ABRE ASPAS
Safatle: “É preciso convencer país que há outro projeto de sociedade”
Esquerda se configurou como partida da defesa do estado democrático de direito, diz filósofo
Por Gilson Jorge

Arquivos de áudio do professor e filósofo Vladimir Safatle podem ser encontrados em plataformas digitais como Spotify e Deezer. E não, não se tratam de podcasts sobre política. O intelectual que faz críticas constantes à extrema-direita e ao capitalismo toca em outras teclas. Pianista, já lançou dois álbuns: Música de superfície (2019) e Tempo tátil (2021), e compôs trilhas sonoras para o teatro, incluindo a montagem baseada no livro Leite derramado, de Chico Buarque. Esta semana, Safatle veio a Salvador para ministrar a conferência de abertura da Jornada Pedagógica Administrativa da Reitoria do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia da Bahia (Ifba) e falar de seu novo livro sobre música, Em um com o impulso (Ed. Autêntica). Mas com os ecos das constantes crises políticas no Brasil, nem sempre se pode mudar o repertório. Nesta entrevista, o filósofo avalia a manutenção da força da extrema-direita no país, desacredita da governabilidade de Lula baseada na frente ampla, conclama partidos mais à esquerda a oferecer alternativas antissistêmicas e alerta para uma possível crise regional, com o distanciamento político entre o norte e o sul do Brasil.
A agência digital MAP divulgou uma pesquisa no último domingo que aponta o fortalecimento da extrema-direita na internet durante o mês de fevereiro. Liderado pelo bolsonarismo, esse segmento mobilizou 30% das interações na rede, mais do que o dobro da esquerda. Esse índice é normal para quem perdeu a eleição e precisa estar mobilizado ou deveríamos estar mais preocupados do que estamos?
A extrema-direita não se enfraqueceu no Brasil por causa do resultado das últimas eleições, ela respondeu a 49% dos eleitores e a gente viu setores expressivos desse eleitorado muito mobilizados, muito engajados e muito entusiasmados. Acho que há uma consolidação da extrema-direita ideológica no Brasil, ela não vai desaparecer na semana que vem, esse é um problema de médio e longo prazo. A gente tem que saber como lidar com isso, tendo esse horizonte.
Na prática, como começar a desmontar essa bomba?
Faz mais de uma década que eu tenho insistido que a política mundial, e a brasileira também, foi para os extremos. E o problema atual é que a gente só tem um extremo, que é a extrema-direita. E você não tem uma proposta de ruptura, de mudança institucional profunda vinda da esquerda. A esquerda se configurou, principalmente no Brasil, como partido da ordem, da defesa do estado democrático de direito, um estado democrático de direito que não existe, que nunca existiu. Existe para mim, existe para gente da minha classe social. Não existe para classes sociais mais desfavorecidas, que não têm direitos nem garantias de integridade física diante de funcionários de estado, como a polícia. Essa situação é impossível de administrar para a esquerda. A esquerda precisa de uma outra alternativa de transformação estrutural, até para conseguir fazer a balança funcionar melhor. Se você só tem uma alternativa, o que acontece? Todo desejo anti-institucional da sociedade é puxado para um lado e eles começam a impor uma agenda. E o resto só vai reagindo à pauta definida pela extrema-direita. É o que a gente tem no Brasil. A extrema-direita define a pauta do debate nacional e o resto só reage.
Com a volta de Lula e do PT ao poder, o MST se animou a intensificar a luta pela reforma agrária. Esse seria um possível caminho?
Há vários caminhos que precisam ser recuperados pela esquerda. É preciso convencer o país que há outro projeto de sociedade. O único ponto em que fica mais explícita a nossa diferença com a extrema-direita são as questões relacionadas à luta pelo reconhecimento. A defesa da população preta, da população LGBT, das mulheres. O resto não tem diferença. Quantas vezes você ouviu falar durante a campanha em autogestão da classe trabalhadora? Nunca. E, no entanto, essa é uma pauta fundamental da esquerda. A gente acredita que se você quer uma sociedade igualitária, quem produz, manda. A gente acabou de descobrir trabalho escravo no Rio Grande do Sul. Existe uma lei, o artigo 243 da Constituição Federal, que ainda não foi regulamentado, dizendo que se você pega uma empresa que usa trabalho escravo essa empresa pode ser expropriada para reforma agrária. Alguém da esquerda falou alguma coisa nesse sentido? Não é um governo de esquerda? A gente quer ainda mais, que quando ocorra isso a gestão seja transferida para a classe trabalhadora, você entrega às pessoas que foram escravizadas. Pautas que são fundamentais para a esquerda sequer circulam. Com essa restrição no horizonte de expectativas, num país extremamente desigual e extremamente problemático no ponto de vista do arranjo institucional, quem tem o monopólio do discurso de ruptura tem força.
Como o senhor vê a viabilidade do Governo Lula nesse panorama? É um governo que chegou ao poder com uma frente ampla antibolsonarista, mas que depende de um Congresso conservador, que lida com os melindres dos militares e as pressões do mercado financeiro. Há chances de esse governo ser mais à esquerda?
Essa frente foi criada para ganhar a eleição, não para governar. Você não governa com uma frente ampla. Historicamente, isso nunca funcionou em lugar algum do mundo. Olha o caso italiano. Você tinha grandes frentes heteróclitas para se contrapor a um projeto neofascista. Primeiro era o Berlusconi. Você montava a frente, só que ela não se sustentava por muito tempo. Porque você tem uma série de interesses completamente contraditórios. Você começa a puxar para um lado e outro lado diz "vou te largar ". Caiu o governo e veio o Salvini. Mesma coisa, caiu o governo. Agora, veio uma fascista de verdade. Eu temo que a gente esteja em uma situação como essa. Você pode falar que a correlação de forças é desfavorável. Enquanto a esquerda se coloca como uma força sem capacidade de enunciação, sem pautar a agenda nacional, ela sempre vai ser fraca. Em política, nem sempre um mais um dá dois. Tem horas que um mais um dá zero. Temo que estejamos em uma situação como essa e que a coisa fique em um nível muito retórico. Por exemplo, Lula falou que a autonomia do Banco Central é um absurdo. Ele tem razão. A autonomia significa, na verdade, a dependência do Banco Central dos interesses do sistema financeiro nacional. Mas depois da bravata vem o que? Qual a proposta? Insistir com o Congresso para pautar a questão da autonomia? Colocar essa discussão na sociedade?
Mas se o governo não tem maioria no Congresso?
Isso não significa muita coisa. Olha a estratégia das feministas argentinas. Elas queriam a legalização do aborto. Sabiam que não tinham maioria no Congresso, mas apresentaram a lei e perderam. Só que nesse processo elas aproveitaram para obrigar a sociedade a discutir, pautar o assunto e começar a entender onde estavam as resistências. Quatro anos depois, elas apresentaram um projeto com menos resistência e ganharam. Política parlamentar é assim. A gente nunca teve maioria no Congresso. Você não faz o cálculo de quantos votos tem, se for fazer isso então é melhor deixar de ser esquerda. Se você começa um processo de mobilização contínua, você vai ganhando espaço e ampliando as possibilidades de transformação.
No Psol, o seu partido, houve integrantes que defenderam o lançamento de candidatura própria nas últimas eleições, como o deputado Glauber Braga, que também rechaçou, posteriormente, participação no governo eleito. A maior liderança do partido, Guilherme Boulos, defende o governo Lula e pode ser candidato a prefeito de São Paulo em 2024 com o apoio do PT. Como estão no partido as discussões sobre ser governo e apoiar pautas mais à esquerda?
O problema do Psol é não saber fazer discussão aberta. Um partido de esquerda precisa fazer discussões com todos os seus filiados, todos os seus militantes, abrir assembleia geral, não pode tomar decisões importantes em cúpula, ouvindo uma liderança aqui e outra liderança ali, acertando coisas a portas fechadas. Não pode ser assim. É um mal sinal para a sociedade, sinal de que você não tem democracia. Você tem que chamar os filiados de todo o país, informar a pauta de discussão e ouvir o que os filiados pensam. Até o Partido Trabalhista britânico faz isso. A estrutura partidária brasileira tem uma dificuldade muito grande em operar com níveis mais elevados de democracia interna.
De volta ao trabalho análogo à escravidão, esse não é um problema exclusivo do Rio Grande do Sul. Mesmo na Bahia isso ocorre. O que chamou a atenção no episódio da Serra Gaúcha foi que houve lideranças defendendo a prática. Como combater esse pensamento especificamente?
Eu diria o seguinte: o capitalismo não é só a exploração de trabalho mal pago. O capitalismo sempre foi a exploração de trabalho gratuito, seja o trabalho escravo, seja o trabalho doméstico. Sua essência é criar valor através de trabalho não pago. Em países onde o capitalismo explicita a ilusão de que a terra e o trabalho são fontes inesgotáveis de valor, que nunca vão terminar, como é o caso do Brasil, a gente vê isso de forma mais evidente. Em países da economia central, é mais difícil encontrar trabalho escravo como no Brasil. Mas eles se servem do trabalho escravo em Bangladesh, na Tailândia, na Índia. O sistema só funciona assim. Não existe capitalismo sem esse tipo de trabalho. Esse é um sistema que degrada a atividade humana e a gente não quer salvá-lo, civilizá-lo, racionalizá-lo. A gente quer outra coisa. Agora, nesses casos específicos, se você expropria três empresas, o processo se arrefece. Dá uma sinalização muito clara que esse tipo de degradação imoral e abjeta da condição humana, isso nunca vai ser tolerado. E outra coisa preocupante no caso do Rio Grande do Sul é que mostra um conflito regional que nos espera. A gente está à beira de uma divisão regional. Você tem o sul conservador e o norte progressista. A gente depende de vocês. Se não fossem vocês, a gente tava perdido (risos). Desde o Governo Bolsonaro ficou explícita a divisão do país, que nunca existiu dessa forma. A divisão política do país que pode ter consequências muito sérias.
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