MUITO
Quando fevereiro chegar
Confira crônica da Muito
Por Clara Cerqueira*
Desconfio que não é a primeira vez que digo isso por aqui, mas não importa, vou dizer de novo: se arrependimento matasse, eu estaria morta.
Quando o verão passado começou, juro que fiquei com medo do que estava por vir. Havia uma expectativa no ar, uma agonia e um rebuliço que eu não sabia bem onde iam dar. A cidade estava em polvorosa, festa de segunda a segunda, praias lotadas com chuva ou sol e turistas saindo pelo ladrão. Eu, assim como grande parte dos meus conterrâneos, entrei no espírito, botei a roupa de ir e não tirei mais até o carnaval.
Acho que por conta dos anos de pandemia, o povo de Salvador andava mais ansioso que o normal para a festa de fato começar. Não aquela coisa xoxa, do abre não abre, do tem não tem, do pode não pode, como no ano antecedente, mas a esbórnia propriamente dita, aquele carnaval sem limites, que começa no Senhor do Bonfim e não tem data certa para terminar. A igreja convencionou as quartas-feiras de cinzas, estamos sabendo, mas o baiano é inimigo do fim e sempre inventa a ressaca da ressaca da ressaca. Quem já passou por aqui sabe.
Mas o carnaval finalmente acabou e, como de praxe, era chegada a hora de começar o ano, de parar de trabalhar para pagar as dívidas de dezembro e começar a pensar no São João. Só que não, o povo simplesmente não queria ir embora. Olha, a festa por mim tudo bem, mas a praia lotada confesso que me deixou revoltada. Como é que pode a pessoa chegar no Porto da Barra num dia de quinta-feira comum e não ter lugar para botar o pé? Não dá, foi a minha gota d’água e, como não tenho nenhuma obrigação de ser discreta, todo mundo ficou sabendo da minha indignação. Comecei a falar para quem quisesse ouvir que as férias tinham terminado e que era hora de todo mundo voltar para casa. Até meus amigos, eu resolvi mandar embora. Que nada, o povo vem passar as férias em Salvador e resolve estabelecer morada, passa para fora!
Foi assim que num desses rompantes o moço que estava trabalhando no isopor da praia confirmou minhas suspeitas com uma declaração jocosa: “Tá que nem eu, que vim passar uma semana e já tô aqui há seis meses”, risos. Na minha maluquice, mandei ele embora também, mas me arrependo. Tamanha não foi minha tristeza, quando cheguei domingo no Porto e encontrei a praia vazia, a maré alta e fria e um céu que parecia que ia abrir, mas não abriu nunca. Os amigos que chamei, não estavam na cidade, voltaram para casa ou foram ser turistas em outro lugar. Em resumo, eu estava sozinha como havia desejado, nem o sol ficou para me fazer companhia.
É claro que nesse momento veio aquela vozinha interior para debochar de mim e apontar o fato de que calada eu já estou errada. Mas, por sorte, até em dia feio, nessa praia tem gente bonita. Após aceitar minha derrota vergonhosa, peguei uma cadeira, um sombreiro e uma mesa e fiquei ali, observando um jovem de boa saúde deslizar com sua prancha tamanho mini, da areia para água e da água para areia, indo e voltando ao sabor das ondas. Abro aqui um parêntese para dizer que a juventude é mesmo uma beleza e agradecer a boa alma que inventou os óculos escuros, me proporcionando um dos maiores prazeres da vida, o de observar sem ser observada.
Aproveito também para me desculpar com meus queridos amigos e pedir encarecidamente que eles voltem. Podem até morar se quiserem, contanto que não tragam mais gente junto, porque aí já é demais.
*Escritora
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