ABRE ASPAS
Racismo no futebol não vai acabar porque é lucrativo manter o silêncio
Jornalista e comentarista da TV Globo, Marcos Luca Valentim defende que o combate ao racismo no futebol depende da ação direta dos atletas

Por Pedro Hijo

“Não se combate o racismo no futebol porque não há interesse em fazer isso”. É o que afirma o jornalista e comentarista Marcos Luca Valentim, que vem a Salvador no próximo dia 7 para discutir sobre discriminação racial no esporte na 4ª edição do Encontros Negros, que ocorre nos dias 6 e 7 de novembro no Teatro 2 de Julho [Entrada gratuita – ingressos pelo Sympla].
Na TV Globo, Marcos ajudou a criar o primeiro grupo étnico-racial da emissora, formado apenas por jornalistas negros. Nesta entrevista, o carioca, quase baiano, defende transformar o debate em ação: “Se os jogadores decidirem não entrar em campo enquanto o racismo continuar, tudo vai se mover”.
O que representa para você participar dessa edição do Encontros Negros?
Salvador sempre teve a questão racial no sangue. É o local mais negro fora da África, então é importante reafirmar um território e também um tema. As pautas raciais são cíclicas. Já não se fala tanto sobre elas quanto se falava após 2020, por exemplo. Há, inclusive, uma queda mercadológica no interesse pela diversidade racial. É importante reafirmar que o assunto racial e o Encontros Negros não são eventos pontuais, mas compromissos permanentes, sem data de expiração. Outro ponto é que estar em Salvador é muito especial para mim, também por uma razão pessoal. Meus pais moravam na capital baiana, e eu nasci no dia 31 de dezembro. Eles vieram para o Rio de Janeiro às vésperas do meu nascimento. Fui gerado em Salvador, mas acabei nascendo no Rio por um acaso do destino. É por tudo isso que participar desse encontro é tão simbólico.
Como você considera o papel da comunicação e do jornalismo na transformação do diálogo em ações práticas?
Gosto de lembrar uma frase do [ativista e líder afro-americano] Malcolm X quando falo da minha profissão: “Se a gente não tiver cuidado, a imprensa faz você odiar o oprimido e amar o opressor".
Durante muito tempo, muitas histórias foram distorcidas ou até inventadas pela imprensa tradicional no mundo todo. A gente cresceu consumindo apenas um lado da história. Com o advento da internet e do celular, passamos a acessar outros tipos de diálogo e outras verdades.
E, como comunicador, vejo o encontro de pessoas negras também como uma forma de comunicação, um espaço para falar a verdade.
Quais foram os maiores desafios e também as maiores conquistas na sua trajetória?
Acho que os desafios que enfrento são os mesmos que qualquer pessoa negra enfrenta no dia a dia. Habitar o corpo que a gente habita e pensar as coisas que a gente pensa já é, por si só, desafiador.
Ainda assim, não posso dizer que não tive ferramentas para fazer o que considerava necessário. Em 2017 e 2018, conheci três mulheres que trabalhavam comigo na Globo: Renata Novaes, Ida Santos e Consuelo Cruz. Elas estavam criando, de forma embrionária, um grupo no WhatsApp para reunir pessoas negras da emissora. Logo me colocaram no grupo. Nós quatro passamos a abordar colegas negros pelos corredores, convidando-os a participar. Aos poucos, o grupo cresceu, marcamos encontros presenciais e percebemos quantos de nós havia ali dentro. Começamos a nos reunir com frequência para conversar e trocar experiências, e a própria Globo percebeu esse movimento. A empresa acabou chancelando o que já estava acontecendo de forma orgânica, e dali nasceu o primeiro grupo étnico-racial oficial da emissora. Esse movimento ajudou a propiciar um diálogo mais amplo sobre o tema. Os desafios continuaram até chegarmos ao Ubuntu Esporte Clube, projeto que criamos em 2020, formado apenas por jornalistas negros. A ideia é falar de esporte, não apenas quando há casos de racismo, mas sobre o esporte em si. O maior desafio tem sido apresentar nossas ideias de forma estratégica, para que se entenda que elas não são apenas legítimas, mas urgentes. Ainda assim, a Globo nunca freou nossas iniciativas. Pelo contrário, ofereceu ferramentas para realizarmos encontros.
Na prática, o que ainda falta para que o futebol deixe de ser um espelho do racismo do país?
O futebol é o esporte que mais movimenta dinheiro no Brasil. Há recursos, infraestrutura e conhecimento suficientes para combater o racismo de forma séria e comprometida.
Já existe entendimento jurídico sobre o que é injúria racial e o que é racismo, há câmeras nos estádios, imagens, notificações e provas de tudo o que acontece. Temos todos os aparatos e ferramentas necessários. Mesmo assim, o combate efetivo não acontece. E isso acontece porque não se quer. Essa é a grande verdade. Combater o racismo não é interessante para quem detém o poder, porque significa se indispor com marcas, patrocinadores e autoridades.
É mais fácil estampar faixas contra o racismo na entrada dos jogos, erguer banners e fazer campanhas sazonais, principalmente em novembro. Mas e o resto do ano? A CBF, por exemplo, usa o lema “com racismo não tem jogo”, mas ele não se sustenta na prática. Sempre tem racismo e sempre tem jogo. É contraditório. Quando o jogador Vinícius Júnior sofreu violência racial e ameaças de morte na Espanha, a entidade poderia ter cancelado a partida marcada lá. Mas o jogo aconteceu porque “já estava vendido”. Esse é o ponto: se indispor com o poder tem um custo, e poucos estão dispostos a pagar por ele. Não se combate o racismo no futebol porque não há interesse em fazer isso.
Como você acredita que os atletas negros podem usar essa visibilidade para além da denúncia?
Sou uma pessoa cética e uso pouco a palavra esperança, mas, se há algo que me faz acreditar em mudança, é o comportamento dos jogadores. Eles estão mais conscientes, o diálogo está mais aberto e lúcido. Recentemente, no Paraná, o jogador Paulo Vitor, o PV, foi chamado de “macaco” e reagiu dando um soco no adversário que o ofendeu. Não cabe discutir se foi a atitude ideal, mas o episódio mostra que ele reconheceu o ataque e não ficou passivo diante dele. Minha esperança está justamente aí, nos jogadores.
Mais do que autoridades ou federações, os jogadores têm o poder de mudar o racismo no futebol. São os protagonistas do espetáculo, os que proporcionam o show. E, se têm o poder de fazê-lo acontecer, também têm o poder de parar com isso. No momento em que decidirem não entrar em campo enquanto o racismo continuar, tudo vai se mover.
Não porque as pessoas terão, de repente, um surto de consciência moral, mas porque mexerá com o bolso. Não acredito mais que as autoridades mudem por pura evolução humana. Seria lindo se fosse assim, mas, se a mudança vier pelo medo de perder dinheiro, já é um avanço. O exemplo da NBA em 2020, quando rodadas foram paralisadas após o assassinato de George Floyd, mostra isso. Os jogadores se recusaram a jogar, foram às ruas, e o impacto foi enorme. O contexto do Brasil é diferente, claro, mas a lição é válida: eles perceberam que detêm o poder do espetáculo. Quando 30 ou 40 jogadores se recusam a jogar, não há força que os obrigue. É impossível punir todos.
Embora o futebol concentre grande parte das discussões sobre racismo, outras modalidades também sofrem com essa questão...
Sim. Porque o esporte é, por essência, negro. As modalidades mais populares e as maiores expressões esportivas do mundo têm raízes, corpos e talentos negros. No entanto, cada esporte mantém seus próprios entraves e barreiras. No Brasil, costumo dizer que o único esporte realmente democrático e popular é o futebol. Já esportes como vôlei e basquete, os mais praticados depois do futebol, exigem estrutura e equipamentos, o que os torna menos acessíveis. Por isso, vemos poucos atletas negros nessas modalidades. Quanto mais famoso é um esporte, mais ele tende a reproduzir o racismo. Existe uma dimensão mercadológica nesse processo. Na natação, por exemplo, o Brasil só teve até hoje um nadador negro medalhista olímpico: Edvaldo Valério, baiano, bronze em Sydney 2000. Ele e outros atletas negros relataram ouvir repetidamente que “nadar não é coisa de negro”. Há também fatores sociais profundos. A população negra, em geral, não mora próxima à praia, especialmente no Rio de Janeiro, onde o litoral é um espaço historicamente associado à elite branca. Sem acesso ao mar, aos clubes ou às aulas, como aprender a nadar? O mesmo vale para esportes como ginástica, que dependem de estrutura e mensalidades. Esse quadro não é isolado do Brasil. O esporte mundial, especialmente no Ocidente, carrega as marcas da escravização e das hierarquias raciais que ela impôs.
Mesmo em 2025, ainda precisamos explicar o óbvio: que existe racismo, que a presença negra é minoritária por razões históricas, que as cotas raciais são necessárias. O esporte reflete a sociedade e sofre com o mesmo retrocesso intelectual que tomou conta do debate público nos últimos anos.
Continuamos presos a discussões que já deveriam estar superadas, e isso impede o avanço. Enquanto for necessário justificar o que é evidente, o racismo continuará encontrando espaço nos campos, nas quadras, nas piscinas e nas arquibancadas.
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