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Recepção e desdobramentos da Semana de Arte Moderna na Bahia

Evento realizado em 1922 tardou a causar um impacto na Bahia e em grande parte do Brasil

Por Vinícius Marques

20/02/2022 - 6:00 h
'O Invertebrado', obra de Juarez Paraíso, localizada no Parque de Pituaçu
'O Invertebrado', obra de Juarez Paraíso, localizada no Parque de Pituaçu -

Em dezembro de 2021, o cantor e compositor baiano Caetano Veloso, atualmente com 80 anos, disse em entrevista ao programa Roda Viva: “A Semana de 22 não era nada quando eu era estudante”. A fala do artista pode deixar muita gente confusa, mas a agora centenária Semana de Arte Moderna, realizada nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro de 1922, no Teatro Municipal de São Paulo, tardou a causar um impacto na Bahia – e em grande parte do Brasil.

O evento que reuniu artistas plásticos, escritores, músicos e arquitetos, e que foi marcado pela vontade de contestar a estética e o modo de fazer arte que vigorava no Brasil até aquele momento, ficou restrita, a princípio, aos artistas do eixo Rio-São Paulo. O objetivo desses artistas era romper com as normas da arte como conhecíamos, mirando no propósito de uma liberdade criativa para todos.

Na ocasião, não houve artistas baianos. O evento dificilmente contou com a participação de artistas de outros estados, mas por conta de uma coincidência, quando o estado de Pernambuco despachou um navio para São Paulo com alguns intelectuais em busca das novidades, a Semana de Arte Moderna acontecia.

“Alguns teóricos inclusive afirmam que os ventos mais velozes e demolidores da primeira fase do modernismo chegam na Bahia por influência de Pernambuco”, afirma o doutor em Difusão do Conhecimento e mestre em Literatura, Gildeci Leite. Essa chegada, no entanto, não significa que os ideais propostos na Semana tivessem sido bem aceitos no estado logo de cara.

O historiador, poeta e membro da Academia de Letras da Bahia, Fernando da Rocha Peres, associa essa resistência ao conservadorismo em que o estado vivia. Segundo ele, os grupos conservadores eram “extremamente articulados e poderosos”, e estavam presentes em todas as posições da sociedade, desde o governo até as instituições privadas de cultura, como as redações de jornais. “Foi preciso conquistar os suplementos culturais para que pudesse haver uma discussão e uma divulgação da arte moderna baiana”, afirma Rocha Peres.

Ao mesmo tempo, naquele período, a Bahia estava navegando nos mares do “tradicionismo dinâmico”, movimento encabeçado pelo médico, poeta, acadêmico, colunista e crítico do jornal A TARDE, Carlos Chiacchio. “O tradicionismo dinâmico não vai ter a perspectiva demolidora que tem a Semana de Arte Moderna de São Paulo, mas sim uma perspectiva de renovar sem destruir a tradição”, conta Leite. Essa seria a primeira forma baiana de recepcionar o modernismo.

E é com Chiacchio que algumas coisas começam a mudar, quando no ano de 1928, ao lado de Pinto de Aguiar, Eurico Alves, Godofredo Filho, Carvalho Filho e outros, fundam a revista Arco & Flexa. Esse movimento inspira o surgimento de outras revistas, como a Távola e, mais tarde, a Samba e a Meridiano, essa última resultando no surgimento do grupo Academia dos Rebeldes. Só então os ventos começaram a mudar. “Antes disso, a Bahia não conhecia o modernismo. Não podemos nem dizer que ela a recusava, porque desconhecer é mais grave do que recusar”, diz Rocha Peres.

Os poetas e amigos Godofredo Filho e Carvalho Filho na Rua Chile
Os poetas e amigos Godofredo Filho e Carvalho Filho na Rua Chile | Foto: Arquivo A TARDE

Entre os membros da Academia dos Rebeldes estavam Pinheiro Viegas, Sosígenes Costa, Edison Carneiro, Dias da Costa e Jorge Amado. São essas pessoas que implementam o “modernismo à moda baiana”, como conta Gildeci Leite. Segundo o professor, o grupo lança a possibilidade de um olhar mais interessante para a cultura negra, trazendo um outro aspecto para o debate modernista.

Leite também conta que o que compõe esse modernismo à moda baiana é o olhar para a cidade, algo que vai de encontro com a ideia original da Semana de São Paulo. “Eurico Alves e Godofredo Filho vão olhar especificamente para Feira de Santana e Salvador, mas, de maneira geral, todos eles vão olhar para as grandes cidades negras do país”, afirma o professor.

Para Luiz Freire, doutor em História da Arte e professor da Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia (Ufba), o membro da Academia dos Rebeldes, Jorge Amado, foi parte decisiva para o modernismo decolar na Bahia: “Suas histórias traziam personagens identificados com a vida popular, da linguagem que essa população utilizava, e isso foi uma grande revolução que ele fez”.

Mas nas artes plásticas, o modernismo ainda patinava. Os parâmetros artísticos que vigoravam até aquele momento eram mais voltados para a representação da realidade, sempre com uma tônica do figurativismo e na representação mais verídica possível, como lembra Freire. “O público estava acostumado com o artista reproduzindo a realidade”, explica. Mas em 1928, alguém tentou mudar esse cenário.

Naquele ano, José Guimarães, um aluno da Escola de Belas Artes ganhou um prêmio de viagem à Europa para frequentar a Académie Julian, em Paris. Foi lá que o jovem artista conheceu os valores da arte moderna. Em 1932, quando retornou, Guimarães realizou em Salvador, no andar térreo do edifício do jornal A TARDE, na Praça Castro Alves, uma exposição com as obras que produziu durante sua passagem pela Europa.

No entanto, as obras não foram bem aceitas pelo público. Segundo Freire, a crítica foi favorável ao artista, mas a negativa dos professores de Guimarães, em especial a do mestre dele, Presciliano Silva, fez com que o jovem artista decidisse migrar de Salvador para o Rio de Janeiro, na tentativa de continuar trabalhando com sua arte. Mesmo assim, o trabalho dele não repercute no local, que tinha uma cena muito dinâmica.

“Entender o modernismo, os pressupostos dos modernistas, não era fácil. Exigia uma reeducação do olhar, exigia uma reeducação do conceito de arte. A arte estava muito ligada à habilidade manual, artesanal e de uma certa forma o modernismo vai quebrar com isso”, explica Freire.

O professor conta que, diferentemente de São Paulo, aqui não houve um grupo de artistas interessados em mudanças que pudessem se associar a Guimarães, como houve em função de Anita Malfatti e sua decisiva exposição de 1917, quando ela foi duramente criticada por Monteiro Lobato. O resultado dessa associação de artistas em defesa de Malfatti foi o que resultou na Semana de 22.

Mudanças

Mesmo depois da investida modernista de Guimarães, muitos anos se passaram até que a Bahia pudesse ter um grupo de artistas e condições culturais para entender e fomentar essas mudanças. Freire conta que isso só vai acontecer entre o final da década de 1940 e o início da década de 1950. Entre os pioneiros estão Carlos Bastos, Mario Cravo Junior, Genaro de Carvalho e Lygia Sampaio, apoiados mais tarde com a chegada dos estrangeiros Carybé e Pierre Verger.

“Vai se criando toda uma geração de artistas entre a década de 1950 e 1960 que vão lançar as bases da baianidade modernista, que tem uma grande característica, que é a representação dessa paisagem cultural afro-baiana com as cores e as formas simplificadas, assumindo a bidimensionalidade da tela e do desenho”, conta Freire.

A Escola Paarque possui painéis modernistas como 'O Átomo', de Carybé
A Escola Paarque possui painéis modernistas como 'O Átomo', de Carybé | Foto: Olga Leiria | Ag. A TARDE

Esses artistas passam a utilizar a mesma forma de interpretar a arte como os artistas populares faziam, sendo que a maioria deles tinham passado por alguma formação e outros eram autodidatas. Sobre isso, Freire lembra que esse primeiro grupo era formado por burgueses, filhos de comerciantes e de fazendeiros, que puderam bancar o estudo dos filhos fora do país, tanto na França quanto no Estados Unidos.

Enquanto esse grupo podia escolher livremente qual ateliê do mundo frequentar, colocando suas preferências à frente, foi mais fácil para eles conhecer os artistas de vanguarda, enquanto os bolsistas, que iam com dinheiro público através da Escola de Belas Artes, eram obrigados a frequentar apenas a Académie Julian.

Nesse período, a Semana de Arte Moderna de 22 já não interferia em como o modernismo era visto. A literatura baiana já estava em plena produção e havia um grupo de artistas plásticos modernistas se estabelecendo. Agora, se falava nos desdobramentos causados pela Semana de 22. Com a fundação da Universidade Federal da Bahia, em 1946, atrelada à visão do reitor Edgar Santos com uma política em que educadores e intelectuais estavam à frente, como Anísio Teixeira, a cena baiana esteve em completa transformação.

É nesse período que críticos passam a publicar em jornais textos sobre a arte moderna, surgem outras exposições – como a organizada por Jorge Amado, juntamente com o artista Manoel Martins e com o jornalista Odorico Tavares, e a do escritor carioca Marques Rebelo – e a primeira galeria especializada em artistas modernos, a Oxumaré.

“Foi se criando o que se chama Sistema das Artes, que é a chegada do próprio Museu de Arte Moderna, no início da década de 1960, e toda uma movimentação com muito apoio público”, conta Freire. O professor lembra que, nesse momento, se consubstanciou encomendas de murais para os prédios públicos e no incentivo para que as empresas contratassem artistas modernistas para realizar murais nos seus halls de entrada, em ambientes, e na produção de monumentos.

Ao mesmo tempo, arquitetos foram chamados para a capital com a proposta de criação de prédios públicos dentro da estética modernista. Entre essas pessoas está o amargosense Diógenes Rebouças e o arquiteto Gilbert Chaves, que projetou a Casa do Rio Vermelho, onde moraram Jorge Amado e Zélia Gattai, e é considerada a primeira casa moderna da Bahia. Tudo isso porque uma das condições para haver o modernismo está muito ligada à modernização da própria cidade, atrelado a uma vida urbana dinâmica.

“A gente não pode nem minimizar a Semana e toda a militância artística do eixo Rio-São Paulo, mas também não podemos maximizar. Houve aqui toda uma rede de transformações que vão desde o campo econômico, como a vinda da Petrobrás, o posto de petróleo do Lobato, até as propostas educacionais de ponta, como a de Anísio Teixeira, que gerou a Escola Parque, onde foi a primeira iniciativa da implantação de murais de artistas modernistas”, lembra Freire.

E essa modernização segue por mais alguns anos, com o surgimento de outras gerações de artistas, cada um se firmando no seu modo próprio de interpretar a realidade – ou criar uma nova realidade. Até que entre 1969 e 1970 surge um novo grupo de artistas, o Etsedron, em que todas as linguagens se diluem, desde a dança, o teatro e as artes plásticas.

Todas essas linguagens se integram na proposta social do grupo Etsedron de mostrar para o mundo uma realidade que a oficialidade brasileira escondia naquela época de repressão por conta do golpe militar de 1964. Eles tinham como principal objeto jogar luz na realidade do sertão nordestino, em especial ao sertão baiano. “Considero que a modernidade se transforma em contemporaneidade neste momento, com esse grupo formado a partir da Escola de Belas Artes”, afirma Freire.

Para o professor, muito do que se faz atualmente ainda é fruto do que os modernistas plantaram e fomentaram, do que eles representam na luta pela liberdade de expressão e direito da experimentação contínua. Segundo Freire, eles garantiram lá em 1922 que isso seja infinito e elevado a uma superpotência, que é o que temos na arte contemporânea.

Grandes nomes que beberam do modernismo ainda praticam essa liberdade em suas artes, como Juarez Paraíso, Ieda Oliveira, Fábio Magalhães, Bel Borba, Arthur Escovino, Virginia de Medeiros e tantos outros. “Temos muitos artistas, e a Bahia é muito ingrata. Eles não aparecem como poderiam aparecer. Sobretudo não são representados nos acervos dos museus que deveriam estar”, afirma o professor da Escola de Belas Artes.

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Tags:

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