Música em Itapuã, entre 2007 e 2020, o violonista Amadeu Alves destaca a tradição cultural da região de Irará e enaltece a trajetória do produtor: "A música brasileira é o que é por causa de pessoas como Roberto Sant'Ana".
Durante uma viagem a Porto Alegre, em meados da década de 70, o produtor encontrou no hall de um hotel o então deputado estadual José Fogaça, que perguntou seus planos para aquela noite e o convidou para jantar em sua casa. "Eu pensei ‘Bom, pelo menos não vou gastar dinheiro hoje’”, brinca o produtor.
O encontro, na verdade, serviu para apresentar a Sant'Ana o grupo folclórico Os Almôndegas, que gravou seu primeiro disco com a Polygram em 1975. Quatro anos depois, o grupo foi desfeito, mas os irmãos Kleiton e Kledir, integrantes da trupe, começaram uma carreira de sucesso como dupla.
"Eles são meus amigos até hoje. Recentemente, me mandaram pelo Instagram, esse negócio que eu não sei mexer, um pôster de um show no Gigantinho [ginásio em Porto Alegre]", conta o produtor, que na época desse espetáculo contratou Caetano Veloso e Gal Costa para uma participação especial na apresentação da dupla, que ainda não tinha um público consolidado. Mas o encontro com outra gaúcha, Elis Regina, não foi muito feliz. Sant'Ana atribui a ela tentativas explícitas de provocar sua demissão.
A descoberta de Luiz Caldas como um artista que tinha potencial para estourar nacionalmente foi interessante. Durante uma visita ao estúdio WR, de Wesley Rangel, o produtor ouviu uma gravação de Luiz e quis saber do empresário que destino teria o material. "Ele queria vender por US$ 6 mil. Eu disse que tinha US$ 4 mil e ele me vendeu", relembra Sant'Ana.
De posse da demo de Luiz Caldas, o produtor procurou a equipe do Cassino do Chacrinha, lendário programa de auditório da TV Globo, com a intenção de viabilizar a apresentação do músico baiano. O disco vendeu mais de 960 mil cópias.
Sobre o produtor do seu primeiro disco, Luiz afirma: "Roberto Sant'Ana é um dos caras mais importantes da música no Brasil, pela sua força, sagacidade e inteligência de ver quem tem conteúdo. O grande lance do produtor é esse, ver quem tem longevidade", declara o cantor e compositor.
Teatro e som
Sant'Ana é, originalmente, um homem de teatro. Aprendeu a dominar luz, cenografia e outros elementos cênicos com os quais iniciou a trajetória na música produzindo shows de MPB na noite soteropolitana, em locais como a extintas boates Clock, no Dois de Julho, e Dendê, no Dique do Itororó, além do bar que funcionava ao lado do Posto São Jorge. "O dono era fã de MPB. Naquela época, praticamente só havia mulheres cantando na noite em Salvador. Ainda hoje há poucos homens", afirma.
Também foi dele a produção do histórico show Nós por exemplo, em 1964, no Teatro Vilha Velha, que reuniu Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Maria Bethânia e Tom Zé, Alcyvando Luz e Djalma Corrêa.
Alma de teatro, cabeça executiva, Sant'Ana não tolera atrasos e zela por estar de cabelo cortado e barba impecavelmente feita ao dar entrevista. Aliás, não gostava do cabelo grande e nem do brinco que Luiz Caldas usava, mas aceitou o visual do artista ao gravar o seu disco, pois era a sua essência.
Foi com essa mentalidade, meio CEO, meio sensibilidade, que Sant'Ana topou produzir o espetáculo da então desconhecida cantora maranhense Alcione em um teatro do Rio de Janeiro. A temporada fez tanto sucesso que levou a Rede Globo a contratar a Marrom por dois anos. Uma vez por mês, a TV exibia nas noites de sexta-feira o especial Alerta Geral.
No ápice da carreira, Sant'anna chegou a coordenador de produção da gravadora fundada em 1971, que depois se tornaria a Polygram, e diretor artístico do selo Philips. Em determinado momento, gerenciou o trabalho de seis produtores musicais no Rio e dois em São Paulo.
No total, foi responsável por mais de 370 discos. Na lista, Fafá de Belém, Alcione, Emílio Santiago, Kleyton e Kledir e Elis Regina. Na década de 80, criou o seu próprio selo dentro da Polygram, o Nova República, pelo qual lançou os baianos Luiz Caldas e Gerônimo. "Meu selo sustentou a gravadora por seis meses", orgulha-se.
Alguns dos trabalhos que mais emocionaram Sant'Ana, entretanto, não tiveram apelo comercial, como as antologias poéticas de Vinícius de Moraes, Carlos Drummond de Andrade e Mário Quintana.
"Nenhum desses discos chegou a custar R$ 100 mil, eles venderam o suficiente para se pagar, mas ficaram 25 anos no catálogo", diz o produtor, que qualifica a performance de um sucesso estrondoso.
Outro trabalho do qual Sant'anna se orgulha muito é o disco Eu, Bahia, atabaque e berimbau, gravado em 1972 com o alabê Edinho Marundelê e o capoeirista Onias Comenda, quando a gravadora ainda se chamava Phonogram. De um lado música dos terreiros, de outro música da capoeira.
"Foi um disco que ficou em catálogo por 30 anos. Vendia 10 por mês no Brasil, mas alguns países da Europa contrataram esse disco. França, Bélgica, Tchecoslováquia (antes da separação em dois países, República Tcheca e Eslováquia)...não entendo bem o porquê, mas foi para lá", afirma.
Apartidário
Sobrinho do ex-deputado comunista Fernando Sant'anna, o produtor se diz apartidário e chegou a perguntar se o sanfoneiro Targino Gondim, seu amigo, era imbecil, por ter aceitado concorrer a deputado federal. "Ele não se elegeu, mas garantiu votos para um deputado estadual. Eu nunca me filiei a partido algum. Só me associei ao Flamengo, enquanto morava no Rio", diz o produtor.
Depois que anunciou publicamente seu voto no ex-presidente Jair Bolsonaro, as brigas em que Sant'Ana se envolveu aumentaram exponencialmente. Na última terça-feira, durante o lançamento do livro Academia dos Rebeldes e outros exercícios redacionais, de seu amigo Florisvaldo Mattos, no Museu de Arte da Bahia, foi interpelado por uma militante de esquerda que questionou a sua presença no ambiente. "Eu peguei um táxi e fui embora", diz o produtor.
Sant'Ana rechaça as declarações de que pertença à extrema-direita e se declara antipetista. "Estavam Lula e Bolsonaro. Eu votei contra Lula. Se eles disputarem de novo, voto em Bolsonaro", argumenta o produtor, que entre as críticas contra o presidente menciona a informação de que o Brasil perdeu um investimento de US$ 50 bilhões de uma fabricante de aviões ucraniana depois de uma declaração de Lula sobre a Guerra na Ucrânia. A notícia, divulgada pelo Governo de São Paulo e veiculada pela CNN, foi desmentida pela fabricante de aviões, que afirmou nunca ter planejado investir no Brasil.
No seu ramo de atuação, Sant'Ana quase não enfrenta oposição no que tange ao que ele construiu. O saxofonista Rowney Scott, do Grupo Garagem e diretor artístico e curador do Festival de Jazz do Capão, classifica o seu legado como produtor musical de "incrível”. A relação entre eles se estreitou quando Sant'Ana se propôs a produzir Courana, terceiro disco do grupo, num projeto do Estúdio WR, com temas folclóricos da Bahia.
"Nos tornamos amigos e ele me trata com muito carinho, e eu com muito respeito e admiração. Com certeza, um dos produtores mais importantes da história da MPB no século 20, tendo assinado a produção de muitas pérolas da discografia brasileira", afirma Scott.
O músico Lucas Santtana, filho do produtor, declara em nota: "Roberto Sant'Ana teve uma atuação marcante dentro da indústria fonográfica, produzindo álbuns de artistas que defendiam os direitos sociais, a importância do meio ambiente, a intolerância racial e de gênero. A música popular e os discos que ele produziu dentro dela nunca se associaram a pensamentos de extrema direita ou algo do tipo".
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