MUITO
Rainhas do Centro celebra a arte transformista no Teatro Vila Velha
Projeto surge como uma iniciativa para celebrar a cultura LGBTQIAP+
Por Vinícius Marques
Em meio à efervescência cultural da capital baiana, um movimento artístico tem lutado cada vez mais para manter seu espaço e visibilidade: a cena drag queen e transformista do Centro de Salvador. Com seus brilhos, cores, músicas e performances marcantes, essas artistas transformam os palcos e as ruas em verdadeiros espetáculos de diversidade.
Nesse contexto, o projeto As Rainhas do Centro - Arte Transformista no Burburinho da Cidade surge como uma iniciativa para celebrar a cultura LGBTQIAP+ e a relação íntima que essa comunidade tem com o bairro central da cidade.
A semana de atividades artísticas e formativas, que acontece entre os dias 23 e 29 de abril, reúne algumas das mais icônicas personalidades da cena drag queen e transformista da região. Entre as estrelas do elenco estão Bagageryer Spielberg, Rainha Loulou, Valerie O’Rarah, Ginna D’Mascar, Bia Mathieu, Dandara e Beatrice Papillon.
Durante a programação, o público vai poder participar de oficinas de maquiagem, produção e figurino, que acontecem em diferentes pontos do Centro de Salvador, além de assistir a um espetáculo teatral e musical.
O ponto alto do projeto será essa apresentação da revista musical Rainhas do Centro, que vai acontecer no Teatro Vila Velha, no dia 29 de abril, às 19 horas, com ingressos a partir de R$ 10 (meia-entrada).
Revista musical
O coordenador artístico e também performer do espetáculo, Miguel Campelo, que na ocasião se apresenta como a drag queen Beatrice Papillon, explica que a revista musical significa um espetáculo de variedades, como era o teatro de revista, gênero teatral popular do século 20.
Nesse gênero, os espetáculos consistem em esquetes de caráter crítico e números musicais com figurinos extravagantes, mas sem um fio condutor de ação. Ou seja, não há propriamente um enredo a seguir. Cada uma subirá ao palco e apresentará seu talento.
Miguel conta que o público costuma ver artistas transformistas e drag queens por uma ótica somente do show e sem uma relação estabelecida com a história do teatro, mas, para ele, se observarmos bem, o que essas artistas fazem é, sim, teatro.
“Você tem todos os elementos necessários, você tem o ator ou atriz, tem a personagem, a dramaturgia, seja uma canção, texto ou um improviso com a plateia, tem figurino, maquiagem, música, dança, coreografia, uma porção de coisas, a própria produção, enfim, puro teatro”, detalha o artista.
Comunidade
Ator e diretor de teatro de rua, Miguel chegou em Salvador em 2019 e foi imediatamente recebido pela comunidade LGBTQIAP+ do Centro. Sua drag queen, Beatrice Papillon, é a mais jovem da turma, nascida em 2015. Mesmo assim, Beatrice logo se enturmou e hoje já faz parte desse grande grupo.
“O projeto nasce da relação dessa arte com a região. Então, essas estrelas, algumas com mais de 30 anos de show, outras com 20 anos, mas todas atuando nessa região central da cidade, formam essas rainhas da Carlos Gomes”, diz Miguel.
Na performance de Beatrice, o público pode esperar música ao vivo, com paródias onde as letras das músicas comentam assuntos da ordem do dia. Para o artista, toda drag queen, de alguma maneira, é uma cronista do seu tempo e, portanto, suas performances são também políticas.
“Eu tenho uma pegada, vamos dizer, politizada, no stricto sensu da palavra. Gosto de comentar a vida política do país e busco sempre uma teatralidade, que é inerente e natural também do meu próprio caminho”, explica o intérprete de Beatrice Papillon.
Entre os veteranos do espetáculo está Val Santos, que dá vida a drag queen Valerie O’Rarah, um dos grandes nomes da cena drag queen soteropolitana. A drag já existe há 20 anos e é uma das referências quando se fala das artistas que se apresentam na região.
É de Val a ideia para o principal concurso de drag queens em atividade na cidade, o Super Talento, que neste ano chega à 12ª edição. A apresentação, é claro, fica a cargo de Valerie, que também pensa nos temas e provas de cada etapa do concurso.
O concurso já apresentou para a cidade diversas gerações de drag queens, muitas nascidas no próprio evento e que ainda hoje atuam na cidade. A ideia para o Super Talento surgiu de forma despretensiosa e hoje faz parte do calendário LGBTQIAP+ soteropolitano.
“Começou mesmo de uma forma muito despretensiosa, a gente querendo fazer com que a pauta fosse diferente, mas de repente a gente viu que ganhou corpo, que é necessário para a cena, para dar destaque e oportunidade, para reconhecimento e valorização acima de qualquer coisa”, conta.
Além do Super Talento, a drag Valerie também apresenta no final do ano outro concurso, o Melhores do Ano, que como o nome já diz, busca premiar artistas que foram excelência na cena drag e transformista da cidade.
Mas para além dos concursos, Val também empreende e fundou o Carmén Lounge Bar, atualmente um dos únicos bares LGBTQIAP+ em atividade na região da rua Carlos Gomes, lugar que no passado era o reduto da diversidade na capital.
“Infelizmente, a Carlos Gomes hoje só tem dois bares LGBT, o Âncora do Marujo e o Carmén. São as duas casas em que de terça, ou de quarta a domingo, têm os show de drag queens. A diferença de 20 anos atrás era que tínhamos várias casas, várias boates”, lembra Val. “A Carlos Gomes é historicamente a rua mais colorida dessa cidade, do que aconteceu e do que ainda acontece. Querendo ou não, as duas casas mantêm a responsabilidade de ter esse espaço vivo, ter essa rua como uma rua LGBT”, acrescenta.
No entanto, nem tudo é tão simples e alegre como parece ser. Val afirma que manter um estabelecimento como o Carmén tem, sim, seus desafios. A casa foi inaugurada em março de 2020, pouco antes da pandemia ser declarada, e passou muito tempo fechada. Hoje, busca se reestabelecer na região.
"É muito aprendizado, muita superação, aprender a administrar, que é o essencial. É preciso maturidade e um pensamento mais frio para você parar, pensar, traçar estratégias para poder conseguir um êxito lá na frente. E essa história de empresário é muito mais close porque quem vê o close não vê o corre”, brinca o artista.
Atualmente, Valerie O’Rarah prepara seu número para o dia 29, que contará com um resgate de toda a carreira da drag, que é muito ligada à ancestralidade, e já há algum tempo sua performance é voltada para isso.
“Vou fazer uma releitura de um dos números que fiz há algum tempo agora no Rainhas do Centro. Vou aproveitar essa oportunidade para trazer toda a maturidade da personagem e acho que vai ser uma performance muito emocionante”, promete.
Sem spoilers
Completando 22 anos como drag queen em 2023, o estilista, maquiador e bailarino Luiz Santana se junta ao grupo como Rainha Loulou. Na performance do dia 29, o público vai encontrar Loulou apresentando um número de dança flamenca ao som de uma música da cantora Cher, mas é somente isso que ela compartilha, para não dar spoilers.
Luiz lembra que quando começou a se apresentar como drag, no começo dos anos 2000, o cenário no Centro era de mudança. Além dos muitos bares, era também um lugar onde existiam mais boates, onde as drags queens também podiam se apresentar. Hoje, não é mais assim.
“Tinha a boate Mix Ozone, tinha a Holmes. E antes de ser uma drag queen, eu assistia as outras como plateia mesmo, achava incrível o trabalho. A vida no Centro era muito mais efervescente na noite do que é hoje e eu ficava encantado com aquilo”, conta o estilista.
O artista que dá vida a Rainha Loulou, no entanto, não lamenta profundamente a mudança que ocorreu no local. Para ele, isso reflete uma evolução da comunidade, que não precisa mais se reunir num “gueto”, o que acontecia no passado por conta da violência da época.
“Hoje em dia não precisa mais, hoje em dia todo mundo está em todo lugar. Surgiram muitos bares nos bairros e muito gay jovem hoje em dia se diverte no seu próprio bairro, porque tem sempre um bar que tem show de drag, como em São Caetano, na Cidade Baixa e etc”, comenta.
Ainda assim, Luiz faz questão de continuar se apresentando como Loulou no Centro, região onde sua drag queen nasceu e durante duas décadas tem se apresentado. “O Centro não pode acabar, e eu, enquanto drag, faço a minha parte na divulgação e na manutenção dessa coisa de sempre ter show lá, de segunda a segunda”, afirma.
Veterana
Há ainda mais tempo em atividade, o ator transformista André Luiz se apresenta como Bagageryer Spielberg há 37 anos. Veterana entre as veteranas, Bagageryer é apresentadora dos concursos Miss Gay Bahia e Miss Gay Brasil - Versão Bahia, que assim como o Super Talento de Valerie, também já faz parte do calendário LGBTQIAP+ da cidade.
Além das apresentações de concursos e shows dublando suas artistas preferidas, como Maria Bethânia, que é a grande inspiração de Bagageryer, a drag queen também tem muita proximidade com os clubes de senhoras de 60 anos ou mais.
“Faço shows nas casas das senhoras, eventos. Há 17 anos faço um concurso de beleza para as senhoras da melhor idade. Imagina sua avó desfilando toda bonita?”, brinca o ator que interpreta Bagageryer.
O estilo de Bagageryer se assemelha muito ao rigor da sua grande diva, Maria Bethânia. André conta que é um dos poucos que gosta de se montar num camarim, para criar uma rotina. Saber que ali no camarim começa o trabalho e após a apresentação é no camarim que o trabalho se encerra.
“Faço show há 27 anos e, meu amigo, eu nunca dei um palavrão no meu show. Na minha vida pessoal não faço e no espetáculo também. Isso foi o que me fez chegar na sala de estar da sociedade de Salvador. Faço show para todas as socialites”, se orgulha.
No show do dia 29, Bagageryer fará uma homenagem a Shirley Bassey. “É uma das divas que eu admiro muito”, conta. No entanto, mantém tudo em sigilo e somente quem estiver lá vai saber quais músicas e como a performance vai se desenrolar.
Já Bia Mathieu não faz cerimônia: sua performance vai contar com as músicas Je suis Malade e Sorriso Aberto. Essas músicas fazem parte da história de Bia enquanto performer – a primeira foi também a primeira música com a qual ela se apresentou, a segunda é em homenagem a cantora Maria Rita, sua musa inspiradora.
Bia Mathieu é, como a própria artista gosta de dizer, a “pessoa jurídica” de Bia Imperial, a “pessoa física”. Mathieu nasceu de uma brincadeira e desse momento de descontração houve um renascimento para a artista.
“Foi naquele 1º de maio de 2010 que eu me entendi como mulher. A partir dali, lembro que a arte me fez mulher, o palco me fez mulher. Se não fosse a arte, o palco, eu não seria uma mulher transexual. Se eu não tivesse experimentado a cena, o palco para fazer show, eu não seria a mulher que sou hoje. Antes de tudo, sou muito grata pela arte ter me trazido para vida, ter me feito ser a mulher que sou e muito bem realizada”, celebra Bia.
Em breve completando 13 anos de performance, todo esse tempo no Centro, Bia compartilha que a região é parte fundamental dela enquanto artista e que estar nesse projeto é, além de encantador, uma realização pessoal e profissional. “O Centro é, literalmente, o meu centro enquanto artista. Nesse projeto, vejo nossa valorização, vejo que o Centro é o berço da arte transformista em Salvador”, afirma a artista.
Debate
Após todas as atividades do projeto, também haverá um debate entre as artistas sobre a relação desta arte com o Centro de Salvador, que será disponibilizado online ainda no mês de maio. Para os interessados nas oficinas, basta se inscrever nos links que estão disponíveis no Instagram do projeto – @asrainhasdocentro.
A drag queen Dandara vai ofertar a oficina de Dança, no dia 24, às 10h, Teatro Vila Velha, onde também ocorre no mesmo dia, às 14h, uma oficina de Teatro, com Beatrice Papillon. No dia 25, as oficinas de Produção e O Universo da Miss ocorrem no Carmén Lounge Bar, às 13h e 16h, sob o comando de Valerie O’Rarah e Bagageryer Spielberg, respectivamente.
Ginna D’Mascar e Rainha Loulou finalizam os últimos dias de oficinas. No dia 27 será a de Humor, com comando de Ginna, acontecerá no Âncora do Marujo, às 15h. Já a oficina de Rainha Loulou, no dia 28, será sobre Figurino, às 13h, no Acervo Boca de Cena.
O projeto As Rainhas do Centro - Arte Transformista no Burburinho da Cidade foi contemplado no edital Arte Todo Dia – Ano VI, da Fundação Gregório de Mattos, da Prefeitura de Salvador, e é uma prova da vitalidade e da importância da arte drag queen e transformista para a cultura brasileira. Com sua criatividade, talento e ousadia, essas artistas inspiram e transformam a sociedade, mostrando que a diversidade é uma riqueza a ser celebrada e respeitada.
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