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"Sagrado feminino" convida mulheres a se reconectarem com a ancestralidade

Por Alessandra Oliveira

05/06/2017 - 10:54 h | Atualizada em 21/01/2021 - 0:00
Vivência no espaço Asas e Raízes, em Serra Grande, no sul da Bahia
Vivência no espaço Asas e Raízes, em Serra Grande, no sul da Bahia -

Sob o direcionamento da moon mother Atmo Kamini, senti a terra me puxar pelo útero, como se o chão onde estava sentada fosse ceder. Uma leve contração e um frio na barriga surgiam toda vez que se pedia que levássemos nossa consciência ao ventre. Estávamos na sala de uma academia, com ar-condicionado, de onde era possível ouvir os carros passando na rua. A segunda Bênção Mundial do Útero de 2017, em 10 de maio, aconteceu simultaneamente em todo o globo. Éramos dez mulheres, em roda, em busca de cura, através do religamento com nossa ancestralidade e do autoconhecimento das energias uterinas – o sagrado feminino.

As lágrimas nos olhos de Camila de Oliveira, 38, entregavam a explosão de hormônios que acontecia em seu corpo. A empresária, que carrega o filho de quatro meses na barriga, teve cinco gestações interrompidas no período de um ano e meio. Coincidência ou não, havia concentrado suas energias nas perdas que tivera quando fez sua primeira bênção, antes de engravidar. “Foi muito significante. Era semana do Dia das Mães; estou grávida e perdi a minha há dois anos. É como se eu estivesse no colo dela, acolhida”.

“A bênção promove cura em diversos níveis na vida da mulher”, explica Atmo Kamini, cujo nome espiritual significa “a mais profunda bela mulher”. “É o despertar da energia que limpa padrões que nos impedem de seguir a vida com leveza“. Para participar é preciso desembolsar R$ 30. Os atendimentos individuais saem por cerca de R$ 150. Também terapeuta, a guia atende na Casa AmarEla, em Itapuã, R$ 150 a R$ 210 por sessão.

Imagem ilustrativa da imagem "Sagrado feminino" convida mulheres a se reconectarem com a ancestralidade

Bêncão mundial do Útero no espaço CorpoVital, em Itapuã. Foto: Mila Cordeiro / Ag. A TARDE

A permissão para conduzir rituais, sob o título de moon mother (Mãe Lua, em português), foi adquirida no curso da precursora desse tipo de vivência, a britânica Miranda Gray. A técnica foi descrita pela primeira vez em 1994, no livro Lua Vermelha. Desde então, a autora já publicou outros três títulos sobre feminilidade sagrada. Atmo é uma das oito baianas e 204 brasileiras com o certificado no país. As 84 vagas para o curso deste ano, que será realizado em São Paulo, esgotaram-se três meses antes da vinda de Miranda, prevista para agosto. As inscrições custam, em média, R$ 1.600 por um final de semana de orientação. E ainda são aceitas novas inscrições para a fila de espera.

DESPERTAR

Mas colocar o sagrado feminino em prática também pode ser um processo individual. A graduanda em design Joyce Gonçalves, 19, é uma bruxa solitária wicca – vertente da bruxaria, antiga religião matriarcal. Ela realiza sozinha rituais de diversas tradições pagãs (grega, chinesa), principalmente da mitologia hindu. As celebrações podem ser manifestadas de várias formas. A estudante usa velas, incensos, alimentos e desenhos e oferta músicas e cantos.

Ela conheceu a religião em uma pesquisa escolar há seis anos e desde então não parou de estudar. “O sagrado feminino é vivenciado na vida em geral. Você pode estar lavando a louça, cozinhando e fazer disso uma celebração; o banho pode ser um momento de energização. É usar isso como vínculo para entrar em contato com a Deusa e os seres mágicos”.

Durante o período menstrual, que é chamado de “lunação” por quem acredita que ele está fortemente relacionado com os ciclos da Lua, Joyce monta um altar com objetos que remetem ao feminino, um pano vermelho e uma cumbuca de barro, previamente decorada, com seu sangue. Depois, mistura o líquido com água e rega uma planta. “A sociedade patriarcal fez com que as mulheres tivessem repulsa do seu ciclo. O altar é uma forma de entrar em paz com ele”, afirma. O ato de regamento é conhecido como “plantar a Lua” no movimento do sagrado feminino.

Para a moon mother Ruah Câmi – “sopro divino, a comunicação sagrada” –, 36, esse é o passo inicial a ser dado pela mulher que deseja se conectar com sua sacralidade. Deve ser praticado, preferencialmente, junto com o abandono do absorvente, substituído pelo coletor durante a fase de transição. Depois, é recomendável apenas o uso panos. “É uma conexão direta da mulher com a terra. É o sangue que ia gerar vida, então, tem muita força vital”, justifica Ruah, que gerencia o espaço de vivências Asas e Raízes, no meio da mata na Costa do Cacau, km-28 (entre Ilhéus e Itacaré), junto com o marido Gabriel Loomans.

Foi ele quem deu a ela seu primeiro pano há dez anos durante uma viagem ao Capão, na Chapada Diamantina. Quando não está em casa, a moon mother leva um frasco de vidro para guardar o sangue e devolvê-lo à terra quando tiver oportunidade. Depois de plantar a Lua, participar continuamente de vivências ajuda na cura da feminilidade. Plantas medicinais, como tabaco, são usadas na limpeza do útero. “É o centro poderoso mais energético da mulher; guarda todas as nossas memórias, experiências, traumas”. Ruah conta que no Asas e Raízes é possível “descongestioná-lo” através de vaporizações.

O processo é simples: a mulher entra em uma cabana abafada e acocora sobre uma cumbuca para receber o vapor das ervas. O importante é a abertura de espírito. “O objetivo é abrir espaço para que a gente possa se recordar de quem a gente é. Cada retiro libera uma camadinha”. Uma bênção dada por ela custa R$ 150; a cura xamânica, feita pelo marido Gabriel, e as sessões de thetahealing, R$ 180; já as vivências variam de R$ 80 a R$ 1 mil, a depender da duração.

O conhecimento das práticas é aprendido no grupo de pesquisa que mantém com a família (nome que se dá à ligação de pessoas com afinidade espiritual) Tribo da Lua. Eles se reúnem para compartilhar memórias ancestrais – sabedoria natural que deve ser despertada ou adquirida em conversas com mulheres sábias de tribos latino-americanas. As experiências pessoais também são fonte de estudo. “Dentro dos movimentos do feminismo, temos reivindicado um espaço de fé. Não ficar só na órbita da razão, de se empoderar a partir da reivindicação dos espaços que o homem ocupou para poder ser vista. Isso entra em uma lógica que nega outras características importantes da mulher”, define a pesquisadora, atriz e poeta Adriana Gabriela, que defendeu a dissertação Mulher no palco: ritos poéticos teatrais de iniciação ao sagrado feminino, na Universidade Federal da Bahia (Ufba), em 2016. Ela estudou o movimento pela perspectiva teatral.

DIVERSIDADE

Ainda no campo da arte, a professora Adriana Oliveira, 42, ressalta a força do sagrado feminino em danças xamânicas, circulares, na cigana, flamenca e dança do ventre – expressão que ensina. “Em sua origem, já era ritualística, de devoção. Ao longo do tempo, os aspectos artístico e técnico foram se sobressaindo ao ritual. Porém não há como desvincular do sagrado”. Isso é resgatado nas aulas através do trabalho de autoestima que pratica com suas alunas.

Uma delas, Kelly Passarello, que não quis informar a idade, além de frequentar a dança, faz sessões de reiki, yoga e consome toda literatura que aborde misticismo. A consultora organizacional e coach geralmente não tem as tardes livres na agenda, mas foi à Bênção Mundial em maio a convite de uma amiga. “Naquele horário eu estaria enfiada no escritório assinando papéis. Sou agitada. No momento que paro, a cabeça pensa um monte de coisa. Mas aquela foi uma tarde de calmaria; tinha uma energia, que vinha de outros locais, outras mulheres”.

Contrariando a orientação da moon mother de prestar atenção aos ciclos da Lua e sua influência no comportamento feminino, Kelly se diz influenciada pelo mar. ”Não sou de olhar a Lua. Não me preocupo com as fases. Aqui em Stella Maris, onde moro, vejo o mar o tempo todo”. Como o despertar do sagrado é um movimento muito individual, cada mulher canaliza sua energia no que julgar mais pertinente.

A advogada Luciana Diniz, 32, acredita que se curou da depressão por conta do workshop Palhaças, Bem-vindas Sois Vós, que mescla de palhaçaria e sagrado feminino, do qual participou em julho de 2015. “Vi uma mudança menos de um ano depois. Meus exames mudaram e no meio de 2016 já tinha parado de tomar todos os remédios”.

Antes da vivência, ela passou seis anos tentando melhorar. “Tomei remédio, fiz psicoterapia. Havia sempre uma recaída, nunca uma melhora significativa”. A ideia de participar veio quando, sem querer, viu um chamado para o evento no feed do Facebook de uma prima. Agora Luciana concilia o trabalho em audiências com o empatilhaço – empatia através desta arte –, como voluntária no Martagão Gesteira.

Apesar de também crer na cura, a idealizadora do Palhaças, Bem-vindas Sois Vós esclarece que o foco do projeto é artístico e não terapêutico. Felícia de Castro, 41, dá aula de formação há 18 anos. Há 10 criou essa vivência, que já levou para Brasília, Rio de Janeiro, Aracaju, Florianópolis e Chapada Diamantina. Os cursos de iniciação e de aprofundamento e criação, com carga horária de 40h cada, custam R$ 810 (apenas um) e R$ 1.500 (ambos). Qualquer mulher pode participar do primeiro, que é pré-requisito para o segundo. Não é preciso atuar ou ter interesse na área.

Enquanto nos outros cursos que ministra, algumas atividades exigem exposição pública dos palhaços, este promove maior ligação entre as participantes em um ambiente só delas. A composição exclusivamente feminina facilita.

“Promove um conforto, uma abertura maior, que potencializa a entrega necessária na palhaçaria. É uma possibilidade de entrar em contato com dimensões que, geralmente, a gente não expõe. Isso para a mulher é forte e tocante porque ela faz um esforço muito grande para sustentar papéis e estéticas, seguir modelos“. Não é uma questão de separar a palhaçaria feita por homens e mulheres”.

BINARISMO

Para alguns vivências, porém, a participação de ambos os sexos é bem-vinda, como ocorre no templo Casa Telucama, em Lauro de Freitas, onde a tradição de bruxaria celta-ibérica é preservada. “Os celtas viam que os homens iam para caça, eram feridos e morriam. As mulheres sangravam todo mês e não morriam. Havia uma divindade nisso”, explica a suma sacerdotisa Graça Azevedo, 70, 43 deles à frente do santuário. Além de gerir o colégio de formação sacerdotal com 82 alunos, ela realiza terapia holística por R$ 200 a sessão.

Imagem ilustrativa da imagem "Sagrado feminino" convida mulheres a se reconectarem com a ancestralidade

O caldeirão é o objeto central no altar do Templo Telucama. Foto: Mila Cordeiro / Ag. A TARDE

O templo é repleto de altares em homenagem às várias faces da Deusa – a criadora de tudo. Todas as outras figuras cultuadas nas demais religiões são manifestações da primeira. “O Big Bang é o primeiro grande parto, até onde nossa consciência pode conceber”, engrandece. A maior representação do útero é o caldeirão, que fica resguardado no altar principal do templo. Lembra preservação e alimentação, pois era nele que as famílias tradicionais de bruxas faziam o alimento de toda uma aldeia. Apesar da grande devoção à Deusa, Graça garante que homens e mulheres são tratados como iguais na bruxaria. Ela descreve, porém, uma diferença entre os espíritos, sendo o feminino mais sensível.

“O campo sutil do ser não está vinculado a um estado físico, um corpo. Somos performances, vamos sendo e expressando energias que há em nós. Feminino sagrado não é da mulher cis simplesmente, mas ela é a peça central. Porque é essa ideia do que é ser mulher que é esfaqueada, deslegitimada todos os dias. Estamos em uma sociedade que massacra, assassina gays, trans, mulheres; impede qualquer expressão de feminino”, pondera a pesquisadora Adriana Gabriela.

No Asas e Raízes, o guia espiritual Maory Atumchury (“guardião de segredos”) participa até mesmo das ações específicas do sagrado feminino. “O homem tem um papel de guardião da energia sagrada feminina. O coração sabe que são mulheres que nos guiam. A masculinidade é apenas um serviço à feminilidade”. Durante os retiros e lunações, eles acordam mais cedo e preparam o espaço dos rituais para recebê-las. Alimentação e cuidado das crianças se tornam atividades integralmente masculinas nesses períodos. No resto do tempo, as tarefas são divididas.

“A energia feminina é receptiva, acolhedora, profundamente intuitiva. A masculina é ativa, realizadora. A existência destas polaridades traz a possibilidade de ver a riqueza de cada uma delas. Em equilíbrio, elas interagem e servem uma à outra”, diz a gerenciadora do lugar, Ruah Câmi. Segundo ela, a força das mulheres que retiraram o útero ou são trans sofre um desempoderamento. “Certas coisas perdem a potencialidade”, acredita.

A moon mother e Maory, que é colombiano, se conheceram na sexta edição do Festival Sul-americano dos Sagrados Saberes Femininos, em Santa Catarina, ano passado. As experiências no evento, que reúne 300 participantes anuais, são guiadas por abuelas – parteiras, erveiras, raizeiras, benzedeiras, temazcaleiras, terapeutas, representantes indígenas e artistas de toda a América latina. Os ingressos custam R$ 500 para os dias 22 a 26 de novembro. O valor paga só as vivências. Não estão incluídos produtos de higiene, objetos para alimentação, camping e alojamento.

Imagem ilustrativa da imagem "Sagrado feminino" convida mulheres a se reconectarem com a ancestralidade

Ritual no Festival Sul-americano dos Sagrados Saberes Femininos. Foto: Guberg fotografia / Divulgação

Ruah realizou na Bahia o primeiro Festival Brasileiro dos Sagrados Saberes Femininos, em 2016, inspirada nos moldes do evento continental, onde experienciou coisas únicas. Ela convida: “É importante cada um viver suas próprias experiências. Não acreditem no que eu estou falando, vivam!”.

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