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06/11/2023 às 8:00 - há XX semanas | Autor: Priscila Miraz*

OLHARES

Respire o céu, celebre o dia: a paisagem contada por Ana Sant’Anna

Confira a coluna Olhares

Obras de Ana Sant’Anna
Obras de Ana Sant’Anna -

Um movimento desprendido da forma fechada para assim alcançar a forma em fuga, concentração do olhar, atenção às mutações mínimas do entorno, que às vezes chegam antes à pele e ao nariz que aos olhos, é estado necessário para nos aproximarmos da poética de Ana Sant’Anna.

Trata-se de um modo de estar-paisagem com o mundo. O efêmero dos rastros no céu, no mar, na areia, nas pedras, sentidos dessa maneira, tornam-se conectores do que está sendo mostrado com nossos corpos, de duas formas: visíveis quando presentes nas pinturas, materialidade de traços em cor, esfumado entremeio; e invisíveis na continuidade que amplia esses elementos da paisagem entre as telas que compõem as séries de pinturas e fotografias, como atmosfera: translúcidos rastros que necessariamente nossos olhos veem, porque nossa memória do mundo é acessada pelas imagens. As séries de Ana são compostas por telas de pequeno formato que abarcam as imensidões. Num espaço de 10 x 15 cm cabe a intimidade e o inexorável dos horizontes.

Ana Sant’Anna nasceu em Salvador, graduou-se em Museologia na Ufba. Mudou-se para São Paulo, onde fez o mestrado em Comunicação e Semiótica pela PUC, na linha de pesquisa em Processo de Criação na Comunicação e na Cultura.

De volta a Salvador, a vivência na cidade natal a colocou em estado de conexão e de atenção ao presente, conforme disse numa conversa que tivemos num final de tarde de domingo ensolarado: “Atualmente, minha prática questiona a sutileza de determinados fenômenos como os eventos transitórios observados no fluxo da vida, as sensações evocadas pela luminosidade e as experiências com o tempo não cronológico – aquele ditado pelo curso natural”.

Na mesma conversa, Ana menciona a importância da mãe e do avô, que desde sua infância a ensinaram a olhar para a natureza, passeando pelas praias, parques e praças de Salvador. A mãe a levava para ver exposições e o avô, fotógrafo amador, a ensinou sobre enquadramento e contou histórias sobre suas viagens pelo mundo. Essas experiências sensíveis compartilhadas possibilitaram a Ana ver o mundo de outra forma.

Em agosto de 2023 Ana teve sua primeira exposição individual na Galeria ArteFasam, em São Paulo, intitulada Maré, com curadoria de Felipe Barros de Brito. Nesse momento já havia participado de diversas exposições coletivas desde 2014, e ganhado o Prêmio Branco de Melo com a exposição Vazios incompletos, em Belém (PA), em 2022.

Nas séries expostas em Maré, a linha como elemento mínimo, horizonte e vazio são atravessados por tempos distintos, evidenciando a complexidade que sustenta o mínimo aparente da geometria de formas que reconstroem a paisagem. Em Imensidão (2023), essa economia da forma e a busca da artista pelo vazio estão presentes. A luz e sua enorme força transicional cria ininterruptamente, na constância dos ciclos, reflexos invertidos que se fundem em uma imagem entremeada da complexidade dos tempos. Aparente imobilidade e repetição que está atravessada pelas transformações incessantes do mundo. Lugar de atenção vital.

Essas características estão também presentes em Porvir (2023), agora na intensidade do amarelo, que no horizonte é linha brilhante de sol, e opaca no chão que se estende em primeiro plano em ocre. Nas duas obras, o tempo e o espaço como linhas de construção da paisagem se interseccionam ganhando, pelo título, um acento maior em um ou em outro: a imensidão do espaço, o porvir do tempo. Um convite para que nosso corpo se abra para o indefinido dessas coordenadas que servem justamente para nos localizar, para nos dizer pontualmente quando e onde estamos. Diante do porvir e da imensidão, estamos em lugar nenhum.

Desde que entrei em contato com esses trabalhos de Ana, me lembro do escritor argentino Jorge Luis Borges, que no livro de contos O Aleph, em Os dois reis e os dois labirintos, apresenta o deserto como o labirinto mortal. Sem o conhecimento necessário para, estando nesse lugar, restabelecermos as coordenadas de tempo e espaço, estamos perdidas.

No entanto, estar perdida pode adquirir sentidos abertos e ser também o lugar do devaneio, da possibilidade de se entender completamente ali, seja onde quer que for esse ali, mas presente inteiramente no lugar que se ocupa enquanto se olha e se deixa invadir pela paisagem.

Na série Desanuviar (2022), criada logo que Ana retorna a Salvador, a paisagem observada e a paisagem criada estabelecem, no conjunto de 36 pequenas imagens em pastel oleoso e bastão de tinta óleo sobre papel, uma composição de formas sintéticas que brincam com nossa percepção e sensação de tranquilidade que o tom de azul intensifica, montando e remontando as paisagens com poucos elementos e gradações da cor.

No mesmo ano, a experiência de estar em outra paisagem, agora distante do mar, a Chapada dos Veadeiros (GO), também resultou em uma série realizada com os mesmos materiais, agora em tons de amarelo e ocre. Chapada (2022) evoca os caminhos do cerrado, novamente no lugar entre visto e imaginado. Todas as paisagens são imaginadas. Todas as paisagens são criações.

Na série Fluir (2023), as linhas de traços finos, círculos e semicírculos buscam apresentar suscintamente os movimentos que na natureza são perenes e que em sua constância deixam rastros de existência, como as marés e os ventos. As formas criadas pela água do mar na areia na série Maré (2021) são novidades que se assemelham entre si, jamais sendo exatamente as mesmas, jamais se repetindo, desenhos como se fossem petróglifos da mais tênue impermanência, o oposto da pedra, em que nos perdemos buscando decifrá-los.

A força da maré e seu cheiro é a atmosfera do que vemos em nosso caminho como visitantes deste espaço a que Ana nos convida. A poeta carioca Vera Pedrosa, na poesia No rumo do leão adormecido, diz de um percurso assim: “o céu baixo envolve os viajantes/ no aperto da densa umidade que contra a vontade de ambos/ os intimiza/ o ar carrega odores violentos/ de iodo e sal e vida marinha/ cheiro de marés velozes e/ nuvens-espuma/ montanhas se movem/ se mostram e se distanciam/ é uma terra/ que a qualquer momento/ se abre em gretas [...] a visita breve lhes fará saber/ que o tempo é este”. O convite de Ana, quando percorremos com atenção seus trabalhos, é de nos entregarmos ao “tempo este”.

A vibração do azul e do amarelo na maioria das séries de Ana intensifica a impermanência das coisas, na gradação luminosa no horizonte, céu, mar. Tudo é efêmero, a vida é outra. É uma busca por reconhecer o mundo e de se reconhecer no mundo. São necessárias as séries, as sequências, as continuidades para que possamos entrever as tramas do tempo na natureza, sua força motriz de variação mínima e constante.

A paisagem é uma criação que se inicia e que nunca acaba porque é uma curiosidade do olhar que não se resolve. É o mundo redescoberto. Redescobrir pode ser aqui o grau da iminência, o retirar a camada e encontrar outra e outra e outra. E a repetição do mesmo é reencontrar a paisagem criada como novidade, todas as vezes. Aquele pequeno ponto que não estava ali, aquela forma alongada, aquele tom da cor, aquela sombra, o nível da água. Movimento perpétuo.

Os trabalhos de Ana Sant’Anna me carregam por dois movimentos simultâneos: para a profunda intimidade, onde balbucio pensamentos flutuantes, soltos, ainda em estado de possibilidade, e para a comunicação mais antiga com o mundo, onde tudo se conecta, expande e ganha som, voz de todos os marulhos. No mais físico, na mais dura das pedras, existe a ação dessas vozes carregadas desde muito longe, marca transformadora da água salgada, as abstrações das formas da natureza.

Nesse estado, carregada, estou em todos os meandros do mundo, por mais estreitos, porque tudo é fluido como a água e o tempo, como a pergunta mais difícil, daquelas perguntas que são sempre as feitas por uma criança. Mais uma vez, Vera Pedrosa: “Antonio/ vovó/ por que o céu é uma cor/ perguntaste uma vez/ e te respondo/ respira o céu ultramarino/ vê a cor da distância/ entrega o rosto à luz/ que celebra o dia”.

*Doutora em História Cultural e professora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) | [email protected]

O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa necessariamente a opinião de A TARDE

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