MUITO
Rhariane Ornelas: “O cooperativismo é muito democrático”
Engenheira ambiental e sanitária é diretora de projetos socioambientais da Rede Sul
Por Pedro Hijo
Desmatamento na Amazônia, crise climática, risco nas seguranças alimentar, hídrica e energética. Apesar dos fatos alarmantes, a engenheira ambiental e sanitária Rhariane Ornelas se nega a acreditar que a ausência de futuro já começou. Paulista, ela é diretora de projetos socioambientais da Rede Sul, grupo que tem mais de 20 cooperativas de coleta seletiva associadas do estado de São Paulo, e trabalha diariamente sem deixar o otimismo ser abalado. "Sou muito esperançosa com todas as coisas da vida, então, acredito que não podemos ser negativos. Estamos caminhando para uma melhora deste cenário", opina. Esta semana, Rhariane esteve em Salvador para participar de um painel na 79ª Semana Oficial da Engenharia e Agronomia (Soea), evento que debateu sobre o potencial de desenvolvimento da Bahia nestes setores. Para Rhariane, a reciclagem provoca impactos futuros no meio ambiente, mas também na realidade atual das famílias de mais de 750 cooperados associados à Rede Sul. São pessoas que vivem do trabalho de separação de resíduos nas cooperativas responsáveis por receber todos os resíduos secos e recicláveis coletados pelo município de São Paulo. Nesta entrevista, Rhariane fala sobre a união das cooperativas de reciclagem, explica as responsabilidades dos órgãos públicos e das empresas e dá dicas para as pessoas fazerem coleta seletiva em casa.
Qual é a realidade atual do Brasil quando o assunto é gestão de resíduos?
É uma realidade dura. O Brasil vive um retrocesso muito grande. Vemos cooperativas que ainda precisam avançar muito e a ineficiência de políticas públicas. Mas eu sou muito esperançosa com todas as coisas da vida, então, acredito que não podemos ser negativos. Estamos caminhando para uma melhora deste cenário. Mas a gente precisa avançar muito quando o assunto é tecnologia, inclusão social e aproximação das iniciativas privadas por parte do poder público. Temos mais de um milhão de catadores individuais sobrevivendo e vivendo do que a sociedade chama de lixo. E dessa quantidade, poucos estão inseridos em cooperativas formalizadas. Ou seja, poucos estão sob um teto com segurança para poder trabalhar. São pessoas que estão inseridas em lixões, espaços que nem deveriam mais existir. Isso é muito doloroso. E nós, profissionais da área, estamos sempre buscando tentar fazer essas articulações, trazer essas pautas com o Governo Federal para que a gente consiga avançar esses temas no país. Mas eu sei que esse é um desafio muito grande porque o Brasil é, por si só, muito vasto e diversificado. Só em São Paulo, por exemplo, a gente não conhece nem tudo e nem todos. É preciso trabalhar políticas locais e fomentar indústrias por região.
O Nordeste está bem inserido nessa cadeia de valor dos resíduos?
Existe um desafio muito grande que é de inserir Norte e Nordeste nessa cadeia de valorização dos materiais. A gente está falando de catadores e cooperativas que dependem, às vezes, de vender o mínimo para sobreviver porque as indústrias geralmente estão nas regiões Sul e Sudeste. O Norte e o Nordeste acabam sofrendo por estarem afastados desta cadeia. Temos trabalhado muito essa questão de ter melhores políticas regionais para que a gente consiga fomentar a economia circular regional e consiga superar esses desafios.
De um modo geral, as cooperativas conseguem ter volume para atender exclusivamente as indústrias?
Eu trabalho em duas frentes. Com a Coopercaps, que é uma cooperativa singular, formada por sócios cooperados, e a Rede Sul, que foi idealizada em 2015, e é uma rede de cooperativas do estado de São Paulo. O cooperativismo é muito democrático. Ele é diferente do regime CLT, onde existe a figura do patrão. Na cooperativa, tudo o que for absorvido será rateado igualmente entre os sócios cooperados. Antigamente, os atravessadores de materiais eram muito constantes nas cooperativas. Dificilmente, as cooperativas tinham diálogo direto com a indústria recicladora. E é nesta indústria que se consegue essa cadeia de valorização dos materiais. Antigamente, uma cooperativa dependia da venda para o atravessador porque nunca tinha volume suficiente para vender para a indústria. Ou, às vezes, faltava algum tipo de separação específica, o que dependia de conhecimento e treinamento. Notando isso, a Coopercaps decidiu criar uma forma das cooperativas se fortalecerem e valorizar a comercialização na cadeia dos resíduos recicláveis. No começo, foi muito desafiador, porque as cooperativas tiveram que entender que elas tinham que trabalhar unidas para fazer uma carga. Ou seja, tinham que coletar em várias cooperativas e, assim, ter volume para chegar na indústria. Hoje, muitas cooperativas têm essa noção da importância de estar inseridas em uma rede, mas ainda falta um pouquinho mais de capacitação e qualificação para que a gente entenda, de fato, a real importância dessa união. A Rede Sul tem atualmente mais de 20 cooperativas associadas do estado de São Paulo e as auxilia a estarem em editais, em projetos com a iniciativa privada.
De acordo com dados da prefeitura de Salvador, 46% do lixo gerado na cidade têm potencial para ser reciclado. No entanto, menos de 1% é aproveitado. A ação individual ainda é relevante nesta dinâmica ou a responsabilidade das empresas é a que mais tem potencial para uma mudança real de padrões?
É uma responsabilidade compartilhada. Tem a responsabilidade por parte das empresas, claro. Mas, também tem o compromisso dos órgãos públicos e da sociedade civil. São Paulo, por exemplo, tem municípios que ainda não se adequaram e não implementaram uma coleta seletiva na região. Ou seja, não formaram cooperativas, não conseguiram organizar, mapear e identificar os catadores. Enquanto a gente não se organizar como sociedade, seja setor privado ou público, vai continuar batendo nessa tecla que precisamos de uma mudança real. A gente precisa se organizar, fomentar essas regiões, precisa identificar, criar projetos, criar essa viabilidade para aumentar esses números. O que a gente pode fazer de projetos para cobrar o município a fazer o papel dele? Que outro formato eu posso pensar para que um município também se sinta responsável? Sobre as empresas que estão gerando certas embalagens, por exemplo, depois que eu consumo, o que eu faço com elas? Quais projetos e viabilidades que essas empresas podem se comprometer a fazer? De 2020 para cá, as coisas têm se movimentado. Mas ainda tem muito caminho a percorrer, tem muita desinformação. Se o Brasil continuar aterrando resíduo, vai continuar aterrando dinheiro e oportunidade.
Qual é o perfil dos trabalhadores em uma cooperativa?
São todos os tipos de perfis. Lá em São Paulo, por exemplo, uma das unidades da Coopercaps conta com trabalhadores refugiados de vários países. São pessoas do Congo, Senegal, regiões com conflito político, principalmente. Esses cooperados encontram uma oportunidade na reciclagem, um recomeço de vida. A gente também tem jovens de primeiro emprego, que não têm formação e qualificação, mas que conseguem, na cooperativa, encontrar um pontapé para começar uma carreira. Temos mães solo, pessoas de baixa renda, egressos do sistema prisional, pessoas adictas, idosos... Tem uma senhora de 80 anos que trabalha na esteira [de separação de resíduos], por exemplo, que, se a gente tentar tirar de lá, ela briga com a gente. A cooperativa não tem que ser o fim de ninguém, mas sim o recomeço.
Qual é o primeiro passo para quem deseja começar a fazer a coleta seletiva em casa?
O primeiro passo é segregar o resíduo. Mas, para além disso, é preciso saber para onde ele vai. Porque o que eu noto é que muita gente coloca o lixo para fora de casa e acha que ele some num passe de mágica. Mas, não existe mágica. Aquele material tem um caminho, tem um ciclo de vida para percorrer. Ele vai passar pela mão de alguém e vai gerar renda para uma família. Então, é importante se perguntar se existe a coleta seletiva na sua região. Se não tiver, se pergunte se há algum catador que passa na sua rua. Você sabe quem é essa pessoa? Você sabe como ela está? Ela está em situação de rua? Ela vende para algum ferro velho? Se atentar ao que se consome é também uma forma de se responsabilizar. Porque nem todas as embalagens têm uma cadeia realmente valorizada.
Quais embalagens não são interessantes para a reciclagem?
Sabe aquela caixa de uva que a gente compra no mercado? Aquele plástico da bandejinha do morango? É um PET que não tem a mesma composição de uma garrafa comum de refrigerante, por exemplo. Esse plástico da caixinha de uva queima mais rápido no processo do reciclador e pode até obstruir equipamentos, enfim, pode contaminar o processo. Então, ela acaba não tendo muito volume nas cooperativas, logo, ela tem baixíssimo valor comercial ou, às vezes, nem tem cadeia, dependendo da região, e acaba tendo que ir para o aterro diretamente. Quer morango, uva? Adote a feira livre. Inclua na sua rotina comprar coisas fora de embalagens para a gente diminuir o consumo único de plásticos. Em vez de usar o copo descartável, leva a sua garrafinha. O vilão não é o plástico. O vilão somos nós que consumimos coisas que vamos usar por menos de dez segundos.
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