CRÔNICA
Que não se repitam as misérias velhas
ró-Ã
Por ró-Ã*
Outro ano chegou ao fim, rançoso, porque teve início com nossa esperança de que um novo período de 365 dias trouxesse somente satisfações. Talvez a gente fique achando que aspirar a coisas boas envie vibrações ao Cosmos e elas retornem feito bumerangues.
Tenho mais passado que futuro e me agrada o saldo positivo: as delícias radiosas superam as porradas ferozes, e nunca fiz mal a ninguém deliberadamente. Cultivo planos para 2025, responsáveis por pequenos porém firmes movimentos diários: darei seguimento à luta aguerrida contra as traças que, da noite pro dia, aparecem penduradas no teto, mas já estou quase totalmente livre delas. Que vão pender de lugares sobre e sob olhos menos atentos, porque chez moi não se criam: é vassoura certa e implacável.
Apesar dos planos, nunca fui de fazer lista de intenções para o Ano Novo. Sempre achei uma bestagem, como se pudéssemos determinar mudanças de comportamento a partir de marcadores temporais. Nossas transformações se fazem de maneira orgânica, dependendo exclusivamente das vísceras nos comandando o corpo. Se alguma imprescindível pifar, por doença ou acidente, danou-se.
Eu já tinha uma crônica pronta para publicação, agora adiada para o próximo mês. De modo que, no meu caso, 2025 começa com uma alteração de planejamento. É que fiquei invocada com o assassinato do CEO da maior seguradora de saúde dos EUA, ocorrido dia 04/12 no centro de Manhattan, à luz das quase 7 da manhã. Luigi Mangione, então anônimo, me lembrou Raskolnikov e outros criminosos por quem desenvolvemos um afeto positivo. A onda que o transformou em herói não tardaria nem me surpreendeu.
Cada um dos três cartuchos de bala encontrados no local continha uma palavra: Negar / Retardar / Descartar. Praticamente todo o mundo sabe que aquele país parece se orgulhar de possuir um dos piores sistemas de saúde do planeta. Quem não tem plano particular, caríssimo, ou vai morrer à míngua quando adoecer ou de susto quando a conta chegar. Vi certa vez um documentário em que uma mulher sofrendo um AVC urrava aos familiares que não chamassem ambulância!!! - à época, pagaria US$ 2 mil apenas para ser levada ao hospital.
São milhões de pessoas se sentindo abandonadas ou exploradas por empresas que só visam o lucro e se dão ao desplante de alegar isso e aquilo para negar atendimento a quem contrata seus serviços por preços astronômicos. Serviços com que o Estado deveria arcar, incluídos nos tributos exigidos dos cidadãos.
Todo mês de dezembro, um pequeno grupo de amigos nos reunimos para um acarajé em torno da querida Andrea, residente em NYC há vários anos e já safa na malandragem de pegar o melhor vagão do metrô. Ano passado, um deles nos contou um caso ocorrido com um estadunidense para quem dava aulas de português:
Numa visita ao Ilê Aiyê, o rapaz se feriu. Levado a um posto do SUS, recebeu os cuidados e, ao final, metendo a mão honesta no bolso, quis saber quanto custara o tratamento. Ficou atônito ao ser informado de que não precisava pagar nada. De volta aos Estados Unidos, fez dessa experiência inédita o tema de seu TCC.
Meu falecido marido, nativo de Michigan, viveu a vida inteira nessa lógica de que é natural abrir a carteira para enriquecer seguradoras de saúde, a fim de obter (ou não) o que nos é de direito. Nascem e crescem assim, desconhecendo outra realidade. Dentro do aclamado American Dream, só não se paga ainda pelo ar nos insuflando os pulmões, mas logo vão dar um jeito nisso.
Talvez seja postergado agora, dado o gesto de Mangione. Andei lendo que as companhias de assistência médica lá imediatamente se tornaram mais boazinhas, por deferência ao assassinato do CEO.
Confesso que não me abalou o trágico fim do executivo, embora não celebre a morte de ninguém - ainda que o sujeito comungue com um sistema totalmente indiferente à desgraça alheia. Entretanto, alguém que se torna milionário acreditando que dólares valem mais que vidas se expõe à violência de um indivíduo que tome para si a dor de tantos, disposto a sacrificar sua liberdade por essa causa.
No fim das contas, o CEO, para quem a extinção de outros significava bônus, alcançou equivalência ao ter sua vida subtraída - o que dinheiro nenhum pode compensar. Meu sincero pesar à viúva e filhos órfãos, mas a banda tocou conforme a regência do maestro.
*Ró-Ã é autora do livro Dor de facão & Brevidades
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