ABRE ASPAS
Raul Lody: “A tradição não é um gesso”
Antropologo defende que, além de segurança alimentar, o Brasil precisa de soberania alimentar
Por Renato Alban
O antropólogo Raul Lody é idealizador do Museu da Gastronomia Baiana, que realiza o 17º Seminário de Gastronomia nesta semana. Em 17 anos, o estudioso acompanhou o Brasil sair do Mapa da Fome das Organizações das Nações Unidas (ONU), em 2014, e voltar à lista, no ano passado.
Para ele, qualquer debate sobre alimentação no país precisa abordar a escassez. Membro das Academias Brasileiras de História e Belas Artes, Lody defende que, além de segurança alimentar, o Brasil precisa de soberania alimentar. Ou seja, que as pessoas possam escolher o que comem seguindo a identificação histórica e identitária delas.
Nesta entrevista, ele também fala sobre o tema principal da edição do seminário: a valorização de ingredientes pelas perspectivas social e ecológica na busca por sustentabilidade. O evento será realizado pelo Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (Senac Bahia), de 24 a 26 de agosto, no Museu de Gastronomia Baiana (Pelourinho). As vagas presenciais estão esgotadas, mas é possível se inscrever para participar online, gratuitamente, pelo site do Senac Bahia.
Como é possível pensar a sustentabilidade em associação à valorização dos hábitos tradicionais de cultivo e consumo alimentar?
A ação da sustentabilidade sempre existiu, principalmente nesse segmento da chamada cozinha tradicional ou cozinha formadora das identidades alimentares. Existiu no aproveitamento integral da comida, no respeito à sazonalidade da colheita e nas técnicas agrícolas. Existem muitas técnicas que a gente chama de artesanato gastronômico, ou seja, as formas de trabalhar esses ingredientes como peixe, carne e queijo. Existe sempre um sentido econômico que é muito importante, porque comer ainda é uma coisa muito cara. O hábito alimentar engloba um bom percentual das receitas financeiras das famílias e isso não é exclusivo do Brasil. Essa questão da sustentabilidade passa por todos esses aspectos, desde a busca de uma volta para os produtos biologicamente controlados até uma busca por produtos menos processados. Isso está ligado à sustentabilidade, à saúde e ao meio ambiente.
Como vocês pensaram essa discussão no seminário?
O seminário quer trabalhar a sustentabilidade de uma forma ampla, mas também a história cultural dos alimentos. Como o modelo da gastronomia baiana tem como forma o sistema específico da Bahia, a gente busca recortes de estudo de casos localizados no estado. No seminário, a gente traz a antropologia da alimentação, todos os movimentos sociais nessa área. Temos um misto da academia, com estudos sistemáticos, e também depoimentos de experiências dentro desse campo. Esse é o seminário mais longevo que temos no Brasil sobre o tema: estamos na 17ª edição. Isso no Brasil é um fenômeno, porque é um país muito descontinuado, as pessoas começam projetos e logo param, seguimos firmes. Encontramos com um público muito eclético, incluindo participantes internacionais. Ano passado, por exemplo, tivemos participantes da África, o que é muito rico, ainda mais nesse tema.
O que os conhecimentos de raízes africanas têm a nos ensinar e que pode nos ajudar a construir o futuro com uma agropecuária menos extrativista?
Os povos tradicionais acumulam muita sabedoria há milênios. É uma sabedoria que tem nos levado a um equilíbrio, a um respeito ao meio ambiente. Como a Bahia é um estado afrodiaspórico, o que é um privilégio, a gente pode e deve observar essa questão das matrizes africanas. Agregado a esse saber, temos também que trazer uma política internacional com a Unesco [Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura]. Eu sugeri o primeiro trabalho que oficializou o ofício das baianas de acarajé como Patrimônio Cultural Imaterial pela Unesco. Foi o primeiro bem registrado no Brasil. Assim, a gente junta o patrimônio e a valorização. O patrimônio é muito importante como uma política de reconhecimento, manutenção e multiplicação dessas informações. Conhecer para trazer, repetir, multiplicar e adaptar. A questão do ingrediente passa por isso: as várias vertentes da sustentabilidade e o meio ambiente.
A importância do acarajé como Patrimônio Cultural voltou à tona com a polêmica do acarajé rosa no mês passado. Como enxerga essas mudanças na tradição?
É um tema muito importante e que é transversal. A tradição não é um gesso. O que é registrado como patrimônio é o modo de fazer. O registro não é do acarajé, é do saber fazer acarajé. E nesse saber tem toda a questão de gênero, roupa, organização do tabuleiro. São vários bens agregados. O caso do acarajé rosa foi uma estratégia de marketing inteligente. Conseguiram o que queriam, que era polemizar. Por outro lado, em muitos casos, como no abará, por exemplo, muitas pessoas colocam farinha de milho para render, que é fora da receita tradicional, feita com feijão fradinho processado. Tem também o que é autoral dentro da tradição, gente que não coloca camarão, que coloca pimenta. Essas questões da adaptação estão ligadas à sustentabilidade, à questão de sobrevivência. Quando eu era menor, minha questão de família era não desperdiçar nenhum alimento que estava no meu prato. A gente entendia que o alimento era uma coisa preciosa. Mas hoje, com a comunicação muito rápida, você tem um retrato social muito mais complexo do que no passado. Temos que entender que a questão da identidade do patrimônio não é fossilização, mas um respeito. É importante haver uma transformação em vários sentidos, como ingredientes, que podem ser substituídos quando não encontrados, e também na técnica e no formato, tudo está dentro de uma percepção de processo social.
Na ementa do seminário, o senhor comenta sobre a importância da preservação das identidades alimentares, além da garantia da segurança alimentar. Queria que explicasse mais sobre isso.
No segmento da nutrição, falamos da segurança alimentar e da soberania alimentar. Ou seja, da escolha do que você vai comer ou quer comer. A segurança alimentar é a capacidade de eu ter o que comer e que seja saudável. A soberania alimentar é quando eu escolho e me identifico naquilo que eu como. É uma organização de ingredientes e técnicas culinárias referentes à sua história, à sua identidade, ao seu grupo social e étnico. Isso é a soberania alimentar. Infelizmente, o Brasil cresceu muito no índice da insegurança alimentar. Voltamos ao Mapa da Fome. Quando a gente aborda comida, abundância, alimentação, temos que olhar para o outro lado, o da escassez.
Esse já é o 17º seminário do Museu da Gastronomia Baiana. Como têm sido o interesse e retorno do público nas últimas edições?
Têm sido excelentes. O seminário reúne várias atividades. No dia 23, tem a atividade dos painéis e palestras, que depois continua com oficinas temáticas presenciais. Nas oficinas, temos o desenvolvimento de produtos e técnicas, sempre atrelados ao tema do seminário. Após essa parte do auditório, vamos para o museu, onde teremos vários produtores baianos expondo e conversando com o público num circuito. O seminário cresceu nessa perspectiva, adaptando e relativizando o sentimento das mudanças, mas mantendo sua identidade. O retorno das pessoas é sempre bom. Conheço pessoas que já foram a todos os seminários. As vagas para o online são livres e fornecemos certificado.
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