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“Quem alimenta os meios urbanos é a agricultura familiar”

Empresário e ativista socioambiental Wilson Brandão teve uma ideia um tanto inusitada

Publicado segunda-feira, 03 de janeiro de 2022 às 06:00 h | Autor: Bruna Castelo Branco

Depois de perceber que o terreno ao lado do prédio em que morava, na Pituba, virou um lixão, o empresário e ativista socioambiental Wilson Brandão teve uma ideia um tanto inusitada: e se a gente tirar todo esse entulho daqui e transformar o espaço em uma horta solidária? Então, ele entrou em contato com a Prefeitura de Salvador e lançou o projeto Hortas Urbanas Salvador, que ocupa um ex-terreno baldio de mil metros quadrados. Mas o trabalho não é – e nunca foi – simples:

“Foi muito difícil no início porque a horta não era fechada, então, a gente plantava e quando chegava no outro dia, só via o buraco”. Em 2017, o projeto de Wilson saiu no programa Estrelas Solidárias, da TV Globo, e ganhou o Brasil. “Nós divulgamos isso a nível nacional. No outro dia, o meu telefone não parava. Gente de Belém, Brasília, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás… todo mundo ligou querendo saber como foi, como eu fiz. E eu fui dando orientações. A importância do projeto daqui de Salvador é essa. Não foi bom só para Salvador, foi bom para o Brasil todo”. Nesta entrevista, o ativista fala sobre alimentos orgânicos, mudanças climáticas, alerta sobre o perigo de usar adubos químicos, relembra como foi a fundação do projeto e denuncia a falta de apoio e incentivo para manter o projeto de pé e fazê-lo crescer: “Não temos apoio de ninguém, nem de empresas, nem de órgãos públicos”.

Primeiro, queria saber um pouco mais da sua história. De onde veio a inspiração para criar o Hortas Urbanas Salvador?

Olha, na verdade, eu era empresário, aí um dia eu estava na janela do meu prédio e, por acaso, eu vi um cara atravessando a rua com um carrinho de mão cheio de entulho para jogar em um terreno que a gente tem aqui do lado. Naquele momento ali me deu uma coisa: “não é possível que vão continuar jogando lixo aí, não é possível. Vou ter que fazer alguma coisa porque não vejo ninguém fazer”. O poder público não fazia, ninguém fazia. E, na verdade, o que tinha aqui era uma área que foi transformada em um lixão. Jogavam todo tipo de lixo: fazia uma reforma no apartamento, jogava ali. O armário não prestava mais, jogava ali. O vaso sanitário trocou? Jogava ali. E aí, ia acumulando lixo, dava inseto, rato. Então, foi uma coisa que surgiu da minha cabeça e eu tomei para o meu coração. Eu mudei a minha vida toda, fechei a minha empresa.

Era uma empresa de quê?

Para você ver (risos). Eu continuei um tempo com a empresa, mas, todo dia que eu ia abrir a porta eu me sentia mal. O que é que eu vendia? Eu vendia material de limpeza e químicos. Então, eu me sentia mal porque estava indo de encontro a tudo aquilo que eu queria fazer dali para a frente com esse projeto da horta, que é trabalhar com produtos orgânicos, o não uso de agrotóxicos, de adubos químicos… trabalhar com agricultura orgânica. Praticamente eu me aposentei para desenvolver esse trabalho.

Como você fez para executar o projeto?

No final de 2015 para 2016 eu levei esse projeto para a prefeitura. Passamos quase um ano nessa coisa de “vamos fazer, não vamos fazer”. Até que eles resolveram fazer, e hoje faz parte do Salvador 360 – Cidade Sustentável. Faz parte do plano gestor da prefeitura. E, daí para a frente, a prefeitura fez diversas hortas pela cidade, mas eu não participei dessa questão das hortas, foi um trabalho deles. No total, segundo a prefeitura, eles fizeram 63 hortas. Mas o meu projeto é diferente do que o que eles estão fazendo, ele visa a questão não só da alimentação saudável, mas produzimos alimentos aqui para doar para casas de idosos carentes. Esse é o nosso propósito, foi feito desde o início assim. É uma horta solidária, não é uma horta comunitária em que as pessoas plantam para levar para as suas casas. O projeto visa não só a produção de alimentos, mas também a questão ambiental, a questão alimentar, a questão de evitar resíduos, compostagem… temos o meliponário de abelhas nativas. Também recebemos muitos professores de universidade, escolas infantis, alunos de curso médio com os professores. Tem três pesquisas que estão sendo feitas dentro do projeto.

De primeira, quando você começou, como a comunidade recebeu a ideia?

Quando a prefeitura resolveu fazer, começamos a tirar os entulhos. Foram 60 toneladas de lixo numa área de mil metros quadrados, que é a área da horta. A gente tinha aqui um foco enorme de mosquitos, ratos. Então, a gente limpou a área, tirou uma parte do solo para evitar contaminação. A prefeitura deu umas 40 mudas para começar e, daí para a frente, a gente tocou o barco. Mas, até então, não tinha ninguém, era só eu. Quando as pessoas viram limpando a área que estava há anos abandonada, cheia de lixo, vieram perguntar. E aí algumas pessoas daqui da região começaram a aparecer para participar, começamos a ter alguns voluntários. No início, foram umas seis pessoas. Foi muito difícil no início porque a horta não era fechada, então, a gente plantava e quando chegava no outro dia só via o buraco. Era um problema. Mas, com o tempo, veio a televisão e começaram a vir pessoas de outros bairros. Eu cheguei a ter mais de 30 voluntários no projeto, e tiramos muito alimento daqui para doar. E então chegou essa tal dessa pandemia e acabou com tudo. Os voluntários desapareceram e eu voltei a ter os meus seis voluntários iniciais. No início, seis era tranquilo. Mas, hoje, com a área toda plantada… não dá. O mato cresce, não consegue fazer mais nada. Está muito difícil manter o projeto hoje. Recentemente, roubaram toda a parte elétrica da horta, estou sem energia, a irrigação não está funcionando tenho de irrigar com mangueira quase mil metros de horta, duas ou três horas para molhar tudo. Eu consegui uma doação de cabo de novo, mas não temos recursos, somos um projeto sem fins lucrativos. Não tenho quem faça e não tenho recursos para fazer.

E a prefeitura agora não se envolve mais?

É até complicado para mim falar disso. Hoje, a maneira que a secretaria tem de pensar em cidades sustentáveis e resiliência, como eles dizem… a nova gestão tem um pensamento um pouco diferente do meu. Eu não consigo mais ajuda deles em nada, tudo o que eu falo ninguém aparece para fazer.

 Há também o programa de Hortoterapia no projeto. O que é “hortoterapia” e como funciona?

Veja bem o que é que a gente sentiu aqui: a maioria dos nossos voluntários são idosos, em torno de 60 para cima. Então, muitas pessoas estão vivendo a solidão. Tem a solidão, a síndrome do pânico, depressão… porque eles estão vivendo o abandono da família. Têm filhos, mas eles não vêm visitar, não aparecem. Têm a vida deles e não vão ver os pais. E isso tudo traz alguns problemas, eu tive experiências aqui, por exemplo, com um senhor que andava bebendo. A filha teve que arrombar a porta duas vezes do apartamento e encontrou o pai desmaiado. E então ele passou a fazer parte aqui do projeto e mudou a vida dele, a ponto de a filha dele me abraçar um dia e dizer: “Poxa, eu queria lhe agradecer por o que você fez pelo meu pai. Você salvou o meu pai”. E eu não me sentia dessa forma. Então, comecei a perceber que trabalhar com a terra, com as plantas, é uma terapia.

E como está o Verdejar nas Comunidades? Você pode falar um pouquinho sobre esse projeto?

Tenho esse projeto aqui pronto, procurei a Secretaria do Meio Ambiente, Secretaria da Agricultura, todo mundo achou maravilhoso, mas não deu apoio nenhum. Eu tenho o projeto pronto. É um programa que desenvolvi, uma forma simples de levar a agricultura para as comunidades através de um gibi. A gente quer fazer a comunidade passar a produzir seus próprios alimentos, fomentar a economia solidária, a socialização. Você deixa de ir ao mercado comprar o tomate, por exemplo, porque já está produzindo em casa, então, já não traz sacola, diminui os resíduos. Tem muita coisa envolvida. E a ideia é que as famílias sejam acompanhadas por uma equipe de estudantes universitários remunerados, estagiários, para acompanhar a implantação do programa. E, ao mesmo tempo, o órgão que estiver financiando o programa dá insumos, como terra, adubo, semente, mudas, e os alunos estariam junto com a comunidade implantando o programa. Não adianta você só dar o gibi. Tem que ter o insumo e o acompanhamento para a coisa acontecer. E aí, eu vou voltar para as hortas da prefeitura. Fizeram as hortas e largaram lá. Dessas 63, acho que só tem, no máximo, 10 funcionando*. Cadê o acompanhamento? [*A reportagem entrou em contato com a Secretaria Municipal de Sustentabilidade, Inovação e Resiliência, Secretaria Municipal de Comunicação e a Secretaria Municipal da Fazenda para comentar esse dado, mas não obteve resposta até o fechamento desta matéria].

 Durante a pandemia, vimos que em algumas cidades houve uma crise de abastecimento de alimentos nos mercados. Na greve dos caminhoneiros, em 2018, aconteceu o mesmo. Você acha que investir em hortas urbanas pode ajudar a amenizar, ou até evitar, crises como essas?

Olha, deixa eu te falar uma coisa. A Organização Mundial para a Alimentação e Agricultura (FAO) já vem há muitos anos chamando atenção para isso. Em algumas décadas, vai faltar comida nos meios urbanos. Vou te explicar o por quê: quem alimenta os meios urbanos é a agricultura familiar. É o pequeno, o médio agricultor. O grande agricultor produz alimentos para a indústria e para a exportação. Você come esse alimento processado, não in natura. Mas o que acontece com o agricultor familiar? Ele compra o terreno na mão de uma pessoa, sem escritura, e ele está lá produzindo o alimento e vendendo para o atravessador que busca e traz para a Ceasa. Na Ceasa, vão comprar e vender para você. Olha o percurso que esse alimento faz. Então, vai agregando valor em cima desse alimento até ele chegar até você. Mas, aquele agricultor não consegue financiamento, porque não tem a escritura. Então, o futuro é o seguinte: essa agricultura familiar vai estagnar. Mas, a população está crescendo, o consumo está crescendo. Aí vem outro problema que acontece hoje: as famosas fazendas urbanas. Sabe o que é isso? Hidroponia, que é a produção de alimentos com água. Aí você pensa: “Poxa, que massa. Limpo, né? Saudável”. Só que não, é química, pura química. É veneno. Você acha que é saudável comer NPK (fertilizante químico feito de nitrogênio, fósforo e potássio) líquido? Ninguém está se preocupando em chamar atenção para isso, e isso está crescendo no mundo todo.

Por que você acha que não se fala muito sobre isso?

Porque o cara que investe hoje em sementes para a hidroponia diz que, na verdade, não são produtos químicos, e sim nutrientes para as plantas. Quem é que produz as sementes e as substâncias nutricionais para as plantas? São os mesmos que são donos das grandes farmacêuticas. O que é que acontece: ele lhe dá uma comida que você pensa que é saudável, você come, fica doente, vai para o médico, compra remédio. De quem? Do mesmo cara que fez a semente. Se você chegar hoje no supermercado e não estiver reparando nas embalagens, tudo tem lá “hidropônico”. E o que acontece quando você come químicos? Você deixa o seu sangue mais ácido. E o sangue ácido está sujeito a bactérias, fungos, mutação celular, câncer, vírus. Mas eles não estão preocupados com isso porque eles têm o remédio para você. E é mais caro. Você ainda paga mais caro, e por um alimento venenoso.

De uns anos para cá, muitos agrotóxicos antes proibidos foram liberados para uso no Brasil. No Hortas Urbanas Salvador, os alimentos são todos orgânicos. Você pode falar da importância de consumir produtos orgânicos? Como esses agrotóxicos podem afetar a nossa saúde a longo prazo?

Essa questão dos agrotóxicos é justamente a produção em grande escala. A gente fala em agrotóxico, mas o que é agrotóxico? É aquilo que é pulverizado para matar inseto. O que é herbicida? É para matar as ervas daninhas. E qual é o pior deles? O adubo químico, e ninguém fala. Aquele NPK que é usado em forma de água na hidroponia, é usado em grãozinhos para as plantas da terra. E aí, além de estar contaminando o solo, está contaminando o lençol freático. Não existe adubo orgânico disponível no mercado, e não existe porque não há incentivo algum. Hoje, em São Paulo, tem quatro grandes pátios de compostagem, com resíduos orgânicos de supermercados e feiras livres, que geram grandes quantidades de composto orgânico, ou seja, adubo. Mas, até então, não existia nenhuma divulgação e incentivo para que as pessoas pudessem produzir. Inclusive, estou fazendo o primeiro pátio de compostagem de Salvador, em uma área de 40 metros quadrados. Estou tentando, mas, sozinho, está difícil. A gente quer compostar os resíduos dos restaurantes vegetarianos e veganos da região, e lançar o sistema de “baldinho residencial”. A pessoa adquire o baldinho, paga uma taxa mensal barata para a gente recolher o resíduo em sua casa, trazer para cá e transformar em composto. Em contrapartida, você recebe o composto ou uma mudinha de planta todo mês. Essa é a ideia, mas está parada porque não temos apoio de ninguém, nem de empresas, nem de órgãos públicos.

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