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Quadrilhas de Salvador representam criatividade e resistência

Publicado domingo, 19 de junho de 2022 às 06:00 h | Autor: Gilson Jorge
Ensaio geral da Forró do ABC, grupo com mais de 40 anos,  no ginásio do Iceia (Barbalho)
Ensaio geral da Forró do ABC, grupo com mais de 40 anos, no ginásio do Iceia (Barbalho) -

Dentro de uma pequena igreja evangélica no fim de linha de Massaranduba, uma mulher cujo vestido preto lhe cobre os joelhos fala em pé e gesticula em direção a duas mulheres, sentadas de costas para a porta. Parece um pouco exaltada, mas do lado de fora não se escuta sua voz, abafada pela narração acelerada de uma partida de futebol. Nas paredes do templo modesto há cartolinas com bandeiras do Senegal, Nigéria e Grécia.  Mas não é por causa de um torneio internacional.  Pela primeira vez, aliás, a Copa do Mundo, marcada este ano para novembro e dezembro, não disputa atenção com as festas juninas.

Em Salvador, as seis quadrilhas juninas da Federação Baiana das Quadrilhas Juninas (Febaq) que resistem ao tempo, normalmente começam os ensaios no ano anterior, em novembro, quando os corações soteropolitanos ainda sonham com o Carnaval. Mas desta vez, por causa da pandemia que deixou a festa em modo de espera por dois anos, a Forró do Luar só decidiu retomar atividades em abril, e tem sido tudo corrido mesmo.

Em dias de ensaio, o vice-diretor da quadrilha, Anderson Dias, sai às 18h da clínica onde trabalha como auxiliar de serviços gerais e vai direto para a sede do projeto Juntos Somos Mais Fortes, ONG cedida à quadrilha formada por crianças e adolescentes com idades entre 5 e 18 anos, que precisou abandonar o espaço que ocupava por questões de segurança.

No ensaio da Forró do Luar, o marcador é Enderson Dias, nascido no Dia de São João há apenas 17 anos. No seu primeiro aniversário, os pais o vestiram como o próprio santo. Seu pai, o vice-diretor da quadrilha, dança forró desde os 11 anos e começou a participar de quadrilhas no bairro vizinho do Jardim Cruzeiro.

Em 2009, Anderson começou a namorar com uma moça de Massaranduba e não só se mudou como passou a se envolver diretamente com a quadrilha junina do seu novo endereço. Em 2015, começou a apresentar temas, fazer coreografias e a mexer com tudo o que dizia respeito ao grupo. "Eu virei para a diretora, Anna, e falei que a gente ia participar de tudo que era concurso", diz Anderson.

Com o pai precisando se desvincular da função de marcador para cuidar de muitas outras atribuições, o jovem foi convidado para assumir o posto. "O pessoal me deu um texto e eu tive dois meses para decorar para mover a quadrilha inteira", explica.

Anna Franco, a diretora, é mais na dela. Não gosta muito de dar entrevista e prefere operar na parte administrativa para manter de pé o trabalho social no bairro, iniciado por seu pai, há 60 anos.  Sem apoio formal de governos ou empresas, ela conta com doações de amigos e de seus filhos. "No Dia das Mães e no Natal eu peço que meu presente seja uma doação", conta a diretora.

Sem recursos, a quadrilha Forró do Luar vai na base do improviso. Este ano, se apresenta repetindo as roupas do ano passado. Apenas a noiva deve ganhar um vestido novo, porque o corpo cresceu um pouco dos 17 para os 18 anos e não vai dar para dançar com ele.

 Esta semana, os meninos e meninas de Massaranduba vão participar de duas festas juninas, uma no Centro Histórico e outra em Periperi. Marcelly Barreto está em duas quadrilhas, a de Massaranduba, onde é uma das mais experientes, e a Capelinha do Forró, onde é das mais novas.

Com 18 anos completados em 12 de junho último, Dia dos Namorados, Marcelly é a noiva no enredo da Forró do Luar. Quer dizer, não é propriamente um enredo, mas uma mescla das histórias que a quadrilha contou nos últimos anos.

Para ela, é muito bonito poder se expressar através da festa e das músicas juninas. "Você se entrega com a dança, com a energia da quadrilha. É encantador demais para quem faz parte", afirma a jovem, que começou a dançar aos 13 anos.

 O envolvimento com as quadrilhas juninas começa quase sempre nas festinhas da escola, em que as crianças são levadas a pintar no rosto bigodes ou sardas sem saber exatamente do que se trata. Mas para que a história tenha continuidade, muitas vezes é preciso que haja raízes na comunidade.

A história da quadrilha Forró do ABC, por exemplo, começou há mais de 40 anos, no Pau Miúdo, com José Lima França, uma dessas figuras de bairro que conseguem congregar a vizinhança no seu entorno.

Quando a atual diretora, Mariete, assumiu a quadrilha após a morte de Seu Zé, ficou difícil conseguir um lugar para ensaiar e a entidade se mudou, então, para o Curuzu. Hoje, são 132 integrantes com idades que variam de 4 a 75 anos, de vários bairros e até de outras cidades. "Temos gente de Itapuã, de Brotas, do Subúrbio, de Feira de Santana e Alagoinhas", conta Mariete Lima.

Os tempos são outros. A história do homem que se casa com uma espingarda nas costas porque desonrou uma virgem, argumento original das quadrilhas, não cabe em um mundo cada vez mais feminista, em que as mulheres decidem por si mesmas.

E uma gravidez inesperada pode ser apenas um problema a mais para jovens que precisam lidar com uma sociedade cada vez mais violenta. Muito distante do lirismo junino da música Festa do Interior, de Morares Moreira e Fausto Nilo, que retratava: “Nas trincheiras da alegria o que explodia era o amor”. 

Atividades

Para quem realiza trabalhos sociais nos bairros, as festas juninas são apenas um dos diferentes eventos propostos ao longo do ano. Há uma gama de atividades, envolvendo teatro, dança, esportes, com as quais se tenta ocupar os jovens para evitar que sejam cooptados pelo tráfico de drogas.

As mudanças no mundo das quadrilhas juninas incluem ainda as novas tecnologias e o São João, é claro, não escapa do padrão TikTok. Há coreografias que viram conteúdos de biscoiteiros, como a internet taxa quem posta em busca de curtidas e compartilhamentos.

A pesquisadora Soiane Gomes, que também é integrante da quadrilha Forró do ABC, não é purista em relação às mudanças nas quadrilhas e evita tecer análises sobre as danças acrobáticas que circulam pela internet.

As quadrilhas juninas foram trazidas da Europa e cultivadas pela aristocracia do Império do Brasil, que em seus salões nobres bailavam ao som de valsas. Com a Proclamação da República e o consequente repúdio das classes médias urbanas às práticas que representassem as antigas metrópoles coloniais, as quadrilhas se tornaram um fenômeno caipira.

"Nessa transição também houve mudanças. As quadrilhas incorporaram aspectos da vida rural. Mesmo quando voltaram, posteriormente, para os grandes centros, junto com os trabalhadores que imigraram, mantiveram essas características caipiras", explica Soiane, professora de dança da Ufba.

Sua dissertação Arromba Chão que anima o salão: quadrilha e São João, Memórias, danças e transformações das quadrilhas juninas de Salvador foi publicada no ano passado e ela destaca que as quadrilhas soteropolitanas viveram seu período de apogeu entre as décadas de 70 a 90, com grandes eventos promovidos pelos meios de comunicação locais, como Ao pé da fogueira, Arraiá do Galinho e o Arraiá da Capitá, promovido por A TARDE. "Salvador chegou a ter mais de 80 quadrilhas ", afirma.

Arromba chão, aliás, é o nome da arena montada na Praça da Cruz Caída, no Centro Histórico, para receber quadrilhas juninas dentro da programação montada pela Associação do Centro Histórico Empreendedor (Ache), desde ontem até o próximo dia 26, que congrega boa parte dos comerciantes da área.

"Estamos muito felizes em trazer para o Centro Histórico as quadrilhas juninas de Salvador e mostrar à cidade essas quadrilhas com toda a sua beleza e alegria, desfilando depois de seis anos de jejum", afirma Simone Carrera, diretora geral de produção da Ache e idealizadora do evento.

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