MUITO
Salões para cabelos crespos e cacheados ganham força em Salvador
Por Bruna Castelo Branco
A primeira cliente a chegar ao Instituto de Beleza Essência dos Cachos (Ibec) na manhã do dia 16 de abril, uma segunda-feira, foi Adriele de Santana, 8 anos. No lavatório do salão, especializado em cabelos crespos e cacheados, ela conta como foi parar ali. “Eu queria usar o cabelo solto, mas a minha mãe sempre fazia penteados”. A mãe, Adriana de Santana, confirma a história. “Ela insistiu que queria os cachos soltos. Há um mês passamos a vir aqui fazer hidratação. Um dia desses, ela me disse: minha mãe, estou me achando!”, ri. Ainda no lavatório, Adriele ressalta: “O meu cabelo é black!”.
Aberto em 2013, o Ibec nasceu da necessidade de Flávia dos Santos, 45 anos, de encontrar profissionais capacitados e produtos apropriados para cabelos crespos. Segundo pesquisa da L’Oréal levantada em 2016, 56% das mulheres brasileiras têm cabelos enrolados – e 63% delas gostariam que eles fossem lisos. “Não diferente de outras pessoas, eu também alisava. Eu precisava trabalhar, viver, ter dignidade. Hoje, essa realidade está começando a mudar. Você vai a banco, repartição pública, e já acha pessoas cacheadas, mesmo que ainda seja uma minoria”, lembra.
Quando, há cinco anos, decidiu se libertar da química, um baque: não encontrou um cabeleireiro sequer que soubesse lidar com suas madeixas. “Acabei indo numa dermatologista para que ela me ajudasse a formular um xampu. Mas ela disse que, por falta de público, não tinha buscado conhecimento o suficiente sobre o assunto, então, não poderia ajudar”.
Por conta própria, Flávia estudou cosmetologia e, com o apoio de profissionais da área, produziu os próprios produtos. “Essa falta de mão de obra qualificada me fez ligar o alerta. É muito mais fácil construir do que desconstruir. Por isso, quando comecei a estudar, busquei me especializar em crespos e cacheados. Como nunca tinha trabalhado nesse segmento antes, não tinha conhecimento sobre lisos. A base da minha formação é esse tipo de cabelo”. Além do salão, a cabeleireira criou a marca de cosméticos Essência dos Cachos, lançada em 2017.
Para ela, o retorno aos fios naturais é uma tendência dessa geração, o que tem levado ao aumento de espaços especializados. “Em 2013, quando comecei a minha transição capilar (parar de usar alisantes químicos), basicamente não existiam esses lugares”. Hoje, em uma pesquisa rápida no Google, conseguimos mapear 20 salões na cidade para crespos e cacheados – o que ainda é pouco em comparação aos apropriados para os lisos. “Está melhor agora, mas ainda somos minoria. Por exemplo, estamos no bairro da Liberdade, um bairro negro. Mas se você andar por aqui, vai ver bastante salão para cabelos lisos. E não é só aqui, é na cidade toda”, afirma.
No Ibec são promovidos treinamentos para profissionais de outros espaços interessados em aprender a trabalhar com esse segmento. “Estamos em 2018, não é? Tem muita gente querendo se atualizar, pessoas que trabalham com cabelos lisos”, comenta Flávia. Nesses espaços, ainda é difícil encontrar cabeleireiros que saibam ir além das raízes lisas. Durante a apuração desta reportagem, entramos em contato com três salões de beleza da cidade. Nenhum deles, apesar de afirmarem atender todas as clientes, tem um profissional especializado nos enrolados. “Cortes, penteados, produtos... tudo muda com o tipo de cabelo. E é isso que precisamos aprender ainda”.
Mesmo incentivando os clientes a não usarem produtos que modifiquem a estrutura dos fios, Flávia garante que nada é imposto. No Ibec, além dos tratamentos capilares, é possível fazer maquiagem e penteados pensados para as cacheadas e crespas – inclusive escovas, que não transformam o cabelo permanentemente. “Às vezes, a pessoa quer mudar de visual. Uma cacheada pode querer escovar o cabelo. Mas ela vai fazer isso como uma opção, porque quer aparecer diferente em uma festa. Ou simplesmente porque ela quer e pronto, acabou!”.
Transição
Carla Conceição, 30 anos, tornou-se cabeleireira em casa, cuidando das mechas da filha de 2 anos. Também pela dificuldade em encontrar produtos, enveredou por uma produção caseira. “Só que o povo começou a se interessar. Comecei a trabalhar em domicílio e, hoje, tenho o meu espaço”. Aberto há seis meses em Brotas, o Beleza Negra, que também tem marca de cosméticos própria, já tem uma filial na Engomadeira, aberta neste mês. “São muitas clientes, muita gente procurando o salão”, comemora.
No salão de Carla, que atende pessoas de todas as idades, todos os tratamentos, inclusive a linha produzida por ela, são livres de química. Ela, que já passou pela transição capilar, ou seja, deixou de usar alisantes que alteram o fio, diz hoje se sentir melhor consigo mesma. “Chega a um ponto em que nos tornamos escravas da química. Muitas clientes que vêm aqui nem sabem como são seus cabelos de verdade. A gente vai cuidando, cortando, até chegar ao natural”.
A cabeleireira Fátima Campos, 37 anos, proprietária do Fátima Campos Conceito de Beleza, no Cabula, passou pelo mesmo. “Precisei cortar o cabelo todo – o chamado big chop – para deixá-lo natural. É uma sensação de tristeza, alegria, libertação... Já presenciei a transição de várias clientes, me emocionei com elas lembrando o que as levaram a alisar”, conta.
Quando começou a trabalhar com cabelos, há 18 anos, o mercado era completamente diferente. “Eu já alisei muitos cabelos crespos e cacheados. Mas hoje estamos vivendo em outro momento. Vejo muitas negras e negros querendo se assumir, não somos mais tão obrigados a alisar quanto já fomos. Se você quer ter o seu cabelo liso e escovado, vai ficar linda e poderosa. Se quiser ter os cachos, vai ficar linda e poderosa também. O importante é não ser uma imposição, como já foi, e sim uma escolha”.
Enquanto conversa, Fátima atende Sidnéia Santana, 36 anos, cliente há dez anos. “Eu venho para cá destruída e ela me reconstrói”, brinca. Ao falar sobre o próprio cabelo, ela explica: “Gosto dele cacheado, mas não abro mão de fazer relaxamento – tratamento químico que diminui o volume – na raiz”. Como Fátima não trabalha com química, essa parte Sidnéia faz com outra profissional. “Ainda não estou com coragem de passar pela transição. Não é fácil nem barato manter o cabelo cacheado”, comenta.
Para a profissional, que já atendeu figuras conhecidas como Magary Lord, Margareth Menezes e Wanda Chase, a autoaceitação da população negra é, felizmente, um caminho sem volta. Atualmente, ela tem cerca de 700 clientes, mulheres e homens que buscam o resgate da sua identidade. “Crescemos ouvindo essa história de que cabelo crespo tem que ser preso ou alisado para ser bonito. Que cabelo crespo é feio, é duro, é ruim. Hoje estamos reescrevendo essa história. O cabelo crespo é bonito, pode ser sim usado como ele é. E precisamos de cuidar dele assim como se precisa cuidar de qualquer outro tipo de cabelo”.
Casa de amor
Tranças, turbantes e dreadlocks. De fora, o Negra Jhô Penteados Afros, no Pelourinho, comandado por Negra Jhô desde os anos 1990, parece um lugar comum, com cadeiras, espelhos, clientes e pessoas trabalhando. Mas, para ela, vai além: “Aqui não é um salão, é uma casa de amor”. “Como assim?”, lhe pergunto. “Eu valorizo o meu cabelo étnico porque, quando criança, era discriminada pelo cabelo carapinha, pela minha boca grande… É uma casa de amor porque busca o resgate de nossa autoestima”, explica.
No Pelourinho, Negra Jhô foi uma das primeiras a levar a cadeira para a rua para fazer trançados. “Hoje, ainda bem, há muitas pessoas fazendo isso aqui. Quando abro uma porta, não fecho, deixo encostada, para que outros passem por ela”. O que a levou a iniciar esse resgate foi uma admiração imensa pelas raízes africanas. “Quando eu era criança, me identificava muito com o filme Tarzan, que mostrava a África. Eu ficava louca quando via aquelas mulheres maquiadas, com aqueles colares, aquele tecido. Dizia dentro de mim: um dia eu vou me vestir assim. E hoje eu me visto assim. Eu sou África, não vou deixar essa história ser esquecida”.
Com essa inspiração, passou a sentir a necessidade de trabalhar com pessoas negras. “Mas atendemos todos os tipos de cabelo e pessoas que respeitam a nossa cultura, fazendo tranças e penteados étnicos”. Defende que, acima de tudo, assumir os cabelos naturais é um ato de resistência. “Nosso cabelo cresce para cima mesmo, é a nossa liberdade. Mas não sou contra alisar, cada um faz o que quer. Eu prefiro usar natural porque faz eu me sentir mais forte”.
Resistência
No laboratório capilar Mukunã, aberto no bairro da Saúde em 2017, a negritude é valorizada através dos dreads, que vieram da África para o Brasil. “Somos um laboratório porque aqui fazemos experimentos com cabelos, além de produzirmos xampus apropriados para dreads”, explica Cláudio Argolo, 31 anos, proprietário do espaço junto com Ana Vitória Oliveira. Em iorubá, mukunã significa cabelo. “Nos terreiros, ninguém vai falar ‘bonito o seu cabelo’, e sim ‘bonito o seu mukunã’”, diz ele.
Mesmo que estejamos em um momento de mais aceitação da cultura negra, ainda não é fácil usar dreadlocks em Salvador. “Eu conheço diversas pessoas que tiveram que cortar o cabelo porque simplesmente não eram aceitas no mercado de trabalho. É mais fácil encontrar pessoas em comércios e lojas mais alternativas. Muitas empresas são resistentes à estética do dreadlock”, comenta. Além dos dreads, um dos trabalhos do Mukunã é mostrar, através de produções audiovisuais, que quem mantém os cabelos assim não é sujo ou largado, muito pelo contrário. “Os dreadlocks dialogam muito com a moda. Queremos mostrar para as pessoas que isso aqui é lindo”.
Os dreadlocks se popularizaram no mundo através do movimento Rastafári, nascido na Jamaica nos anos 1930. De origem judaico-cristã, o rastafarianismo segue a Bíblia, incluindo a parte que proíbe o corte dos cabelos, considerados uma parte sagrada do corpo. Mas nem todo mundo que usa dread é rastafári, e nem todo rastafári usa dread. “Como muitos rastafáris não cortam o cabelo, os dreads se formam naturalmente. Qualquer pessoa que deixar o cabelo sem pentear vai criar dreads”, explica Ana Vitória. “Por ser algo mais religioso, criado naturalmente, muitos rastafáris não fazem a manutenção”.
Para alguns, dreads significam identidade e resistência. Para outros, apenas jeito estiloso de arrumar os cabelos. A discussão é longa e entra em debates sobre racismo, ancestralidade e apropriação cultural. Para Vitor Argolo, profissional do Mukunã, pode ser tanto um quanto outro, e, muitas vezes, a união dos dois. “A gente trabalha com a moda para mostrar que, ao mesmo tempo em que ter dread é estilo, também pode ser resistência. Quando uma pessoa branca usa dread, é considerado ousado. Quando é um negro, é ligado à militância, à resistência”, opina.
Mas, querendo ou não, ter dreads em um mundo que quem os têm muitas vezes não consegue encontrar emprego, como aconteceu com Cláudio antes de inaugurar o Mukunã, é resistir ao preconceito. “Sem dúvida, o fato de ter uma origem africana aumenta a discriminação. Se sentir belo frente ao espelho também é um ato de resistência. Por mais que a pessoa não tenha a intenção de resistir, ela resiste apenas pelo fato de se sentir bem consigo mesma”.
Compartilhe essa notícia com seus amigos
Cidadão Repórter
Contribua para o portal com vídeos, áudios e textos sobre o que está acontecendo em seu bairro
Siga nossas redes