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Projeto resgata enredos de escolas de samba de Salvador

Site dedicado aos sambas-enredo baianos será lançado neste domingo, 27

Por Gilson Jorge

27/02/2022 - 6:06 h
Guiga de Ogum e André Carvalho em frente à antiga sede da Ritmistas do Samba
Guiga de Ogum e André Carvalho em frente à antiga sede da Ritmistas do Samba -

Quando era aluno do Colégio Estadual Severino Vieira, na década de 1950, Guiga de Ogum cometeu uma gafe racista da qual não se esquece. Ao avistar uma mulher negra na cantina, o então adolescente dirigiu-se a ela como se fosse uma servente da escola. Descobriria logo em seguida que sua interlocutora era a Pró Carol, rigorosa professora de português que seria posteriormente bastante rígida nas avaliações escolares.

Mas as aulas foram muito úteis. O menino criado na região da Ladeira da Preguiça, desenvolveu o gosto pela escrita e se tornou compositor e um dos músicos populares baianos mais relevantes da geração nascida em 1942, ano que deu à luz também Caetano Veloso, Gilberto Gil e Nelson Rufino.

Mas, ao contrário de seus contemporâneos, Guiga ainda está por lançar o seu primeiro disco solo, este ano, com a ajuda do produtor paulista Paulinho Timor. A realização tardia desse projeto ajuda a explicar por que na fachada do imóvel onde reside o ex-aluno da Pró Carol uma faixa anuncia que é ali a casa do poeta. Não o “Poeta da Preguiça”, como é reverenciado entre os sambistas e compositores.

Autor de alguns sambas-enredo da primeira escola de samba de Salvador, a Ritmistas do Samba, ali da Ladeira da Preguiça, Guiga considera que a sua tão amada Bahia lhe foi madrasta com a falta de reconhecimento ao seu trabalho.

"Antônio Carlos Magalhães teve consideração quando eu lhe escrevi. Se eu tivesse sido apresentado a ele antes, talvez a história fosse outra", lamenta.

No ano passado, Guiga participou da coletânea Sambas-enredo da Cidade da Bahia, resultado da pesquisa do jornalista paulista André Carvalho, em parceria com os baianos Everton Marco e Felipe Ataíde, que assinam a direção artística do CD e integram o grupo É Samba da Bahia. O disco começa justamente com uma obra sua, A influência dos negros na Bahia.

A pesquisa, cuja segunda etapa se materializa neste domingo, 27, com um site dedicado aos Sambas-enredo baianos, ajuda a lançar luz sobre escolas e compositores que fizeram o Carnaval da Bahia se consolidar como uma festa do povão, numa época em que a fobica de Dodó e Osmar ainda não havia se transformado no fenômeno do trio elétrico que puxava as multidões.

Antes de Moraes Moreira se tornar o primeiro cantor de trio, por exemplo, Guiga tinha segurado desfiles inteiros de sua escola do Campo Grande à Praça da Sé, entoando seus sambas-enredo com um megafone.

Dezenas de sambas-enredo, alguns dos quais nunca gravados em disco, podem ser conferidos a partir de agora no site sambasenredo.salvador.br, que entrou no ar esta semana. O site é um complemento do CD. O disco tem sete sambas inéditos e uma regravação.

Além das quatro maiores escolas de samba (Ritmistas do Samba, Diplomatas de Amaralina, Juventude do Garcia e Filhos do Tororó), o álbum traz sambas de três escolas menores: Filhos do Morro, Politeama e Ritmo da Liberdade.

Durante a produção, aconteceram episódios interessantes. André tinha conseguido um recorte de jornal com a letra do samba-enredo Exaltação dos Vaqueiros do Nordeste Brasileiro, tema da Escola de Samba do Politeama em 1966, mas não conseguiu o áudio. No processo de entrevistas, o autor da música, Almir Ferreira, o Almir do Apache, lembrou da melodia, o que possibilitou a gravação. "A gente tinha um recorte para gravação, que eram os sambas que foram para a Avenida", explica.

Destaque da Escola de Samba Unidos de Itapuã, no Pelourinho, em 2019
Destaque da Escola de Samba Unidos de Itapuã, no Pelourinho, em 2019 | Foto: Joá Souza | Ag. A TARDE | 5.3.2019

Exaltação da baianidade

André Carvalho, que veio para Salvador em 2018 junto com a pedagoga Maria Pinheiro, sua companheira, começou a se inquietar em busca de informações sobre as escolas de samba soteropolitanas ainda em São Paulo.

"Eu conhecia algumas gravações de Ederaldo Gentil e depois conheci Walmir Lima também, mas não sabia se ainda existiam escolas de samba em Salvador", explica o jornalista, que ao lado de Maria e de outros sudestinos interessados em música que se encontraram por aqui, formou o grupo É Samba da Bahia, dedicado a promover a arte de cantores e compositores populares baianos.

Se o santo-amarense Caetano Veloso usou a expressão "túmulo do samba" para designar a terra natal de André na canção Sampa, o paulistano e seus amigos, novos baianos por adoção, resolveram se dedicar a um tipo de arqueologia musical em Salvador.

"Quando vim para cá, consegui o livro de Geraldo Lima, O Carnaval de Salvador e suas Escolas de Samba e comecei a pesquisar", lembra. Assim, descobriu a Juventude do Garcia, os Diplomatas de Amaralina, os Ritmistas do Samba.

No início da pandemia, quando a Assembleia Legislativa da Bahia abriu edital para publicação de livros sobre personagens relevantes de bens imateriais do estado, ele inscreveu um projeto de pesquisa e foi contemplado com um orçamento de R$ 60 mil para a realização de todo o trabalho. Com essa verba, pagou cachês de músicos, o trabalho dos técnicos, a edição dos CDs e demais gastos.

Charangas

As escolas de samba de Salvador surgiram como charangas e depois cresceram, algumas com incentivo da prefeitura. A pioneira, Ritmistas do Samba, foi formada por seis pessoas, como dissidência de um bloco chamado Nega Maluca, criado em 1949, mesmo ano em que surgem os Filhos de Gandhy. "Os seis foram tachados de maconheiros pelos outros, ficaram aborrecidos e fundaram os Ritmistas", explica Guiga.

Nessa época, surgiu o badalado Banho à Fantasia da Preguiça, retomado recentemente pelos jovens do bairro, mas os tempos e costumes eram totalmente distintos. Ser chamado de maconheiro era uma ofensa gravíssima, a expressão Nega Maluca era aceitável e, por outro lado, as prostitutas e os homossexuais afeminados da área não ousavam cruzar o caminho dos foliões, sob o risco de sofrerem agressões físicas, um enredo que ainda desfila no carnaval, mas é mal visto pela principal comissão julgadora, a sociedade.

Os sambistas percorriam fantasiados os botecos da Preguiça, da Praça Castro Alves e adjacências, antes e depois do desfile, que começava no Campo Grande.

Ex-Salgueiro que se converteu à Portela pelo azul e branco do seu orixá, Guiga de Ogum ressalta que as escolas de samba baianas eram superestimadas na época no que diz respeito à presença de público. O noticiário, então, apelava para o artifício bairrista de anunciar uma adesão popular às escolas de samba de Salvador maior do que a realidade. O que não retira a qualidade artística dos músicos

"Os Ritmistas esnobavam nos instrumentos. Tocavam salsa, merengue. Esse negócio de samba-reggae, já tocavam. Aliás, o samba-reggae nunca existiu, é um toque militar que os Ritmistas tocavam. Só que na época da revolução (ditadura), por exemplo, se os militares criassem problema, eles tinham que parar", diz Guiga.

Histórico

Geraldo Lima, autor do livro que embasou a pesquisa, publicado em 2017 pela editora Corrupio elogia a iniciativa de André. "Muita coisa que foi produzida naquela época estava sendo perdida e não havia sido gravada", diz Geraldo, para quem o fato de se ter conseguido organizar um CD com algumas obras já é um registro histórico.

Uma exceção foi Ederaldo Gentil, morto em 2012, que tinha gravado alguns sambas-enredo, como Dois de Fevereiro e Os 50 anos como Ialorixá de Mãe Menininha do Gantois, além de Samba Cantoria de um Povo, parceria de Gentil com Edil Pacheco para a escola Juventude do Garcia.

Geraldo destaca que ao longo dos 15 anos do ápice das escolas de samba da Bahia, entre 1963 e 1978, houve, de fato, uma tentativa de emular a festa carioca, em menor escala.

As maiores agremiações baianas conseguiam no máximo uns 800 foliões. O autor do livro conta que nessa tentativa de seguir o Rio houve um caso de plágio de um samba de Nelson Sargento, que só foi descoberto mais tarde, já que os desfiles não eram televisionados. "Ali, naquele momento, queríamos cantar, ninguém estava sabendo que existia esse outro samba".

Mas Geraldo também ressalta a excelência em alguns casos. "Os Filhos do Tororó, por exemplo, eram privilegiados, pois tinham Nelson Rufino, Walmir Lima e Ederaldo Gentil. Era, como se diz, covardia", sublinha o autor, ele próprio compositor de sambas-enredo.

Autor do sucesso Ilha de Maré, interpretado por Alcione e sinônimo de Lavagem do Bonfim, Walmir Lima foi o primeiro compositor a ser contratado profissionalmente para apresentar sambas-enredo.

"Eu comecei ajudando as escolas de samba pequenas, a convite da Superintendência de Turismo (órgão criado pela Prefeitura de Salvador em 1966) e pela Federação dos Clubes de Carnaval ", lembra Walmir.

Depois, veio a profissionalização de fato, quando o músico foi convidado a ajudar na transformação de um bloco de percussão do Centro Histórico em uma escola de samba. Assim, em 1968, ele compôs para a Filhos do Morro, escola de samba do Santo Antônio Além do Carmo, o samba-enredo O Circo, que está registrado na coletânea lançada no ano passado.

Era um momento de transformação do Carnaval de Salvador, que havia sido iniciada ainda de forma amadora pelo compadre de Walmir, Nelson Rufino, um dos fundadores da escola Filhos do Tororó, e que naquele momento representava a expectativa de reproduzir na Bahia, de alguma forma, o sucesso das escolas de samba do Rio de Janeiro. "Eu gostei do convite. Como é que um descendente de Santo Amaro da Purificação ia ficar de fora de uma coisa dessas", indaga Walmir.

Se alguns pesquisadores buscam valorizar as escolas de samba do passado, há músicos fundando novas escolas. Em 2007, cinco amigos se juntaram e uma nova escola de samba foi criada, a Unidos de Itapuã, que além de reviver as experiências de décadas anteriores veio com o objetivo de ensinar percussão a crianças e adolescentes do bairro.

"A gente queria ensinar um ritmo diferente do samba-reggae e, depois de pesquisar as escolas de samba baianas dos anos 1960, o grupo decidiu seguir esse caminho", afirma Nailton Maia, gestor de harmonia da escola que não tem um presidente, mas uma administração compartilhada entre os fundadores.

A Unidos de Itapuã trouxe algumas adaptações, entretanto. "Usamos um terceiro surdo, que faz a execução ficar mais suingada, mais baiana, além de um agogô de três bocas”, explica.

Os cursos para jovens começaram para valer em 2018. Na última turma, antes da pandemia, a escola registrou um total de 78 alunos e formou 30. Nos três anos em atividade antes da pausa forçada, a escola desfilou na Lavagem de Itapuã e, através de um edital, participou da programação de Carnaval do Pelourinho, de 2018 a 2020.

Para dar vazão ao material encontrado ao longo da pesquisa e que ficou fora do CD, decidiu-se pela criação de um site em modelo colaborativo, que traz letras de dezenas de sambas-enredo, alguns com áudio. Se alguém tiver informação sobre sambas-enredo baianos, pode submeter o material através do email [email protected].

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Tags:

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