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16/06/2024 às 0:00 - há XX semanas | Autor: Luiz Freire*

OLHARES

Riscos e silêncios em Marlene Cardoso

Confira a coluna Olhares

Marlene Cardoso integrou a primeira turma do Curso de Licenciatura em Desenho e Plástica na Escola de Belas Artes da Ufba
Marlene Cardoso integrou a primeira turma do Curso de Licenciatura em Desenho e Plástica na Escola de Belas Artes da Ufba -

Riscar é, sem dúvida, uma expressão primeva dos humanos, assim como a exposição ao risco e ao perigo, arriscar. Riscar também é planejar pelo desenho, projetar o que será realizado. Marlene Cardoso entende muito bem os limites e extensões desses termos, oriunda de uma família de pai e mãe protestantes, presbiterianos, experimentou uma infância austera na cidade baiana de Triunfo, Barra da Estiva, próxima a Ituaçu. Concluiu o curso primário em Ponte Nova, em um colégio interno de dirigentes protestantes, ligados aos EUA. Concluído o primário, partiu para Caculé, onde fez o curso ginasial.

Integrou a primeira turma do Curso de Licenciatura em Desenho e Plástica na Escola de Belas Artes da Ufba, depois de ter cursado dois anos de Artes Plásticas. Concluída a licenciatura em 1964, começou a frequentar o ateliê do artista Ângelo Rodik, onde realizou suas criações, pois o curso de licenciatura direcionava a formação ao ensino da arte, não ao fazer artístico.

As aulas práticas limitavam-se às cópias dos gessos ministradas pelo professor alemão August Adolf Buck. Foi aluna da primeira turma do curso de licenciatura, firmando carreira como professora de Iniciação Artística em escolas públicas de Salvador.

Em 1966 já participava da 1ª Bienal Nacional de Artes Plásticas realizada em Salvador. Depois de atuar como monitora do professor Carlos Eduardo da Rocha, na disciplina História da Arte, passou a ministrá-la como professora efetiva em 1968, expondo obra na 2ª edição da Bienal.

Dos experimentos no ateliê de Rodik, Marlene seguiu fazendo desenhos, inicialmente abstratos, absorvendo as influências do ambiente artístico das décadas de 1960 e 1970, mas a marca pessoal logo emergiu nos seus trabalhos artísticos, tornando-os inconfundíveis, sem que houvesse repetição de fórmulas.

Neles é notável o apego à linha, que não se completa, nem se fecha totalmente, modulada na espessura, indicando formas reconhecíveis, personagens inventadas, que horas sugerem ser o seu próprio retrato, ou o retrato de sua ânima, cujo movimento maior se manifesta nos cabelos, sobrancelhas e nos olhos.

Os corpos são concebidos com formas que contrariam a realidade, que contrariam as harmonias de proporção das lições das cópias de gesso, surgem naturalmente, sem esforço algum no efeito opositivo; é como se essas formas fossem comuns nos corpos reais, e como se a criadora convivesse cotidianamente com criaturas estranhas à norma.

Figura

Um desenho a bico de pena, Sem título, produzido em 1969, é um exemplo da sua vertente figurativa nessa década em que despontou profissionalmente. Nele uma figura feminina encara o observador com expressões tensionadas pelos espessos contornos pretos, inclusive pela densa orla negra que circunda a cabeça.

Contrastes entre formas negras e linhas finas vão em todas as áreas do desenho estabelecendo tensões, assim como áreas de vazios e cheios, o que exprime movimentação anímica à figura estática, residindo aí a força visual da obra. Nesse ano, Marlene apresentou trabalho na 1ª Exposição Feminina de Artes Plásticas, ocorrida no Foyer do Teatro Castro Alves. Em virtude dessa participação, essa obra integrou com destaque a Exposição Casa de Mulheres (MAM-2024), sendo uma das poucas artistas vivas que participaram da exposição de 69.

Não costuma conferir títulos aos trabalhos: títulos induzem interpretações e dirigem o olhar, esse deve se concentrar nas linhas, nos riscos, nas formas, nas cores e nas expressões. O cromatismo em Marlene é pensado para enfatizar nuances, somente conseguida com a variedade cromática dos lápis de cor importados, como o da marca “caran d’ache”.

O desenho a lápis de cor não admite mistura para obter tonalidades diversas, elas já devem vir em cada lápis, podendo uma caixa conter cento e vinte cores diferentes, o que justifica a preferência pelos importados, somada à qualidade, brilho e boa fixação no suporte de papel. Em uma cidade de elevada umidade, as obras de arte em papel precisam de materiais resistentes, um zelo muito observado por Marlene, mas que não diminui uma certa desvalorização das obras em papel no mercado de arte.

Ela desenvolve poéticas visuais em que os espaços vazios, a que chamo de silêncios, são fundamentais ao desenho, não são vazios, são importantes e indispensáveis. Os silêncios são as pausas em que a artista faz o papel contribuir com sua cor e textura – é através deles que as linhas, riscos e figuras arriscam o existir.

Ao incorporar o suporte como recurso visual, quebrando a hierarquia figura e fundo, Marlene admite uma das conquistas da História da Arte Ocidental, que deve muito à Oriental, conhecimentos do seu domínio como professora universitária da matéria.

Imaginação à solta

A artista também trabalha com a sugestão – não fecha, por vezes, as formas – deixa que a mente do fruidor complete os percursos da linha, apreenda intelectual e sensorialmente os trabalhos. É evidente a relação catártica da criadora com o seu trabalho nos riscos que faz com certo automatismo, semelhante aos que fazem as crianças e, talvez, com a mesma intenção de comunicação e escape. Ela diz: “Diante da superfície a intervir, não penso, deixo a imaginação à solta”.

Como professora de Iniciação Artística, teve muita oportunidade de observar esse tipo de relação, mesmo porque já aplicava uma pedagogia modernista, promotora das expressões individuais dos educandos, motivadas pelas vontades, gostos e necessidades de cada um. Desenha pelo simples prazer. Marlene avalia que o seu trabalho tem boa aceitação, agradando aos que veem, mas não conquistou o mercado, muito por falta de agenciamento por si e pelos mercadores. Talvez por não necessitar da venda da produção para a sobrevivência.

Seguindo as preferências dos artistas do desenho, adotou a pintura em acrílica sobre tela, mantendo as características dos seus desenhos, explorando mais os recursos das cores, desenhando com os pinceis e tirando partido das possibilidades da técnica nas sobreposições de camadas, velaturas, transparências e secagem rápida, recursos usados em função de uma poética que alcançou desdobramentos sem perder a fundamentação, afinal, as técnicas mistas estiveram sempre atreladas aos desígnios.

Marlene despontou na cena artística soteropolitana da década de 1960 com trabalhos diferentes aos que se faziam, considerando os realizados pelas artistas mulheres e pelos homens.

Integrou exposições coletivas de relevo; participou de feiras e das duas primeiras bienais nacionais realizadas na Bahia; gozou de um reconhecimento em um tempo que às mulheres já era facultado o lugar de artista, embora nessa década e nas próximas, e talvez na atualidade baiana, as mulheres artistas ainda não tenham conquistado posições semelhantes aos homens.

Riscou e arriscou destoar do lugar comum: casarios, costumes e tradições baianas, edificações religiosas, e todo o anedotário dominante no modernismo baiano que projetou uma unicidade indentitária.

Vivenciou um meio artístico movimentado, sobretudo na Escola de Belas Artes e os altos e baixos das frágeis e descontinuadas políticas afetas/desafetas às artes visuais.

Com cerca de 64 anos de carreira artística, Marlene continua a riscar fazendo uma síntese do que fez, figuração/abstração, ao seu modo e sem pressa. Ganhou o Prêmio Aquisição no 28º Salão Paranaense de Artes Plásticas em 1971. Certamente, a obra premiada se encontra em algum acervo público desse estado.

Na Bahia, a memória do que fez e do que representa foi comprometida pelo pouco registro, pela ausência de catálogos com reproduções das obras expostas e por não ter nenhuma obra em acervo nos museus baianos, especialmente do Museu de Arte Moderna.

*Doutor em História a Arte, professor da Escola de Belas Artes (Ufba) e museólogo

*O conteúdo assinado e publicado na coluna Olhares não expressa, necessariamente, a opinião de A TARDE

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