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Restaurantes apostam em fachadas discretas e experiências surpreendentes
Confira matéria da revista Muito deste domingo
Por Pedro Hijo
A porta de um guarda-roupa, o buraco de um coelho e a janela do próprio quarto são as entradas de Lúcia, Alice e Wendy para mundos fantásticos. Em Nárnia, no País das Maravilhas ou na Terra do Nunca, o contraste de uma entrada simples com universos extraordinários faz parte da fantasia. Em Salvador, restaurantes têm usado dessa estratégia para impressionar os clientes, com decorações e experiências surpreendentes em locais com fachadas discretas.
No final de um corredor escondido, em um endereço que só é revelado para clientes com reserva, está o Purgatório Bar, com decoração inspirada no espaço entre o céu e o inferno.
Nas madrugadas no Largo da Lapinha, no Entre Folhas e Ervas, uma porta de madeira de uma casa centenária com duas janelas dá para um espaço onde mais de 100 pessoas dançam, bebem, paqueram e se divertem entre amigos e desconhecidos. Pela manhã, a casa volta a funcionar como uma residência.
Na Rua da Paciência, no Rio Vermelho, a culinária contemporânea e a decoração elegante do Silva Cozinha são apresentadas com uma placa azul e branca na entrada, trivial como qualquer outra placa com nome de rua.
No mesmo bairro, por trás de uma parede branca com apenas uma porta e um letreiro pequenos, o Cöa tem um ambiente a meia luz que invoca voz baixa e gestos românticos a apenas poucos passos do antigo Mercado do Peixe (atual Vila Caramuru), onde luzes fortes e música ao vivo compõem uma cena bem diferente.
Dono do Purgatório Bar, aberto em 2022, Jonatan Albuquerque conta que usou como inspiração a obra A Divina Comédia, do escritor italiano Dante Alighieri. No livro, o protagonista, de mesmo nome do autor, percorre a montanha do purgatório, dividida em sete terraços: orgulho, inveja, ira, preguiça, avareza, gula e luxúria.
No bar em Salvador, os sete pecados deram nomes aos drinks do primeiro cardápio. “O cliente não sabe o que tem na bebida. Você deve escolher de acordo com sua personalidade”, sugere Jonatan.
Assim como Virgílio faz com Dante no livro, a equipe do bar se propõe a guiar quem passa pelo Purgatório. Mas, no estabelecimento, o objetivo é apresentar novos sabores à clientela da Bahia.
“O baiano é muito fechado, se eu escrever no cardápio que tem Campari em uma bebida, o cara geralmente torce o nariz, mas se não escrever, o cara vai poder provar e se encantar”, diz o dono do local. O novo cardápio, revela Jonatan, tem inspiração na teoria do psiquiatra suíço Carl G. Jung, para quem as personalidades são formadas por 12 arquétipos.
“Aqui a gente trabalha para despertar o incrível”, afirma o dono do Purgatório Bar. O local, que comporta até 51 pessoas, é pequeno e se destaca pela luz vermelha que ilumina todo o balcão. Cerca de 40% dos clientes, estima Jonatan, são regulares. “É difícil ir uma vez só e entender todos os detalhes. E toda vez que você volta tem uma experiência diferente”, promete o empresário. Para oferecer esse ar de novidade, o cardápio tem 64 drinks. E os bartenders podem sugerir e preparar drinks clássicos, somando 100 coquetéis ao menu.
No cardápio do Purgatório não tem nem cerveja nem vinho. “O foco é 100% em coquetelaria”, diz o dono. Para ir ao bar, é preciso fazer uma reserva. Sem ela, nem mesmo o endereço é divulgado para o interessado. Na rua onde fica, não há letreiro ou sinalização alguma.
A inspiração para esse segredo vem dos “speakeasies”, bares dos anos 20 que vendiam bebida alcoólica clandestinamente durante a Lei Seca nos Estados Unidos, que proibia a venda desses produtos. Os mais notórios eram do mafioso Al Capone.
Apesar do esforço do dono em manter o segredo, a fofoca se espalhou – sorte dos baianos que ela não é um pecado capital. Numa busca rápida no Google, o endereço logo é revelado. Aos que querem viver a experiência completa, melhor evitar a curiosidade.
“Em São Paulo, [a tendência dos speakeasies] surgiu na década de 1990. E, em Salvador, somos os primeiros”, afirma o “Al Capone baiano”. No início, diz Jonatan, houve um preconceito com o bar. “Sofremos um pouco pelo nome e pela luz vermelha. Achavam que era bordel”.
Depois de passar pelo desafio – ou “montanha do purgatório” – de firmar o primeiro negócio em Salvador, o empresário já anuncia a abertura do segundo bar na cidade. E, claro que depois do Purgatório, o novo empreendimento será o Paraíso, um bar de coquetelaria que ficará no Palacete Tira-Chapéu, no Centro Histórico de Salvador.
O local está sendo reformado para se tornar num centro de entretenimento. “O Paraíso vai ter uma proposta diferente: vai ser um bar bem clássico”, diz o empresário. A abertura está prevista para setembro.
Casa de vó
Enquanto o Purgatório Bar e o Paraíso seguem propostas bem definidas, no Entre Folhas e Ervas, o ambiente é um relicário de objetos e referências colecionadas ao longo de 13 anos. No fundo da casa da avó, o empresário Ylo DelRei de Sá Carvalho costumava reunir amigos para assar pizzas.
“Aí tive meu filho e precisava de dinheiro, então comecei a cobrar um valor para fazer as reuniões”, conta. No começo, apenas 10 pessoas participavam. Atualmente, o número chega a 150.
Ylo mora no primeiro andar com o filho e os clientes são recebidos no térreo. A discrição, diferentemente do Purgatório Bar, não é por estratégia comercial. “Se eu coloco fachada comercial aqui, eu não ia ter paz”.
Com estilo colonial, a casa se assemelha às vizinhas, no coração do histórico bairro da Lapinha. Mas, ao atravessar um corredor escuro, o cliente chega a um ambiente amplo, com muitas plantas e itens de decoração dos mais diversos, fazendo jus à origem da edificação: uma casa de vó.
O nome do prato mais pedido combina com os objetos decorativos: Achados. É um tipo de escondidinho com pirão de aipim, provolone maçaricado e frutos do mar com banana. Invenção é do próprio Ylo, que coordena tudo, da cozinha ao atendimento.
“Só trabalho com reserva de cliente, porque, com as reservas, eu sei o que eu tenho que organizar”, explica. O local pode funcionar como restaurante ou como espaço para eventos, com música ao vivo e sem hora para fechar.
Arte no prato
No Silva Cozinha, a decoração também é uma composição do próprio dono, o chef e empresário Ricardo Silva. “Queria ter um espaço que fosse meu que parecesse comigo, que tivesse minha personalidade. Por isso, a maioria dos objetos de arte que tem lá era da minha casa”, conta o proprietário.
A fachada, com portas de madeira e vidro e uma placa semelhante a sinalizações de ruas, não prepara os clientes para a galeria de arte que se transformou o ambiente, com a curadoria de Ricardo.
“Gastronomia não é só o ato de comer, é toda a experiência, é se sentir bem, é estar sentado confortavelmente, é o cheiro, é a música. A arte complementa a gastronomia”, conclui o chef. A inspiração do local foi o bistrô francês Pastis, na cidade de Nova York. “Desapeguei do padrão, queria uma coisa mais informal, que as pessoas se sentissem em casa”, afirma Ricardo. Para ele, esse estilo combina com o clima do Rio Vermelho, onde está localizado.
As referências diversas estão espalhadas pelo estabelecimento. O tamanho é de bistrô parisiense, o estilo urbano da decoração lembra os restaurantes do bairro nova-iorquino do Brooklyn e a simplicidade da fachada é bem “rio-vermelhense”.
“Tem muito a ver com o Rio Vermelho. A ideia sempre foi estar no Rio Vermelho”, destaca o chef, que ainda acrescenta mais elementos à mistura. Paulista, Ricardo é formado por um instituto gastronômico argentino e foi o primeiro chef do restaurante Carvão, no Chame-Chame.
Ele conta que quis batizar o restaurante, aberto há pouco mais de um ano, com o próprio sobrenome para levar ao local a história da própria casa. “É um restaurante de comida brasileira, mas com várias influências, me sinto livre para criar sem nenhuma amarra”, diz. “Com essa história de chamar o restaurante de Silva, eu me sinto livre para receber as pessoas como se estivesse em casa”. O desafio, revela, é fazer os clientes entrarem no local, já que a fachada é discreta. “Mas quando atrai, fideliza”.
Viagem pelo mundo
Ainda mais discreto que o Silva é o restaurante Cöa, aberto há quase um ano. Chef e dono do restaurante, Sylvain Putallaz descreve a experiência promovida no local como uma “viagem”. Mas não para Nárnia, País das Maravilhas ou Terra do Nunca. São destinos como França, Suíça, Marrocos, Cuba, Itália e o próprio Brasil, especialmente a Bahia.
“Essa ‘viagem’ é como percebemos a experiência gastronômica e visual. Tanto a nossa culinária quanto o nosso ambiente lembram as influências dos países onde passamos”, diz Sylvain.
De origem suíça, o chef mistura técnicas europeias com produtos brasileiros e baianos em todo o cardápio. “Estar do lado de peixarias, da Casa de Iemanjá, é um luxo imenso para montar pratos com produtos frescos, de qualidade e locais”.
Entre as adaptações está o bolinho de queijo, que tem receita suíça, mas que no lugar do queijo Gruyère, leva um queijo mineiro. “É acompanhado de um agridoce de abacaxi, maçã verde e gengibre”, descreve o chef, que mora no Rio Vermelho e não pensou em outro bairro para o Cöa.
Com apenas 20 mesas, o ambiente tem decoração de inspiração marroquina, com plantas tropicais. Já o bar remete a hotéis coloniais de Havana, capital de Cuba. “O ambiente todo é uma linda mistura das nossas melhores viagens. Foi proposital. Queríamos um lugar aconchegante onde os clientes pudessem se sentir confortáveis para conversar e permanecer o tempo necessário”, afirma o empresário.
A próxima adição ao menu também vem de uma viagem: uma polenta com costelinha bovina assada que Sylvain costumava preparar e comer na Itália quando ia visitar os avós. A inclusão no cardápio está prevista para setembro.
O restaurante funciona com um menu degustação de quatro etapas. A referência é a cultura francesa e suíça de passar muito tempo na mesa. “Para nós, é um momento especial para compartilhar e apreciar”, diz Sylvain, em referência aos dois sócios, amigos dele.
A intenção dos três é que a surpresa do ambiente que contrasta com a fachada se exceda na degustação. A Alice do livro do escritor britânico Lewis Carroll recebe uma poção para crescer, literal e metaforicamente, assim que entra no País das Maravilhas. Já o cliente do Cöa se depara com pratos que Sylvain descreve como “convites a um momento de descoberta e felicidade”. A cada etapa do menu, um momento para que cada pessoa encontre algo que lhe agrade, “gerando uma coleção de boas memórias”.
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